sábado, 29 de dezembro de 2007

Democracia e limites à vontade da maioria

Aspecto que me preocupou, nas aulas de doutorado na Unifor, foi a tendência, revelada por alguns professores e acolhida e defendida por alguns alunos, de sobrevalorizar uma certa interpretação do princípio democrático. A vontade da maioria deve sempre prevalecer, e qualquer argumento em contrário é "elitista", "burguês" ou "fruto do liberalismo".
Aliás, para algumas pessoas, o "liberalismo" é uma força maligna e oculta que tudo domina, respondendo até pelas folhas que caem da árvore da esquina, durante uma ventania.
Mas não existem limites a serem estabelecidos ao que quer a maioria?
Em trabalho que elaborei ao concluir a disciplina "Teoria da Democracia", procurei demonstrar que sim. Há link para uma versão dele, em PDF, em postagem de alguns meses atrás.
Mais recentemente, lendo um excelente livrinho de Zippelius, encontrei passagem bastante pertinente ao tema (ZIPPELIUS, Reinold. Introdução ao estudo do direito. tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006).
Para ele, o homem nem sempre age racionalmente, principalmente quando agrupado, pelo que são necessárias cautelas para conter eventuais excessos de algumas deliberações.
Em passagem que coincide bastante com algumas referências que fiz em meu trabalho sobre os defeitos da democracia grega, e, depois, sobre o que a modernidade fez para aperfeiçoá-la, ele escreve:
"Nos políticos, tais influências irracionais encontram-se com as fraquezas humanas comuns. Muitos deles negam-se a trilhar o caminho da mínima resistência. É bem conhecido o medo que eles têm de se chocar contra associações e grupos influentes, o esforço que fazem para ganhar o apoio desses, o temor de agressões públicas, o desejo de serem apresentados pela imprensa e pela televisão de forma favorável e, principalmente, o empenho em melhorar as oportunidades em benefício de sua própria carreira e em consolidar a sua própria posição no poder.
Por essas e outras experiências, o otimismo antropológico, bem como a idéia do homem como 'animale racionale', foi, sem cessar, suplantado por outras noções.
(...)
As restrições contra esperanças demasiadamente otimistas sobre uma democracia direta são especialmente determiands pela noção de homem que Le Bon evidenciou em seu 'Psicologia das Massas' (1895). Segundo ele, os homens, quando em massa, estariam mais suscetíveis às sugestões dos demagogos, diminuídos na sua capacidade de crítica e de julgamento e desceriam alguns degraus na escala da cultura. Trata-se de noção de homem que encontrou na bem sucedida demagogia de Hitler e de outros uma confirmação demasiadamente palpável.
São noções de homem desse gênero que sugerem à prática política que não se deve confiar demais na razão, mas, também, harmonizar as regras comportamentais com as fontes irracionais da conduta. Se o homem é movido também pela vontade de poder, então é mais importante instituir controles de poder suficientes no Estado, do que radicalizar o princípio democrático." (pp. 54 e 55).
Foi exatamente o que eu disse em meu pequeno texto, que, se eu fosse escrever agora, certamente contaria com essa citação de Zippelius.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Seletividade e energia elétrica

Na Revista Dialética de Direito Tributário n.º 62, de novembro de 2000, publiquei artigo analisando a necessidade de as alíquotas do ICMS, se adotada a seletividade, seguirem como parâmetro para a seletividade a essencialidade das mercadorias e serviços tributados.
Demonstrei que a maior parte dos Estados, senão todos, adota a seletividade (alíquotas de ICMS diferentes para produtos diferentes), mas não o faz a partir da essencialidade dos produtos. Tanto que energia, combustíveis e comunicação sofrem ônus que varia de 25% a 35%, a depender do Estado.

Recentemente, o site do STF noticiou, a respeito dessa tese, a seguinte notícia:

"- Quarta-feira, 26 de Dezembro de 2007 - Presidente do STF suspende decisão do TJ-AM que reduziu ICMS para energia e telecomunicações

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Ellen Gracie, deferiu a Suspensão de Segurança (SS) 3473, invalidando decisão das Câmaras Reunidas do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), que havia reduzido a alíquota do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) de 25% para 17%, para o fornecimento de energia elétrica e de telecomunicações.
O estado do Amazonas, que requereu a suspensão, afirma que essa redução na alíquota resultará em uma perda de recolhimento da ordem de aproximadamente R$ 53 milhões, para os produtores independentes de energia elétrica, e de R$ 82 milhões no setor de telecomunicações. Afirma, também, que a empresa que impetrou o mandado de segurança no TJ-AM contra o decreto estadual 20.686/99, e que resultou na decisão de redução da alíquota, não teria legitimidade para a ação, além de não caber este tipo de ação (mandado de segurança) contra lei em tese, conforme aponta a Súmula 266 do STF.
Ellen Gracie concordou com os argumentos do estado do Amazonas, de que no caso estaria devidamente demonstrada a ocorrência de grave lesão à ordem pública, uma vez que a redução da alíquota do ICMS poderá afetar os serviços públicos essenciais prestados, “tendo em vista a relevância da arrecadação do ICMS para o orçamento estadual”, frisou a presidente da Corte.
A ministra concordou, também, que no caso poderia haver o efeito multiplicador, pela existência de inúmeros usuários dos serviços de energia elétrica e de comunicação em situação potencialmente idêntica à do impetrante do mandado de segurança no TJ-AM.
Ao deferir o pedido do Amazonas e suspender a decisão do tribunal amazonense, a ministra disse que a existência ou não de ofensa ao princípio da seletividade da tributação e da essencialidade do fornecimento de energia elétrica e dos serviços de comunicação (artigo 155, parágrafo 2º, III, da Constituição Federal), que baseou a decisão do TJ-AM, não pode ser analisado, uma vez que não cabe, em suspensão de segurança, a análise com profundidade e extensão da matéria de mérito analisada na origem."

Não discuto, no caso, a importância da arrecadação do ICMS sobre energia, e o impacto que a decisão teria nas finanças do Estado.
O que se pode discutir é se isso pode servir de justificativa para o aberto descumprimento de uma disposição constitucional.
Não deveria o Estado procurar outras fontes, não inconstitucionais, para o custeio de suas atividades?
É claro que sim.
Aliás, deve-se pensar no impacto (positivo) para a economia, representado pela redução do pesadíssimo ônus tributário incidente sobre energia, comunicação e combustíveis.
De início, as mercadorias e serviços que têm tais bens como parcela integrante do custo (quais não têm?!) teriam significativa redução no preço, ou incremento na lucratividade de quem as produz. A economia em geral seria aquecida, cresceria, e terminaria ensejando maior arrecadação de ICMS.
Quanto ao questionamento da lei em tese, e à legitimidade ativa "ad causam", os argumentos do Estado do Amazonas são claramente improcedentes.
Não se discute a lei em tese, mas a aplicação - mensal - da mesma, por autoridades administrativas que têm atividade vinculada. Basta a concessionária deixar de recolher o ICMS pela elevada alíquota para ser autuada, o que demonstra o justo receio motivador da impetração do writ. A jurisprudência e a doutrina há muito tempo pacificaram esse assunto.
Quanto à legitimidade, é evidente que só se questiona quem "arca com o ônus" do tributo para fins de RESTITUIÇÃO, e não para o efeito de permitir a discussão de aspectos da relação jurídica tributária, anteriores ao pagamento, os quais podem ser suscitados por qualquer das partes, no caso de sujeição passiva bipartida ou indireta. Tratamos desse assunto, e também do ligado à impetração em tese, em nosso Processo Tributário (São Paulo: Atlas, 2006), e, com todo o respeito, não assiste razão à decisão ora noticiada, nesse ponto. Não porque em nosso modesto livro tenhamos dito o contrário, mas porque o fizemos com amparo em fartas, antigas e pacíficas doutrina e jurisprudência.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Notas sobre a biografia de Einstein

Concluí hoje a leitura de "Einstein. Sua vida, seu universo".
O livro, como já havia mencionado em postagem anterior, é muito bom. Mais pelo biografado do que pelo autor da biografia, evidentemente, mas ainda assim muito bom.
Costumo - aprendi com o prof. Arnaldo Vasconcelos - fazer anotações nas folhas em branco que constam no final dos livros. Sempre que os leio, menciono, nas tais últimas folhas em branco, as páginas nas quais vi informações que me chamaram a atenção, e alguma referência sobre o assunto. Crio, assim, uma espécie de índice pessoal, que facilita sobremaneira a localização dos pontos do livro que me pareceram mais relevantes, ou nos quais constam informações que me pareceram dignas de nota. Depois passo tudo para o computador, o que facilita a localização dessas informações. Trata-se de algo muito bom para localizar dados constantes de livros lidos há algum tempo, agilizando a feitura de citações, referências etc.
Experimentarei postar, aqui, algumas dessas notas, em relação à biografia de que se cuida.
Como disse, o livro é "Einstein. Sua vida, seu universo", de Walter Isaacson. O autor foi presidente da CNN, sendo este o aspecto mais relevante destacado em sua síntese curricular constante da orelha do livro. A editora é a Companhia das Letras, a edição é a primeira, de 2007, e a tradução ficou a cargo de Celso Nogueira, Denise Pessoa, Fernanda Ravagnani e Isa Mara Lando.
Há fotos muito interessantes, que tornam ainda mais prazerosa a leitura.
Quanto às minhas observações sobre a leitura, estão abaixo, com remissão às páginas correspondentes:
p. 26 - Sobre o que seria importante ensinar nas escolas, às crianças, teria respondido: "No ensino de história deve haver um debate profundo sobre as personalidades qie influenciaram a humanidade por meio de sua independência de caráter e julgamento."
Carl Sagan parece ter seguido essa idéia, pois os episódios da série "Cosmos", exibidos na televisão na década de 1980 e relançados recentemente, com atualizações, em DVD, têm diversas referências à História e a personalidades que contribuíram para a ciência opondo-se ao dogmatismo.
Em seguida, na mesma página, Einstein insurge-se contra o método de ensino vigente em sua época de estudante, o qual, lamentavelmente, não se modificou tanto assim em um século. Para ele, o professor deve ensinar o aluno a pensar, e não a decorar acriticamente fatos, informações e datas.
O pior é que, hoje, muitos estudantes NÃO QUEREM pensar. Dizem dar muito trabalho. Preferem ouvir tudo "mastigado" pelo professor, para só decorar. Chegam a se irritar quando estimulados a pensar um pouco...

Na p. 34, faz-se referência à importância - que mencionei em postagem anterior - de nunca se sair da idade dos "por ques". "'Pessoas como você e eu nunca se tornam adultas', escreveu a um amigo, mais tarde. 'Nunca cessamos de nos comportar como crianças curiosas perante o grande mistério em que nascemos'"

p. 36 - Desmente-se a afirmação popular - fundada em um "carteado" que se consolidou pela repetição irresponsável e acrítica - de que Einstein teria reprovado em matemática, quando criança.

p. 39 - Aos treze anos, apreciava, e lia intensamente, Kant, que depois o levou a apreciar David Hume e Ernst Mach.

p. 49 - Embora Einstein não tenha "reprovado em matemática", como vulgarmente se diz, ele não foi o aluno mais brilhante da classe. Em uma escala de 0 a 6, tirou 5 ou 6 em ciências e matemática, e 3 em francês. O aluno mais brilhante de sua classe, contudo, não é conhecido, tendo se perdido na história, nas palavras do autor da biografia...

p.53 - Einstein reclamava, em relação aos estudos da física em Zurique, que se estudava muito o passado da física, mas não o presente e o futuro. É incrível como isso ocorre também, com grande freqüencia, com alguns cursos e professores de Direito...

p. 55 - Aqui, o relato de um fato pitoresco, que eu achava que acontecia apenas nas salas de aula que cheguei a frequentar: alunos que faltavam muito as aulas "estudavam pelo caderno" daqueles mais bitolados que copiavam tudo o que o professor dizia em sala. Alguns cadernos chegavam a ser disputados e copiados... Isso na turma de Einstein, que inclusive se valia desse expediente.
Mas, aqui, uma observação é importante, para que esse fato isolado não seja mal interpretado. Isso ocorria porque Einstein achava as aulas enfadonhas e desinteressantes, passando o tempo a estudar, sozinho e em casa, autores contemporâneos e temas muito mais difíceis. Seria como um estudante de Direito "cabular" uma aula sobre "os métodos clássicos de interpretação" para ficar em casa estudando Viewheg, Gadamer e Alexy.

p. 56 - Einstein não "descobriu" a relatividade sozinho. Traços dela poderiam ser encontrados, por exemplo, em Henri Poincaré. A juventude de Einstein apenas o fez ousar e romper com os paradigmas então dominantes, indo além e tirando conclusões que os seus contemporâneos mais maduros não ousaram tirar.

p. 97 - Há um recado interessante, aqui. Escrever demais - ter produção muito vasta - gera o risco da superficialidade...

p. 99 - Ele lia Antígona, que o fascinava pelo confronto à autoridade, e Cervantes. Há, contudo, uma duvidosa referência a Dom Quixote como sendo um "épico". Não sei se foi "espontaneísmo" superficial do autor, que parece ser mais jornalista que propriamente erudito, ou se foi um lapso de tradução.

p. 101 - Mostra o acerto de Popper - desconfio que a epistemologia contemporânea baseia-se toda ela na história recente da ciência, sobretudo de Einstein e da física -de que as afirmações científicas são sempre provisórias. Até o enunciado de que a soma dos ângulos de um triângulo é sempre 180 graus pode ser colocada em dúvida: em um universo curvo...

p. 117 - Muitos cientistas do início do século XX relutaram em aceitar a relatividade, presos na física Newtoniana. Algumas décadas depois, Einstein faria exatamente o mesmo, em relação à física quântica... É exatamente do que Thomas Kuhn trata em seu "A estrutura das revoluções científicas".

p. 130 - Importante defesa da intuição como fonte de conhecimento racional.

p. 191 - Depoimento de Zangger, amigo de Einstein, sobre ele como professor:

"Ele não é um bom professor para cavalheiros mentalmente indolentes que desejam apenas encher o caderno e depois decorar tudo para o exame; ele não tem fala macia, mas qualquer um que pretenda aprender honestamente a desenvolver suas idéias na física, em profundidade, e a examinar todas as premissas cuidadosamente, vendo as armadilhas e problemas durante sua reflexão, considerará Einstein um professor de primeira classe, pois tudo isso está presente em suas aulas, que estimulam a classe a pensar também".


p. 255 e 256 - No campo político, Einstein revelava-se social-democrata. Contrário aos excessos do capitalismo, mas contrário à eliminação do indivíduo e de suas liberdades verificada no comunismo. Em passagem verificável também em outros autores - como Pontes de Miranda -, diz que "todos os verdadeiros democratas devem estar atentos para que a velha tirania da Direita não seja substituída pela nova tirania da Esquerda."
Quanto à "ditadura provisória", conceito tão contraditório quando "quadrado esférico", pois, depois de implantado o poder absoluto, não há como obrigá-lo a ser provisório, dizia ele que as pessoas não se devem deixar seduzir "pela sensação de que uma ditadura do proletariado seja temporariamente necessária para enfiar o conceito de liberdade na cabeça de nossos conterrâneos."

p. 271 - Foi na cidade de Sobral, no Ceará, que se fez a observação do eclipse do sol, em função da qual se comprovou - pelo desvio na luz de uma estrela provocado pela força gravitacional do sol - o acerto da teoria da relatividade.
Dizem ter sido por isso que Einstein respondeu, a uma objeção de Pontes de Miranda, que a confirmação de sua teoria lhe teria sido dada pelo Brasil. Essa história não consta da biografia, e nem tenho fontes seguras para dizer que tenha mesmo ocorrido, mas dizem que Pontes teria ficado orgulhoso, pensando ser aquilo um elogio de Einstein para ele, quando na verdade referia-se ao experimento em Sobral.

p. 296 - Globalização com respeito às diferenças, tema tão atual em matéria de Direitos Humanos, era uma preocupação para ele, que, no entanto, dizia: "É possível ser internacionalista sem ficar indiferente aos membros de sua própria tribo."

p. 389 - sobre o comunismo: "No topo, parece haver uma luta pessoal em que os meios mais vis são usados por indivíduos sedentos por poder que agem com razões puramente egoístas. Embaixo, parece haver a completa supressão do indivíduo e da liberdade de expressão. É questionar se vale a pena viver em tais condições."

p. 391 - Conquanto defensor dos judeus, não deixou de ser solidário aos árabes que com eles começavam a ter problemas, antes mesmo da criação do Estado de Israel. "Se formos incapazes de chegar a pactos honestos e a uma cooperação honesta com os árabes, então não aprendemos absolutamente nada em nossos 2 mil anos de sofrimento."

p. 398 - Ele era religioso à sua maneira. Trata-se, certamente, do "Deus dos filósofos", e não de uma entidade personificada, consciente e responsável por prêmios e castigos aos homens.

p. 403 - Interessantes reflexões sobre o livre-arbítrio e o determinismo. Einstein era determinista ferrenho, mas em seus atos políticos parecia acreditar no contrário. É um tema controverso, e, de qualquer forma, o princípio da incerteza, contra o qual ele tanto se opunha, parece ser uma demonstração de que nem toda causa é necessariamente determinada apenas por tais ou quais efeitos... Talvez futuramente poste algo sobre esse tema filosófico, que me interessa bastante.

p. 538 - Excelente resposta de Bertrand Russell a uma crítica feita a Einstein, por ter sugerido aos perseguidos pelo MacCarthysmo que não respondessem aos interrogatórios e invocassem a proteção da primeira emenda. Sendo ele acusado de haver preconizado o desrespeito ao ordenamento e a desobediência civil - o que não era verdade - Russell o defendeu dizendo que, se a lei devesse sempre e incondicionalmente ser cumprida, os americanos estariam ainda hoje colonizados pela Inglaterra...

p. 547 - As observações de Einstein sobre o "MacCarthysmo" são muito pertinentes, e continuam atuais sobretudo em face do que se fez nos EUA depois de 11/9/2001. Para ele, "tudo aqui - até mesmo a loucura - é produzido em massa".
Einstein foi ferrenho opositor do MacCarthysmo, incentivando colegas a nada dizer nos "interrogatórios", invocando a Primeira -e não a Quinta - Emenda à Constituição americana.

O livro, evidentemente, tem muito mais elementos possivelmente mais interessantes do que estes. Foram, apenas, os que me chamaram mais a atenção, dentro de um universo de informações sobre a vida, a obra e o contexto histórico de alguém tão importante para a história da ciência e da humanidade. Há muitos outros aspectos, que não estão em uma página específica mas no contexto global da obra, que merecem referência. A resistência de Einstein às novas teorias, a imbecilidade de muitas perguntas que jornalistas e leigos lhe dirigiam em entrevistas dirigidas ao grande público, a paciência e o bom humor como ele as respondia, seus dilemas e problemas no âmbito pessoal (que mostram seu lado humano, igual ao de qualquer um de nós), etc. etc.

Certa vez, ouvi de um professor a recomendação de ler biografias. Sobretudo de grandes homens. Aprende-se muito com elas. É verdade. Talvez a próxima seja a de Dom Pedro Segundo. Pretendo comparar uma recente, lançada pela Companhia das Letras, com outra antiga, que ganhei de meu sogro, em quatro volumes, escrita por Pedro Calmon. Quem sabe posto alguma coisa a respeito.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

STF aprecia a constitucionalidade da "clonagem"

Não, não é de embriões humanos geneticamente duplicados que estou tratando. É de procedimento sui generis adotado por alguns Tribunais de Apelação, de "convocar" juízes de primeiro grau para atuar como desembargadores. Há tribunais que "clonam" suas Turmas, replicando-as com juízes convocados.
Evidentemente, não há problema em convocar juiz de primeiro grau para atuar como desembargador, no caso de férias, licença ou outro motivo que inviabilize a participação de um ou de outro desembargador. A convocação, nesse caso, faz com que o Tribunal - que é um órgão essencialmente colegiado - continue funcionando normalmente não obstante o temporário impedimento de um de seus membros. E o juiz convocado passa a ser conhecido, no Tribunal, como aquele que está a substituir provisoriamente o Desembargador Fulano de Tal, passando a ser o relator de seus processos etc.
A questão, porém, está na criação de turmas "extras" para "ajudar" o tribunal, de forma ordinária, compostas exclusivamente de juízes convocados do primeiro grau. Ou então, o que também ocorre, e dá no mesmo, em convocar número expressivo de juízes de primeiro grau para ficar "na reserva" durante os julgamentos, assumindo prontamente o posto deste ou daquele desembargador, diante inclusive de suas ausências momentâneas, o que também pode fazer com que um processo seja julgado por uma turma que, embora não seja "extra", esteja, na ocasião do julgamento, composta apenas de "convocados".
Pode um TRF, por exemplo, julgar uma apelação cível, ou uma AMS, através de uma turma formada apenas e exclusivamente de juízes convocados?
Parece-me que não.
Nada contra os juízes convocados, evidentemente, mas esse tipo de procedimento subverte os princípios do juiz natural e do devido processo legal, tanto formal como substancial. Afinal de contas, a "turma extra" é composta, toda ela, de juízes que não chegaram ao tribunal pelo caminho constitucionalmente previsto, e nem estão ali apenas suprindo a falta de um ou outro desembargador. Um julgamento dessa natureza, aliás, nem pode ser atribuído ao Tribunal...
Essa questão, que se está repetindo em alguns TRFs, será apreciada proximamente pelo STF. Pelo menos é o que se depreende de seu mais recente informativo, no qual se lê:

Turmas Suplementares e Princípio do Juiz Natural
A Turma, acolhendo proposta do Min. Gilmar Mendes, deliberou afetar ao Plenário apreciação de habeas corpus no qual se discute a validade de julgamento de apelação realizado por turma suplementar do TRF da 1ª Região. Sustenta a impetração, na espécie, que a criação de turmas suplementares seria nula, porquanto tratar-se-ia de órgão jurisdicional anômalo — composto majoritariamente por juízes federais de 1º grau —, instituído mediante simples resolução daquela Corte (Resolução 5/2001). Afirma que a atuação simultânea dessas turmas com os demais órgãos fracionários do TRF da 1ª Região violaria o art. 4º da Lei 9.788/99 e a Resolução 210/99, do Conselho da Justiça Federal, já que extrapolaria os limites impostos para a convocação de juízes federais de 1º grau para auxiliar os magistrados integrantes dos tribunais. Por fim, alega ofensa ao postulado do juiz natural e da reserva legal e ao art. 118, § 4º, da LOMAN.
HC 83686/MG, rel. Min. Gilmar Mendes, 11.12.2007. (HC-83686)

Espera-se que o STF faça valer a Constituição e as leis, reconhecendo a nulidade do mencionado julgamento. Se isso não ocorrer, em breve os TRFs estarão com seu número de turmas multiplicado por diversos magistrados convocados, os quais, não obstante preparadíssimos, não atendem os requisitos exigidos pela Constituição para serem considerados Desembargadores Federais, e, por isso, talvez nem sempre tenham a autonomia e a independência destes, sobretudo em relação às causas em que é interessado o Poder Executivo, peça chave para a sua futura e eventual promoção.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Esclarecimento

Faço essa postagem só para esclarecer que o texto constante da postagem de Terça-feira, 11 de Dezembro de 2007 é o trabalho que elaborei na conclusão da disciplina "Formação do Pensamento Constitucional Brasileiro", ministrada pelo Professor Martônio Mont´Alverne Barreto Lima no Doutorado em Direito Constitucional da Unifor em 2007.2.

Ainda Einstein

As crianças invariavelmente ingressam na fase do "por quê?" por volta dos 3 anos de idade, e saem logo depois, não raro acompanhadas de observações impacientes de adultos insensíveis, que reclamam dessa curiosidade.
Sou fascinado por essa curiosidade, e sempre digo aos meus alunos que nunca deveríamos sair dessa fase. Quando vou com eles discutir qualquer tema, começo perguntando: - Por quê? Por que a prescrição é diferente da decadência? Por que o tributo é compulsório? Por que certos direitos devem ser assegurados na Constituição?
Não devemos apenas decorar informações, fatos, datas e números de leis e de decisões judiciais. Precisamos PENSAR, e estimular aos que nos estão próximos a fazer o mesmo.
Na dedicatória que fiz em meu mais recente livro, intitulado "Por que dogmática jurídica?", a ser lançado em meados de 2008 pela Editora Forense, peço à minha filha, atualmente com sete anos e ainda nessa fase, que dela nunca saia. Suas perguntas a mim são cada vez mais desafiadoras, e difíceis de responder. Mas nunca as deixo sem resposta. Ainda que tenha de consultar dicionários, enciclopédias ou, para ser mais moderno, o "oráculo" que é o google.
Nesse contexto, fiquei feliz, muito feliz, ao ler a biografia de Einstein, já mencionada em postagem anterior, e ver que ele tinha exatamente o mesmo pensamento. Considerava-se uma eterna criança, nesse ponto, e dizia sempre não ter nenhuma talento ou inteligênica excepcional, mas apenas uma enorme curiosidade...
Evidentemente não estou comparando a "criança" Albert Einstein, aliás bastante modesta naquela observação, comigo, com minha filha, com você leitor ou com qualquer outra pessoa. Apenas destaco que minha observação, de cunho meramente epistemológico, e intuitivo, já havia sido feita antes, por alguém cuja biografia dispensa qualquer consideração adicional, neste ponto, a mostrar que essa postura perante o mundo nos pode levar mais eficazmente a compreendê-lo e, se for o caso, torná-lo melhor.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Einstein

No caminho para o Rio de Janeiro, em face do enorme atraso de meu vôo, comprei, e estou lendo, "Einstein - Sua Vida, seu Universo", de Walter Isaacson, editado pela Companhia das Letras. É uma biografia de Einstein, que conta muito de sua vida pessoal, cujos detalhes foram revelados recentemente pela divulgação de sua correspondência e outros documentos pessoais.
O livro é excelente. Recomendo.
Depois faço postagem mais detalhada, sobre aspectos específicos do livro. Por enquanto, destaco apenas que sua parte inicial, e o que conta da personalidade de Einstein, é verdadeira aula de epistemologia. Vale a pena, e complementa qualquer leitura de Popper, Kuhn ou Bachelard.

Literatura

Faço essa postagem de Búzios, no Rio de Janeiro.
Vim a São Paulo assistir, em São José dos Campos, a formatura de minha sobrinha, que concluiu o curso de engenharia eletrônica no ITA, e resolvi dar uma "encompridada" no final de semana.
Bom, mas o que me impressionou, e me fez postar essas reflexões, foi o que vi no ITA.
Conhecendo as instalações, os alojamentos etc., vi que muitos dos alunos lêem livros de literatura.
Isso nem deveria ser motivo de surpresa para mim, mas infelizmente foi.
Digo isso porque os alojamentos que conheci, nos quais vi "Esaú e Jacó", "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Cem Anos de Solidão", eram de futuras engenheiras que, nas horas vagas, quando não estão lidando com cálculos infinitos, osciloscópios, programação em assembler ou C, entre outras coisas, passam o tempo lendo Machado de Assis e Garcia Marquez.
Não eram estudantes de literatura, nem de Direito.
Aliás, entre esses últimos...
Perguntei uma vez em uma turma de graduandos em Direito de um dos últimos semestres do curso se conheciam "Cem Anos de Solidão"; depois de algum tempo conversando sobre o assunto, vi que não sabiam nem quem era Dan Brown...
Não é de admirar, nesse contexto, que alguns tenham gramática tão sofrível, vocabulário pobre, ortografia idem e mesmo dificuldade em se expressar.
Se num curso de engenheiros a literatura é passatempo, entre futuros bacharéis - que têm na linguagem escrita, e não nos números, o principal meio de expressão - deveria ser obrigatória.
Alguém poderia objetar essa comparação, dizendo que o ITA é um centro de excelência, onde é difícil entrar, e ainda mais difícil sair com êxito, não se comparando às faculdades de Direito privadas com as quais o estou comparando.
É verdade, mas não justifica.
Essa diferença está nos alunos, e não nos equipamentos daquele conceituado instituto. E não propriamente em sua origem, pois muitíssimos no ITA são nordestinos, mas no interesse que têm pelo conhecimento.
Machado, Eça, Vargas Llosa e todos os demais bons escritores, de ontem e de hoje, estão ao alcance de todos. Basta ter interesse em lê-los. E aí é que está a grande diferença. Depende de cada um fazê-la grande, ou pequena (ou nenhuma).




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Atualização: fotos do momento em que fazia a postagem...








... e, dias antes, da aludida formatura:

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

E viva o fim da CPMF !

O Senado Federal está de parabéns. Refletiu os anseios da sociedade que o elegeu, representando-a, e pôs um fim à CPMF.
Aliás, melhor dizendo, não pôs um fim - estamos contaminados pela falácia criada pelo governo até a medula - mas apenas permitiu que ela tivesse o seu fim natural, deixando de modificar o texto constitucional para alterá-la.
O episódio da disputa em torno da possível prorrogação da CPMF, a propósito, esteve permeado de diversas falácias. Chegam a ser ridículas.
Eis algumas delas, a seguir brevemente comentadas:

Com o fim da CPMF o governo perderá 40 bilhões por ano...

Será mesmo?
Em primeiro lugar, não haverá propriamente uma perda, pois não se perde o que não se tem, e juridicamente não existe possibilidade de se arrecadar a CPMF depois de 31 de dezembro de 2007. Dizer que, sem a prorrogação, o governo perderia receita, é o mesmo que dizer que eu perderei meu jatinho Phenom 100, da Embraer, se esta conceituada empresa brasileira recusar-se a fazer uma doação para mim de um deles...
Em segundo lugar, há previsão de que outros recordes de arrecadação sejam batidos em 2008, com os tributos atualmente existentes, recorde este que superará a arrecadação atual em montante superior ao que corresponderia a CPMF.
E, em terceiro lugar, o fim da CPMF não fará com que se incinerem 40 bilhões de reais por ano. O dinheiro não será "perdido", mas apenas não será transferido do setor privado para o setor público, não sendo necessário que este último o aplique melhor do que o primeiro. Por outro lado, a desoneração do setor privado pode levá-lo a produzir mais, com o crescimento da economia e um aumento da arrecadação em relação aos demais tributos.

O governo deverá rever as previsões orçamentárias para os anos seguintes, para suprir o "rombo" gerado pelo fim da CPMF

Essa falácia consegue ser pior que a anterior.
De acordo com a Constituição vigente, agora e no momento da feitura das previsões orçamentárias em questão, não havia previsão ou autorização para que a CPMF fosse cobrada depois de 31 de dezembro de 2007. Assim, se uma lei orçamentária tinha essa previsão, é supinamente ridícula e flagrantemente inconstitucional. Seria como prever no orçamento tributos que ainda nem existem e que sequer foram criados, confiando em que o Legislativo os aprovaria. Aqui, além da desonestidade no discurso, há a flagrante violação ao Direito Financeiro, muito bem demonstrada na ADI ajuizada pelos Democratas, mencionada em postagem anterior deste blog.

Se a CPMF for prorrogada, o Governo destinará 100% para a saúde

Essa é de chorar.
A CPMF foi criada sob a justificativa de que seria usada com a saúde. Essa foi a sua bandeira. E, em seguida, passou a ser descaradamente desviada. Inúmeros constitucionalistas o apontaram. Referimos esse fato em nosso Contribuições e Federalismo (Dialética, SP, 2005). E agora se usa do descaramento de dizer que, uma vez aprovada, a contribuição será destinada - agora sim - à saúde. A confissão de que vinha sendo desviada. E, pior, se desde o início já devia ser assim, sendo essa a idéia que inspirou a própria criação do tributo provisório - que devia ter durado 11 meses e durou 11 anos - como acreditar que dessa vez seria verdade?

Se a CPMF for prorrogada, o Governo encaminhará ao Congresso projeto de reforma tributária

O que uma coisa tem a ver com a outra?
Por que o governo não encaminha proposta de reforma tributária na qual a CPMF seja um dos itens, a ser discutido globalmente com os demais?

O PSDB e o DEM precisam aprovar a CPMF para serem coerentes

As pessoas que usam esse tipo de argumento só podem achar que o povo é burro, pois não se concebe que sejam elas próprias - políticos traquejados - tão burras a ponto de acreditarem na sua procedência.
Pelo amor de Deus, a CPMF foi criada para ser provisória. Logo, PARA SER COERENTE, quem defendeu sua criação, e prometeu, à época, que ela seria provisória, NÃO PODERIA MESMO AGORA VOTAR PELA SUA PERENIZAÇÃO. Incoerente são os que dizem o contrário, igualando-se, na incoerência, ao PT.

Bom, por enquanto é só, porque estou com sono. Mas o rol das incoerências, das falácias e dos absurdos pronunciados em torno da CPMF é muito maior. Talvez em postagem posterior eu aborde a questão de que só aos ricos e aos sonegadores interessaria o fim da CPMF...

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

É POSSÍVEL FALAR-SE EM UM PENSAMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO? ANÁLISE DE ALGUMAS IDÉIAS DE TOBIAS BARRETO

1. Introdução
Não é raro, nem é de hoje, no Brasil, o gosto pelo que vem de fora. Talvez herança dos tempos coloniais, em que as novidades da “civilização” vinham da metrópole,[1] essa realidade pode ser confirmada na preferência de muitos por produtos importados, sejam carros, queijos, bebidas, médicos, remédios, professores, músicos, poetas, escritores ou artistas. E o mesmo tem sido observado em relação a teorias jurídicas, leis e decisões judiciais.
Essa característica presente em nossa sociedade suscita, então, o seguinte questionamento: pode-se falar em um pensamento constitucional brasileiro? Haveria, no Brasil, reflexão autêntica em torno dos problemas nacionais, e de como resolvê-los através do Direito, ou nosso pensamento jurídico seria apenas reflexo de idéias e pensamentos havidos no exterior?
Neste texto, busca-se uma resposta para essa questão. Para isso, traçam-se algumas linhas, inicialmente, a respeito da possibilidade, ou não, do surgimento de uma idéia inteiramente autêntica e original. Em seguida, analisam-se algumas idéias de uma personalidade do cenário jurídico nacional, Tobias Barreto, que viveu no período compreendido entre a independência e a proclamação da república. Apenas ele é examinado não porque sejam poucas as personalidades disponíveis para um exame frutífero, mas porque a amostragem por ele permitida pode já ser suficiente para que se responda à questão proposta.

2. A questão da originalidade das idéias
Antes de iniciar exame a respeito da existência, ou não, de idéias originais no Brasil, é preciso lembrar algo relacionado, de certa forma, com a questão do livre arbítrio e do determinismo. É o homem inteiramente livre, representando verdadeira exceção e quebra das relações de causa e efeito que dirigem o mundo, ou ele é inteiramente determinado – inclusive em suas mais diversas condutas, aparentemente livres – pelos fatores que o cercam?
Essa questão pode parecer não ter, mas tem, total pertinência com a indagação de se é possível falar-se em um pensamento constitucional brasileiro. Afinal, está relacionada com a possibilidade de, no Brasil, não obstante as “causas” representadas pelas teorias trazidas da Europa e dos Estados Unidos, os “efeitos” delas resultantes serem diversos. Está ligada, também, ao fato de o homem, sendo – no todo ou pelo menos em parte – o produto do meio em que vive, ser conseqüentemente um produto tanto das teorias surgidas em outros lugares, que influenciam seu pensamento, mas também de outros fatores que interagem com essas causas para lhes atribuir efeitos diversos dos que teriam onde surgiram inicialmente.
Na verdade, o homem é o único ser – observa Ernst Cassirer (1963:90) – que diferencia o real e o possível. Em suas palavras,
“Ni para los seres por debajo del hombre ni para los que se hallam por encima de él existe diferencia entre ‘lo real’ y ‘lo posible’. Los seres por debajo del hombre se hallan confinados dentro del mundo de su percepción sensible, son susceptibles a los estímulos físicos presentes y reaccionan a estes estímulos, pero no pueden formar la Idea de cosas ‘posibles’. Por otra parte, el intelecto sobrehumano, la mente divina no conoce distinción entre realidad y posibilidad.”

A faculdade de distinguir o real e o possível, vale dizer, de pensar nos planos ontológico e deontológico, diferencia o homem dos animais em geral, pois lhe confere a oportunidade de tentar, quando isto lhe é interessante, tornar real o possível. Também é essa a origem do livre-arbítrio, que decorre da circunstância de existirem várias possibilidades, cabendo ao homem, que as antevê, a escolha de uma delas. É o que Pontes de Miranda (2002:97) explica, por outras palavras, quando põe na representação do futuro a distinção entre o homem e os outros animais.
Mais recentemente, o tema foi revisitado por Searle (2005:19), para quem justamente
“...esa combinatoria de impulsos que se abre ante la conciencia (ante ciertos tipos de conciencia constructiva y capaz de anticipar experiencias posibles, como la conciencia humana) consiste precisamente lo que llamamos libertad”.

O fato de essa escolha ser influenciada por fatores externos à vontade não significa que ela não seja livre. Como há muito observa Tobias Barreto (2000:15), toda ação tem seus motivos, e se se pretender que a liberdade só exista na razão inteiramente desprovida de motivos, somente reconhecerá livre aquele que nenhuma liberdade tem, que é o desprovido de sanidade mental.
Não se há de exigir, portanto, que uma idéia seja algo inteiramente divorciada de tudo o que já se disse e escreveu durante toda a História para que seja considerada autentica. Tratar-se-ia, nesse caso, não de algo decorrente da livre inteligência autóctone, mas, provavelmente, de verdadeira insanidade.
Aliás, considerando-se que o conhecimento é, necessariamente, uma empreitada coletiva, é realmente muito difícil, para não se dizer impossível, que alguém tenha uma idéia, ou construa uma teoria, sem basear-se, no todo ou em parte, em noções, idéias e conceitos previamente estabelecidos por outras pessoas. A maior parte das idéias podem ter sua origem apontadas na Grécia antiga (VILLEY, 2003:65), sendo raras aquelas, pelo menos no campo da ciência política, como o federalismo e o sistema de freios e contrapesos, que podem ser consideradas verdadeiras contribuições da modernidade (BONAVIDES, 1995:180).
Dessa forma, estando o jurista brasileiro, de hoje e de ontem, inserido em uma realidade, será, por natural, influenciado por ela. Nessa realidade, diga-se, estão as idéias eventualmente colhidas em outros países e em outras épocas, mas também aqueles problemas da realidade local que podem fazer surgir novas idéias.
Só isso já seria suficiente para sugerir, com bastante ênfase, a existência de um pensamento constitucional autenticamente brasileiro. Mas não só. Em se tratando do Direito, que se exprime através de normas que são fruto da valoração de fatos, a atenção a peculiaridades locais faz-se ainda mais inafastável. Mas essa sugestão poderá eventualmente ser confirmada com o exame de um jurista brasileiro do Século XIX, que viveu no Nordeste e não fazia parte da elite de então. É do que cuida o item seguinte.

3. Tobias Barreto e o pensamento constitucional brasileiro
A personalidade que elegemos para análise um tanto mais detida, neste artigo, é Tobias Barreto, sergipano nascido em Vila de Campos do Rio Real, em 7/6/1829 e falecido em Recife, em 26/6/1889. E isso se deu por duas razões. A primeira foi a de que este autor foi bastante criticado por supostamente cultuar excessivo germanismo, que para alguns – ele próprio o afirma – beirava a patologia, o que pode sugerir a importação, por parte dele, de tudo o que se disse e produziu na Alemanha, sem maior originalidade. A segunda foi a circunstância de que, com ele, surgiu talvez a primeira “escola” jurídica no Brasil, a escola jurídica do Recife, que formou autores como Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda, exercendo inegável influência sobre o pensamento jurídico brasileiro no século subseqüente, o que merece ser analisado para que se verifique se nela havia algo de original e peculiar.
Quanto ao germanismo, não nos parece que seja ele demonstração de falta de originalidade.
Primeiro, porque à época a cultura brasileira – jurídica e geral - sofria forte influência francesa. Tanto que Tobias Barreto (2000:19) afirmava ser o republicanismo brasileiro “um belo pedaço de literatura francesa.” O surgimento de alguém que pusesse em dúvida a utilidade das idéias francesas, clamando atenção ao que se produzia na Alemanha, já é, só por isso, algo digno de nota.
Segundo, porque, conquanto amante da cultura tedesca, Tobias Barreto não deixava por isso de criticar seus expoentes, quando o considerava cabível. Se reputava boa uma idéia, isso se dava depois de ser ela aprovada por um rigoroso e lúcido julgamento. Em suas palavras (2000:18), sua “germanomania não é psiquiátrica. Tem boas razões.” Isso, por outras palavras, significa que, conquanto consultasse “autoridades” que escreviam em alemão, rendia-se aos argumentos destas quando procedentes, e não por conta de sua autoridade.
Quanto à segunda causa – o surgimento, com ele, da “Escola Jurídica do Recife” – isso está de algum modo relacionado com a primeira causa. Mostra atenção à cultura alemã, mas pugna pela necessidade de atenção aos fatos, o que reclama atenção à realidade local. Isso porque Tobias Barreto lançou as raízes, no Brasil, do positivismo jurídico de cunho sociológico, que dedicava atenção ao componente factual do fenômeno jurídico. Assim, ainda que neste ponto tenha sido influenciado por autores alemães, como Haeckel e Büchner, passou a pugnar, por isso, por uma maior atenção às particularidades locais quando da construção de uma teoria jurídica ou da defesa da adoção de determinado instituto alienígena no Brasil, o que mostra a contribuição para um pensamento originalmente brasileiro.
Aliás, ao posicionar-se contra a Teoria do Direito Natural, expondo sua própria maneira de ver o Direito (e suas relações com a Moral), Tobias Barreto talvez tenha antecipado o direito natural de conteúdo variável que terminou por difundir e abrilhantar o nome de Rudolf Stammler. A teoria de Tobias Barreto, a propósito, consiste em um positivismo moderado e muitíssimo superior ao normativista surgido algumas décadas depois, já no início do século subseqüente.
Isso porque, ao posicionar-se contra o Direito Natural, Tobias Barreto não deixa de admiti-lo, eis que admite regras ínsitas aos costumes de cada povo, que podem não ser necessariamente acolhidas pelo ordenamento estatal; repele-o, a rigor, apenas enquanto algo imutável e eterno. Em suas palavras (2000:32),
"Um direito natural tem tanto senso, como uma moral natural, uma gramática natural, uma ortografia natural, uma civilidade natural, pois que todas estas normas são efeitos, são inventos culturais."

Veja-se. Inventos culturais. Não necessariamente estatais. Mais adiante, no mesmo sentido (2000:90):
"... nunca veio ao espírito de ninguém a singular idéia de uma indústria, uma cerâmica, uma arte natural, significando um complexo de preceitos, impostos pela razão, ou inspirados por Deus, para regular as ações do homem, no modo de exercer o seu trabalho ou de fabricar os seus vasos, ou de construir seus artefatos. Seria esta uma idéia supinamente ridícula.
É isto mesmo, porém, o que se dá com relação ao direito."

A idéia, sempre presente em seus textos (BARRETO, 2000:144), é a de que não existe linguagem natural, nem dança natural, nem direito natural. Mas é natural que haja linguagem, dança e direito. Limitando-se a poucos exemplos, ele completa (2000:146):
"a civilidade tem regras; quem as descobriu? A dança tem regras, quem as descobriu? Ninguém ousará negar a presença da razão em todas elas; mas também ninguém ousará afirmar que haja um conceito a priori de civilidade, nem um conceito a priori da civilidade, nem um conceito a priori da dança, ou de outra qualquer arte. De onde vem, pois, o apriorismo do direito?"

Mas isso – e aí está o ponto ao qual queremos chegar – não significa que Direito seja somente aquele representado pelas normas editadas pelos órgãos do Estado. Para Tobias Barreto (2000:37),
"... os diversos processos de seleção social estão sujeitos à degenerescência, não só por desleixo, mas também por excesso de rigor nas suas aplicações. É o caso, quando a religião degenera em puritanismo, a gramática em purismo, o direito em formalismo, o próprio amor em galanteio, a ciência em pedanteria... Então importa apelar para a natureza, como meio de reação e salvação única possível.
Foi assim que se originou a teoria de um direito natural, em oposição ao estéril empirismo dominante, e o conceito mesmo de um estado de natureza não surgiu, senão como reativo contra um péssimo estado social. Porém ainda aí vai uma prova das relações antitéticas, em que se acham sempre os dois sistemas de forças, a natureza e a sociedade, de modo que muitas vezes um tem necessidade de ser corrigido pelo outro."

Cremos que, nessas palavras, há o reconhecimento de um “Direito Natural de conteúdo variável”, tal como o que celebrizou Stammler. E dito por um sergipano que viveu bem antes do início da produção do filósofo do direito alemão, tendo aliás morrido (1889) pouco depois da publicação do primeiro livro de Stammler (Die Behandlung des Römischen Rechts in dem juristischen Studium nach Einführung des Deutschen Reichs-Civilgesetzbuches - 1885).
Mas não só. Em relação à proteção dos direitos individuais, à relação do cidadão com o Estado e aos limites que se devem impor a este, Tobias Barreto afirma (2000, p. 59), ainda, que “o conceito da vida privada não pode surgir senão por meio da consciência de uma vida pública", algo muito semelhante ao que Habermas (1997, p. 127) propõe quando afirma que “os direitos do homem, fundamentados na autonomia moral do indivíduo, só podem adquirir uma figura positiva através da autonomia política dos cidadãos.”
Não é demais lembrar que Tobias Barreto escreveu aproximadamente cem anos antes de Habermas, sendo a edição que várias vezes referimos neste texto, datada de 2000, na verdade, uma reedição de textos publicados na segunda metade do Século XIX.
Também no que pertine às relações entre direito e moral, em passagem que muito se assemelha ao que escreve hoje Habermas, afirma Tobias Barreto (2000:61) que “a ordem jurídica não é mais do que a parte melhor acentuada da mesma ordem moral. Elas são complementos, não antíteses, uma da outra." Veja-se: enquanto Tobias Barreto refere-se ao Direito como algo “melhor acentuado” que a moral, mas que lhe complementa, Habermas (1997:144) assevera serem tanto o direito como a moral a disciplina de condutas em torno das quais se chega a um consenso por meio da razão comunicativa. Mas o direito, por ser “organizado”, é mais “preciso” do que a moral. Outra incrível identidade de idéias, sendo a do brasileiro cem anos mais antiga.
Em outra passagem coincidente, tanto Tobias Barreto (2000:84) como Habermas (1997:124), afirmam ser o contrato social, de Rousseau, uma falácia, por pressupor conceitos que só depois da celebração do suposto contrato teriam sido possíveis, como a própria idéia de contrato.
Mais especificamente em relação à reflexão constitucional no Brasil de sua época, Tobias Barreto – precisamente por seu temperamento crítico, analítico, e por sua insubmissão à autoridade – talvez tenha sido o primeiro autor a criticar a monarquia e o imperador. A esse respeito, Gilberto Freyre dizia ser Tobias Barreto um exemplo do "novo-culto", cuja postura agressiva e crítica visava a compensar seu complexo de inferioridade decorrente de sua condição de mulato. (FREYRE, 1998:448)
A respeito da monarquia constitucional, que a maioria à época elogiava, escrevia ele (2000:376) que
“Invocar a boa estrela, o destino, a felicidade, todos estes ídolos da fraqueza humana, para atribuir-lhes uma parte da glória que nos cabe, pela posse de um rei tão sábio e grande, a cujos erros e desmandos, diariamente apontados, se pretende aliás obviar, cerceando o círculo da sua ação e a influência da sua sabedoria, é o que há de mais pasmoso, como prova da estreiteza moral dos nossos homens de Estado e publicistas ilustres.".

Para ele, com a adoção de uma monarquia parlamentarista no Brasil, durante o reinado de Dom Pedro II, o Brasil "tornar-se-ia inglês em assunto do governo, continuando, porém, a ser ele mesmo em religião, ciência, indústria, comércio e os demais pontos e relações da vida social!..." (2000:379). Os defensores da monarquia parlamentarista, por não cuidarem das diferenças existentes entre o Brasil e a Inglaterra, seriam meros "glosadores subalternos de algumas máximas bebidas em livros que envelheceram." (2000:377)
Depois de apontar que o parlamentarismo inglês surgiu em razão de circunstâncias e particularidades da história do povo inglês, afirma que "o único meio de salvar e engrandecer o Brasil, é tratar de colocá-lo em condições de poder ele tirar de si mesmo, quero dizer, do seio da sua história, a direção que lhe convém." (2000:380).
Para ele, em vez de estudar a razão de ser do direito vigente na Inglaterra, os publicistas (inclusive europeus, e aqui reside a postura autônoma de Barreto para os criticar também) colhem o que há de mais superficial, as próprias normas em si mesmas. "Montesquieu mesmo, que deu o primeiro exemplo de admiração e aderência ao sistema de governo britânico, deixou-se arrebatar pela contemplação do exterior, não podendo proceder à análise interna do edifício." (2000:387).
É "estranhável e ridícula" a "pretensão de fundar, por outras partes, um estado de direito mais ou menos adequado ao tipo inglês, onde quer que se aplique a teoria respectiva." (2000:387). E Tobias Barreto não se reporta apenas ao Brasil:
"Ao rebentar a revolução francesa, os pedaços conhecidos da Constitucional Law eram tidos na conta de verdades políticas perfeitas: as quais, entretanto, mal puderam pouco tempo servir de barreira à tremenda irrupção dos interesses sociais. Como barreiras doutrinárias, foram logo postas de lado, para abrir caminho ao governo de Napoleão".

Em passagem reveladora dos fundamentos do "positivismo sociológico", que tanto influenciou, por exemplo, Pontes de Miranda, afirma Tobias Barreto (2000:383) que
"as instituições que não são filhas dos costumes, mas um produto abstrato da razão, não agüentam por muito tempo a prova da experiência, e vão logo quebrar-se contra os fatos. Indubitavelmente o nosso governo se acha em tal estado."

Para ele, os que defendem a monarquia constitucional parlamentarista incorrem em petição de princípio, pois dão por provado e admitido exatamente aquilo que se questiona. Afirmam que, embora o monarca seja irresponsável, os seus ministros não devem sê-lo. Mas não dizem porque, usando sempre de paralogismos.
Na verdade, segundo ele, o poder moderador surgiu na França, em um talvez reprovável retorno de idéias pré-revolucionárias, decorrente do insucesso, em um primeiro momento, das pretensões da revolução de 1789. Quis-se voltar à monarquia, mas as experiências liberais não permitiriam que isso ocorresse de forma integral. Daí falar-se na realeza dotada de um "poder neutro". "Os criadores e primeiros apóstolos da idéia do poder moderador eram homens que tinham visto a revolução mentir e faltar a todos os seus compromissos. No meio das mais duras decepções, houve mesmo um instante, em que Israel recordou-se do Egito; a sociedade francesa volveu os olhos para trás." (2000:397).
Até não concordamos com Tobias Barreto em relação à razão de ser do parlamentarismo no Brasil. Não nos parece que tenha havido mera cópia do modelo britânico. Em verdade, foram as condições locais que o propiciaram e o fizeram surgir. Tendo D. Pedro II assumido o Trono aos 14 anos, sem a experiência necessária ao exercício do "poder executivo" e do "poder moderador", os Ministros aos poucos foram ampliando seus poderes. Fez-se necessária, então, a criação de uma força unificadora, que pudesse exercer a função executiva. Foi quando a Lei 523, de 1847, criou o "Presidente do Conselho de Ministros", inaugurando uma forma de parlamentarismo, que, contudo, não tinha amparo na Constituição de 1824, eis que levada a efeito apenas no plano infraconstitucional.
Assim, o Imperador continua tendo, inalterada a Constituição de 1824, o poder moderador, que, como se sabe, implicava, na prática, a possibilidade de ele só se submeter aos checks and balances se quiser. Tanto que, muito jovem, apenas assiste, mas na maturidade passa a interferir ativamente na condução dos assuntos do Estado. Daí o interesse, nos publicistas da época (que Tobias Barreto critica acidamente), em discutir a natureza do poder moderador e a irresponsabilidade do Imperador acoplada à responsabilidade de seus ministros no âmbito do regime parlamentarista.
Seja como for, o estudo dos escritos de Tobias Barreto mostra que havia reflexão independente no Brasil, nessa época. Procedentes ou não, o que importa é que suas idéias revelam que não se fazia mera importação acrítica de pensamentos alienígenas. Em verdade, os pensamentos alienígenas eram conhecidos – e não poderiam nem podem deixar de sê-lo, sob pena de alienação – mas devidamente analisados e criticados à luz da realidade local, havendo, inclusive, pensamentos originais, só depois reproduzidos por outros autores de maior notoriedade.[2]

4. Idéias surgidas em países periféricos, em língua não muito difundida
Se é verdade que no Brasil – como certamente também em outros países emergentes, ou em desenvolvimento – há criatividade, novas idéias, criações e descobertas importantes, qual seria a razão de nem todas elas, ou quase nenhuma delas, receber o devido crédito, tanto no local onde surgem como no exterior?
Em relação ao Brasil, pode-se apontar, inicialmente, o obstáculo representado pela pouca difusão da língua portuguesa. Essa pouca difusão é responsável, por exemplo, no âmbito da literatura, pela maior importância atribuída, no cenário mundial, a autores como Victor Hugo, Charles Dickens e Edgar Allan Poe, e ao menor prestígio de autores como Machado de Assis, Eça de Queiroz e Olavo Bilac, que não são inferiores aos primeiros, e talvez até os superem. Não há razão para não supor que a mesma coisa ocorreu no âmbito das letras jurídicas, pelo menos até o último século.
Pode-se apontar, também, o pouco crédito que autores de centros mais prestigiados dão àqueles de locais considerados menos relevantes no cenário mundial. Isso ocorre, ainda hoje, no Brasil, em relação às suas regiões, e certamente ainda se verifica, tendo sido ainda mais intenso no passado, em face de países mais pobres diante de países mais ricos. Quem dá importante testemunho desse fato é Arnaldo Vasconcelos (2003:72), que observa haver Carlos Cossio sido considerado por Josef Kunz como um dos “muitos que alimentavam a literatura em espanhol sobre a obra de Kelsen”. Assim também – prossegue Arnaldo Vasconcelos (2003:72) – “William Ebenstein, que, em obra expositiva de mais de duzentas e quarenta páginas sobre a teoria pura, apenas o cita, em nota de pé de página, pela mesma razão de ser Cossio um dos autores que escreveram em espanhol sobre a obra de Kelsen.” E, mais recentemente, Robert Walter, “ao situar Cossio ao lado de muitos outros ‘professores’, entre os quais o nosso Miguel Reale, como simplesmente dedicados à ‘difusión del pensamiento kelseniano en Latinoamérica.” Ora, tais referências a Cossio – e a Reale – são verdadeiros disparates, considerando-se a magnitude e a originalidade da obra desses dois autores. Quanto a Reale, sua teoria tridimensional é muitas vezes superior à teoria pura de Kelsen. E, quanto a Cossio, fez ele importantes reparos na Teoria Pura, depois incorporados às suas subseqüentes edições da obra do próprio Kelsen.
Com a expansão e o progresso dos meios de comunicação, verificados nas últimas décadas, e um incremento, também observado, no interesse e no respeito pela diversidade cultural, esse quadro se pode reduzir (Friedman, 2005:62, 235 e passim)
Cabe ao estudioso do Direito no Brasil, portanto, utilizar-se dos avanços tecnológicos no campo do armazenamento, do acesso e da difusão do conhecimento para se manter em dia com o que se produz em outros centros, mas também para conhecer sua própria realidade, e divulgar, para os outros centros, o que em face dela se produziu.

5. Considerações finais
Em razão do que se viu neste pequeno texto, talvez se possa dar resposta afirmativa à questão proposta na introdução. Sim, é possível falar-se em um pensamento constitucional brasileiro. Na formação da consciência nacional, e na construção do ordenamento brasileiro, idéias estrangeiras foram inegavelmente utilizadas, mas foram devidamente ponderadas, criticadas e, quando isso foi necessário, adaptadas ou rejeitadas. E, por que não dizer, em muitos casos teve-se, aqui, idéias que só depois de algum (ou de muito) tempo foram verificadas em outras terras. Talvez por conta do desejo que muitos têm de apreciar o que é trazido de fora, nem sempre se constata, e valoriza, a autêntica criação local.
Assim, tal como se fez no passado, também no presente, e no futuro, as idéias havidas em outras partes do globo nos devem ser caras, mas nem por isso isentas da submissão a um necessário senso crítico, cujo parâmetro precípuo há de ser a diferença havida entre a realidade na qual surgiram e aquela para onde se pretendem sejam transplantadas. E, o mais importante: não se deve desvalorizar uma idéia, um pensamento ou uma proposição apenas por eventual ausência de paralelo em outros países. Afinal, se novas idéias são possíveis, o são onde quer que haja uma realidade e alguém que a reflita criticamente, o que ocorre – por que não? – também no Brasil.
Finalmente, a constatação de que se pode falar de um autêntico pensamento constitucional brasileiro, conhecedor das idéias oriundas de outros centros mas também atento à realidade local, conduz à conclusão de que se deve atribuir maior importância, no estudo do Direito, tanto em nível de graduação como de pós-graduação, à História do Brasil. Trata-se de algo indispensável à compreensão de como se formaram as idéias que hoje predominam no País, seja para que se conclua por sua adequação à realidade local, seja para que se conclua pela inadequação, hipótese na qual se terão instrumentos, também, para indicar qual seria a mais adequada alternativa a ser seguida.

Referências

BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000.
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10 ed., São Paulo, Malheiros, 1995.
CASSIRER, Ernst. Antropología filosófica. traducción de Eugenio Ímaz. México: Fondo de Cultura Econômica, 2.ed., 1963.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998.
FRIEDMAN, Thomas. O mundo é plano - uma breve história do Século XXI. tradução de Cristina Serra S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, tradução de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1.
MIRANDA, F. C. Pontes de. Garra, mão e dedo. revisto e prefaciado por Vilson Rodrigues Alves, Campinas: Bookseller, 2002.
SEARLE. John R. Libertad y neurobiologia. traducción de Miguel Candel, Barcelona: Paidós, 2005.
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito: repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Notas:


[1] Não se comporta nos limites deste texto, nem é o seu propósito, a perquirição de cunho histórico-sociológico a respeito das origens dessa preferência pelo alienígena. De qualquer sorte, a circunstância de virem as novidades da metrópole não deve ser a sua verdadeira causa, eis que os Estados Unidos da América do Norte, igualmente colonizados, revelam marcante preferência pelo que lá é feito, pensado e produzido, muitas vezes até ignorando o que lhe é exterior.
[2] Não estamos a dizer, aqui, que Habermas ou Stammler tenham copiados as idéias de Tobias Barreto. Nada disso. Pode ter ocorrido – e certamente foi o que ocorreu – de esses dois autores terem tido as mesmas idéias (ou idéias muitos semelhantes às) de Barreto, mas isso de qualquer forma mostra que no Brasil, e no Nordeste do Brasil, não se apenas copia o que é antes dito em outras localidades.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Temas para artigos (ou monografias) em matéria de Direito Processual Tributário

Invariavelmente, alunos - tanto de graduação como de pós-graduação - pedem-se sugestões de temas para que escrevam artigos ou monografias em torno do Direito Processual Tributário. Pensei em alguns, e resolvi indicar-lhes a lista abaixo, de forma evidentemente sugestiva e exemplificativa:

1. O objetivo das formalidades e a instrumentalidade do processo.
2. Efetividade da tutela jurisdicional. Processo civil de resultados. As reformas no CPC e a Fazenda Pública.
3. Responsabilidade de sócios e dirigentes de pessoas jurídicas e o redirecionamento da execução fiscal.
4. Exceção de pré-executividade: origem, fundamento e cabimento em matéria tributária.
5. Prescrição e o redirecionamento da execução fiscal.
6. Execução fiscal e prescrição. Noções gerais. Prazos. Forma de contagem. Hipóteses interruptivas e suspensivas.
7. Prescrição intercorrente na execução fiscal: conceito e fundamento. Distinção em relação à prescrição que antecede a propositura da ação. A questão de sua decretação de ofício.
8. Penhora insuficiente, direito de embargar e satisfação (ainda que parcial) do crédito tributário.
9. Ação cautelar para antecipar a garantia a execução retardada.
10. Questões polêmicas relativas aos honorários de sucumbência na execução fiscal. Fundamento. Natureza dos encargos do DL 1.025/69. Execução embargada e duplicidade de honorários. Extinção de execução embargada e dispensa de honorários.
11. Aspectos gerais da Cautelar fiscal. Cabimento. Finalidade. Efeitos do provimento que a concede. Indisponibilidade de bens de sócios.
12. Embargos à execução e a suspensão do processo executivo.
13. Embargos à execução e compensação em matéria tributária.
14. Mandado de segurança e compensação tributária. A Súmula 213 do STJ.
15. Mandado de segurança e o conceito de direito líquido e certo.
16. Medida liminar em mandado de segurança. Aspectos polêmicos. Suspensão da exigibilidade do crédito tributário, prescrição e decadência. Depósito como condição para a concessão de liminar. A questão da satisfatividade.
17. Mandado de segurança preventivo x mandado de segurança contra lei em tese.
18. A (des)necessidade da atuação do Ministério Público nos mandados de segurança em que se discutem questões tributárias.
19. Prazo para impetração do mandado de segurança. Análise de sua validade. Termo inicial na impetração repressiva. Prazo para impetração preventiva?
20. Mandado de segurança e a questão dos ônus da sucumbência.
21. Efeitos da coisa julgada formada no âmbito do mandado de segurança. Distinções, semelhanças e peculiaridades em relação à sentença declaratória/condenatória proferida em processo de conhecimento de rito ordinário.
22. Ação anulatória em matéria tributária. Aspectos gerais. Natureza. Cabimento. O art. 38 da LEF. A possibilidade de concessão de tutela de urgência.
23. Ação anulatória proposta após a execução fiscal. Cabimento. Utilidade. É possível suspender-se o curso da execução por meio de medida cautelar?
24. Ação declaratória. Fundamentos, finalidade e cabimento em matéria tributária.
25. Concessão de tutela antecipada em ação declaratória.
26. Ação declaratória, coisa julgada a relações jurídicas continuativas.
27. Fundamento constitucional do direito à repetição do indébito e restrições legais ao exercício desse direito.
28. Repetição do indébito tributário e o art. 166 do CTN.
29. Prazo para a restituição do indébito tributário. Natureza. Termo inicial. Efeitos intertemporais da LC 118/2005.
30. Execução de sentença e compensação.
31. A restituição do indébito tributário e o parcelamento de precatórios.
32. O direito à restituição do indébito tributário e a exigência de CND como condição para o pagamento de precatórios.
33. Consignação em pagamento em matéria tributária. Hipóteses de cabimento. Competência no caso de conflito entre Estados-membros ou Municípios situados em Estados-membros diferentes.
34. Tutelas de urgência: fundamento constitucional e requisitos para o seu deferimento. Satisfatividade e irreversibilidade.
35. Possível proliferação de liminares como fundamento para a denegação de medida liminar.
36. A compensação tributária e as tutelas de urgência. A Súmula 212 do STJ e o art. 170-A do CTN.
37. Honorários de sucumbência, causalidade, autolançamento e erro do contribuinte.
38. O art. 20, § 4.º, do CPC, e a condenação da Fazenda Pública no pagamento de honorários advocatícios de sucumbência.
39. Ônus da prova em matéria tributária: no processo administrativo; no processo judicial. A questão da presunção de validade do ato administrativo.
40. Ação anulatória com várias causas de pedir e o julgamento antecipado pelo acolhimento de uma delas, que não exige dilação probatória. Reforma pelo Tribunal de Apelação. Efeitos.
41. Emenda Constitucional n.º 45. Aspectos relevantes para o processo judicial tributário.
42. “Ações” de controle concentrado de constitucionalidade. Efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade de lei tributária mais benéfica ao contribuinte.
43. Coisa julgada e relações jurídicas continuativas.
44. Sentença transitada em julgado em discrepância com o posicionamento (atual ou futuro) dos Tribunais Superiores. Isonomia x segurança jurídica. Métodos e remédios para solucionar a tensão de princípios.
45. Modificações no CPC (Lei 11.382/2006) e seus reflexos na execução fiscal.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A história secreta da CPMF

Recebi de um amigo, pela internet, e considerou relevante divulgar:

"A história secreta da CPMF


Na semana passada, o alerta vermelho foi disparado em Brasília, quando o governo se deu conta de que poderá perder R$ 40 bilhões, caso o imposto do cheque, a CPMF, não seja prorrogado pelos senadores. Diante do risco, o presidente Lula assumiu a articulação política do governo,
ordenou aos ministros que entrem em campo e abriu os cofres federais. Só em emendas parlamentares, foram liberados R$ 514 milhões nos últimos dias. Essa era a parte visível da batalha da CPMF. A história secreta, no entanto, é mais pesada. Tem como protagonistas a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, tida como candidata à Presidência da República em 2010, e o senador José Sarney (PMDB-AP), o discreto ex-presidente que lidera a maior bancada do Senado. Hoje, a relação entre os dois é mais do que belicosa. Beira o ódio. "Vamos
enquadrá-la", diziam aliados de Sarney, na semana passada. "Querem derrubar gente nossa, mas não vão conseguir", rebatiam assessores da ministra.

O foco da disputa é o bilionário setor elétrico, que abocanhou a maior fatia do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, com R$ 274,8 bilhões dos R$ 503,9 bilhões de investimentos previstos até 2010 - e é pelas linhas de transmissão que passarão os principais contratos do
setor público e também as grandes oportunidades de financiamento de campanha. Na mira direta de Sarney estão dois homens fortes de Dilma: o ministro interino de Minas e Energia, Nelson Hübner, e o também interino presidente da Eletrobrás, Valter Cardeal. São cargos
estratégicos. O ministro lidera o conselho da Eletrobrás, enquanto o presidente da estatal chefia os conselhos de todas as subsidiárias, como Furnas, Chesf e Eletronorte. Ter os dois cargos, na prática, significa comandar mais da metade do PAC. E é esse o preço que o PMDB
cobra para dar seu apoio ao governo.

R$ 40 BILHÕES é quanto o governo perderá se ficar sem a CPMF em 2008
R$ 10 BILHÕES seria o prejuízo em caso de extinção do tributo por 90 dias

O PESO DO IMPOSTO
A CPMF é hoje a principal fonte de programas como o Bolsa Família

A MOEDA DE TROCA
O setor elétrico, reivindicado pelos aliados, concentra mais da metade das verbas do PAC

R$ 274,8 BILHÕES são os investimentos previstos em energia até 2010
R$ 55,1 BILHÕES é o volume de gastos em execução apenas em 2007

Na noite da quarta-feira 28, o clã Sarney deu uma demonstração de força. Enquanto o pai estava em Nova York , para o lançamento do seu livro Saraminda, a senadora Roseana Sarney (PMDB-MA) organizou um jantar com 15 dos 20 senadores do PMDB. O pretexto era homenagear o novo ministro da Articulação Política, deputado José Múcio (PTB-PE). A
conversa, no entanto, se deu em tom de cobrança. "Onde estão os cargos?", indagou a senadora. Cordato, Múcio afirmou que eles serão do PMDB, mas só depois da aprovação da CPMF - e em dois turnos. Dias antes do jantar, num encontro com o presidente Lula, Roseana já havia
feito a mesma exigência: "Afinal, o Ministério de Minas e Energia é ou não do PMDB?", disse ela. Colocado contra a parede, Lula aquiesceu. Foi então que se apresentou o nome do senador Edison Lobão (PMDB-MA). Procurado pela DINHEIRO, Lobão desconversou. "Não posso falar sobre um convite que não ocorreu", disse. Além dele, a família Sarney quer emplacar o também maranhense Astrogildo Quental, diretor da Eletronorte, na vaga de Cardeal.

Mantega prepara um Plano B, enquanto Roseana tenta nomear Lobão Na disputa entre dois aliados, PT e PMDB, o que prevalece é a mais absoluta desconfiança. A família Sarney tem receio de que o governo não cumpra o acordo e exige seus cargos antes das votações. Não custa
lembrar que o setor elétrico estava nas mãos do clã até o estouro da Operação Navalha, em maio deste ano, quando Silas Rondeau foi acusado de receber propinas na execução do Programa Luz para Todos, no Piauí. Os peemedebistas, que debitam na conta da ministra Dilma a degola de Silas, alegam que, nesta semana, a Chesf está abrindo envelopes com preços duas vezes maiores do que os executados no Piauí. Apesar disso, desistiram de reconduzir Silas ao Ministério, porque o governo sempre alegava que era necessário aguardar a denúncia da Procuradoria Geral da República. "Se é esse o problema, temos outros nomes", disse Sarney
a Lula, no início de novembro.

O governo, por sua vez, também teme ficar refém do PMDB, conhecido por sua voracidade. Nesta semana, por exemplo, o presidente de Furnas, Luiz Paulo Conde, tentava nomear diretores no fundo de pensão da empresa, que administra R$ 4,8 bilhões. Ele, por sinal, é outro que nutre aversão pela ministra Dilma. Ao conquistar o cargo, Conde travou um diálogo ríspido com a ministra. "Estou aqui graças ao PMDB, a senhora me sabotou e eu não lhe devo satisfações", disse ele. Acabou pagando caro. Como é Cardeal quem realmente manda em Furnas, Conde virou uma espécie de rainha da Inglaterra.

De certa forma, a crise atual guarda semelhanças com a confusão política de 2005. Naquele ano, o PT enfrentou um aliado, o PTB de Roberto Jefferson, e o que estava em disputa eram os Correios. Desta vez, porém, o butim é valioso. As "fabriquinhas de dinheiro", que é como Jefferson se referia aos cargos públicos, rendem mais no setor elétrico. "Perto do que está em jogo, o mensalão é café pequeno", diz o senador Sérgio Guerra (PSDBPE). A briga é perigosa. Para garantir a CPMF, o governo precisa de 49 votos - 20 do PMDB. Nesse quadro, o
apoio do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), cuja cassação será votada na terça-feira 4, passou a valer ouro. Por isso, ele deve ser absolvido. Em meio à confusão, até um desconhecido senador, Geraldo Mesquita (PMDB-AC), mediu forças com a Casa Civil. Na quarta-feira 28,
ele botou para correr o subchefe de Assuntos Parlamentares, Marcos Lima, que foi a seu gabinete prometer dinheiro para emendas. "Esse senhor entrou aqui sem ser convidado. Não lhe dei essa liberdade", acusou o senador.

O clima se deteriora e gera preocupações no Ministério da Fazenda. Pelo sim, pelo não, Guido Mantega suspendeu o envio ao Congresso da proposta de desoneração de impostos até R$ 6 bilhões. A Receita Federal, por seu lado, já sabe aonde vai buscar recursos para cobrir o
rombo. Para recuperar a arrecadação, poderá elevar a alíquota do Cofins dos atuais 7,6% para 10,29% ou aumentar de 12% para 20,2% a contribuição social sobre o lucro das empresas. Essas simulações foram feitas pelo próprio secretário Jorge Rachid. Sinal de que a Fazenda já
tem um Plano B para o caso de ficar sem a CPMF."

Fonte: Isto É Dinheiro, Publicado em: 03/12/2007 - 09:12

domingo, 2 de dezembro de 2007

Súmula 239 do STF

Sempre considerei esdrúxula a Súmula 239 do STF, segundo a qual "decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício, não faz coisa julgada em relação aos posteriores". Não há qualquer razão para que, em matéria tributária, a decisão transitada em julgado tenha efeitos limitados no tempo dessa forma.
Entretanto, deve-se examinar, na interpretação da súmula, a jurisprudência que lhe deu origem. Os acórdãos correspondentes. Caso se faça isso, ver-se-á que eram acórdãos que julgavam procedentes pedidos feitos em sede de embargos à execução fiscal. Decisões que afirmavam indevido determinado lançamento. Natural, portanto, que não produzissem efeitos sobre lançamentos posteriores, feitos em outros exercícios.

É o que tem decidido o STJ, como se depreende do seguinte acórdão, relatado pela Ministra Eliana Calmon:

"PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – ALCANCE DA SÚMULA 239/STF – COISA JULGADA: VIOLAÇÃO – ART. 471, I DO CPC NÃO CONTRARIADO.1. A Súmula 239/STF, segundo a qual "decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício, não faz coisa julgada em relação aos posteriores", aplica-se tão-somente no plano do direito tributário formal porque são independentes os lançamentos em cada exercício financeiro. Não se aplica, entretanto, se a decisão tratou da relação de direito material, declarando a inexistência de relação jurídico-tributária.2. A coisa julgada afastando a cobrança do tributo produz efeitos até que sobrevenha legislação a estabelecer nova relação jurídico-tributária.3. Hipótese dos autos em que a decisão transitada em julgado afastou a cobrança da contribuição social das Leis 7.689/88 e 7.787/89 por inconstitucionalidade (ofensa aos arts. 146, III, 154, I, 165, § 5º, III, 195, §§ 4º e 6º, todos da CF/88).4. As Leis 7.856/89 e 8.034/90, a LC 70/91 e as Leis 8.383/91 e 8.541/92 apenas modificaram a alíquota e a base de cálculo da contribuição instituída pela Lei 7.689/88, ou dispuseram sobre a forma de pagamento, alterações que não criaram nova relação jurídico-tributária. Por isso, está impedido o Fisco cobrar a exação relativamente aos exercícios de 1991 e 1992 em respeito à coisa julgada material.5. Violação ao art. 471, I do CPC que se afasta.6. Recurso especial improvido." (REsp 731.250/PE, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17.04.2007, DJ 30.04.2007 p. 301)

Essa decisão é interessante por várias razões. Sobretudo por reconhecer que:
a) a decisão passada em julgado produz efeitos para o futuro, enquanto permanecer a mesma situação de fato e de direito declarada na sentença, não se aplicando a Súmula 239 do STF, tendo a decisão lhe delineando muito bem o sentido e o alcance;
b) mera alteração formal na lei - mudança de alíquota, por exemplo - não significa alteração na situação de direito, se a decisão afirmou a invalidade do tributo como um todo.

Esse é o entendimento que há muito defendemos, seja em nosso Processo Tributário (São Paulo, Atlas), seja no livro de autoria coletiva publicado pelo ICET e pela Dialética, sob a coordenação do Prof. Hugo de Brito Machado.