segunda-feira, 31 de março de 2008

Três notas rápidas

Só três coisas, bem ligeiras.


A primeira: na mais recente RDDT (151), foi publicado o texto que escrevi com a Raquel, referido em postagem anterior, a respeito da (in)aplicabilidade do art. 739-A do CPC à execução fiscal.

A segunda: nessa mesma revista, foi veiculada importante decisão do STJ sobre o local da ocorrência do fato gerador do ISS, no AgRg no AI 903.224-MG.
Como se sabe, em face do art. 12 do DL 406/68, o STJ adotou interpretação inteiramente contra legem que, a pretexto de combater fraudes praticadas por alguns contribuintes, cria conflitos de competência praticamente insolúveis. É terrível: o prestador de serviços estabelecido em um Município presta serviços em outro, e termina sendo tributado pelos dois, um invocando a literalidade do art. 12 do DL 406/68, e o outro a jurisprudência do STJ. Se o pagamento for feito por fonte localizada em um terceiro Município, para completar, serão TRÊS cobranças do mesmo tributo. Se se recorre à ação de consignação em pagamento, cabível e adequada para casos assim, surgem problemas ligados à natureza continuativa de muitos serviços, e à própria Justiça competente, o que se complica no caso de Municípios situados em Estados diferentes.
Com o advento da LC 116/2003, esse problema foi resolvido. Tanto o das fraudes (com uma definição "ampla" e "econômica" de estabelecimento), como o do conflito de competência (reiterando-se que a tributação deve ocorrer no local onde situado o estabelecimento prestador do serviço, e ampliando-se as exceções a essa regra para mais casos em que é possível determinar onde o serviço é prestado). A questão, contudo, é que a jurisprudência nem sempre "enxerga" uma lei nova. Criado o precedente, o turbilhão do CTRL + C, CTRL +V às vezes faz com que o Judiciário não perceba que a lei mudou, e que aquela pilha enorme de processos para os quais se pensava já haver decisão pronta deve ser reexaminada.




Mas o STJ, em acórdão da lavra da Ministra Eliana Calmon, mostrou aguda percepção da mudança. Peço licença para transcrever, aqui, o comentário que eu havia feito ao art. 3.º da LC 116/2003 (no meu "Código Tributário Nacional - Anotações à CF/88, ao CTN e às LCs 87/96 e 116/2003"):



"Art. 3.º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador(1) ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:
(1) Local da ocorrência do fato gerador – Tendo em vista a natureza imaterial do “serviço”, muitas vezes é difícil determinar onde efetivamente o mesmo é prestado. Afinal, em questão judicial que percorre todas as instâncias recursais, o serviço de advocacia foi prestado em qual município? E o serviço de pesquisa, contratado pelo candidato à Presidência da República, em cuja feitura são ouvidas pessoas nos mais diversos municípios? Para resolver o problema, em atenção ao art. 146, I, da CF/88, o legislador complementar optou por eleger o local do estabelecimento do prestador do serviço com critério para determinar qual Município é competente para exigir o tributo correspondente (cf. D.L. 406/68, art. 12). “Cuida-se de opção do legislador, que instituiu uma ficção jurídica. O local da prestação do serviço, assim, está definido por ficção jurídica. Não se admite prova em contrário. O imposto, portanto, é devido ao Município em que tem estabelecimento o prestador, ou se não é estabelecido, onde tem domicílio. Ficaram, desta forma, resolvidas inúmeras questões que certamente seriam suscitadas, em casos como o de um advogado que tem escritório em São Paulo mas, eventualmente, presta serviços em Brasília, junto ao STJ ou ao STF.” (Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 172).
Aproveitando-se dessa disposição, contribuintes se estabeleceram formalmente em distantes municípios do interior, nos quais não eram tributados, ou submetiam-se a uma tributação mais baixa, e não obstante mantinham estrutura na capital e efetivamente prestavam serviços na capital. Em vez de detectar a fraude, e considerar como estabelecimento o local onde efetivamente se mantinha uma estrutura necessária à prestação do serviço (e não aquele formalmente designado em contrato social), o STJ preferiu IGNORAR a regra estabelecida no art. 12 do D.L 406/68, determinando fosse devido o imposto no local onde efetivamente prestado o serviço: “Embora a lei considere local da prestação de serviço, o do estabelecimento prestador (art. 12 do Decreto-Lei nº 406/68), ela pretende que o ISS pertença ao Município em cujo território se realizou o fato gerador. É o local da prestação do serviço que indica o Município competente para a imposição do tributo (ISS), para que se não vulnere o princípio constitucional implícito que atribui àquele (município) o poder de tributar as prestações ocorridas em seu território. A lei municipal não pode ser dotada de extraterritorialidade, de modo a irradiar efeitos sobre um fato ocorrido no território de município onde não pode ter voga. (...)” (STJ, 1.ª T, REsp 41.867-4/RS, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 25/4/1994). Restabeleceu, com isso, os conflitos que o legislador complementar tentou equacionar.
Merece transcrição, a propósito, a observação de Hugo de Brito Machado: “O Superior Tribunal de Justiça, a pretexto de evitar práticas fraudulentas, tem decidido que é competente para a cobrança do ISS o Município onde ocorre a prestação do serviço, sendo irrelevante o local em que se encontra o estabelecimento prestador. Melhor seria, porém, identificar a fraude, em cada caso. Generalizar o entendimento contrário à norma do art. 12 do Decreto-lei n. 406/68 implica afirmar sua inconstitucionalidade, o que não é correto, pois tal norma resolve, e muito bem, o conflito de competência entre os Municípios. A questão está em saber o que é estabelecimento prestador do serviço. O equívoco está em considerar como tal o local designado formalmente pelo contribuinte. Estabelecimento na verdade é o local em que se encontram os equipamentos e instrumentos indispensáveis à prestação do serviço, o local em que se pratica a administração dessa prestação. Adotado esse entendimento, as situações fraudulentas podem ser corrigidas, sem que se precise desconsiderar a regra do art. 12 do Decreto-lei n. 406/68” (Curso de Direito Tributário, 13.ed., São Paulo: Malheiros, p. 293)
O art. 3.º da LC 116/2003, dispositivo no qual a questão está atualmente tratada, reitera – contra a jurisprudência do STJ – que o critério para determinação do local da ocorrência do fato gerador é o local do estabelecimento prestador. Essa lei complementar, contudo, faz duas alterações importantes. Primeiro, define o que se deve entender por estabelecimento (art. 4.º), para fins de determinação do local no qual o ISS é devido. E, segundo, estabelece diversas exceções à regra de que o imposto é devido no local do estabelecimento. O DL 406/68 só previa como exceção a construção civil, enquanto a nova lei contempla as exceções dos 22 incisos de seu art. 3.º, todos serviços em relação aos quais é possível se determinar onde foram prestados.
Resta saber como o STJ decidirá a questão, relativamente ao período posterior à LC 116/2003, no que diz respeito aos casos não situados nas 22 exceções estabelecidas no art. 3.º dessa lei. Quando for o caso de aplicar o caput do citado artigo, data venia, a Corte não poderá continuar adotando o entendimento que sempre adotou, a menos que declare a inconstitucionalidade do dispositivo (e não nos parece que haja fundamento para isso)."


***


Tenho, em meu computador, arquivo que servirá, futuramente, para a segunda edição desse livro. Aliás, tenho o hábito de criar arquivo com o texto da próxima edição de cada livro que já escrevi, tão logo recebo a sua edição atualmente disponível, para poder, assim que lembrar ou tiver notícia de alguma coisa, proceder de imediato à atualização. Quando a edição esgota, não preciso ainda passar um bom tempo atualizando o texto, tarefa na qual muita coisa seria esquecida e perdida se fosse feita de uma só vez ao fim de cada edição.
Pois bem. Assim que recebi a notícia da decisão do STJ, apaguei o último parágrafo da anotação (que começa com "Resta saber...", e que propositalmente deixei marcado em azul na transcrição acima), e inseri o seguinte:
"Na edição anterior deste livro, chamávamos a atenção para esse ponto, vale dizer, para o fato de que a jurisprudência do STJ sobre o 'local da ocorrência do fato gerador do ISS' havia sido construída à luz do DL 406/68, e não da LC 116/2003. E tanto isso é verdade que, em momento mais recente, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça pronunciou-se nos seguintes termos: '(...) 1. Decisão agravada que, equivocadamente, decidiu à questão tão-somente à luz do art. 12 do Decreto-lei 406/68, merecendo análise a questão a partir da LC 116/2003. 2. Interpretando o art. 12, ‘a’, do Decreto-lei 406/68, a jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que a competência tributária para cobrança do ISS é do Município onde o serviço foi prestado. 3. Com o advento da Lei Complementar 116/2003, tem-se as seguintes regras: a) o ISS é devido no local do estabelecimento prestador (nele se compreendendo o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas); e b) na falta de estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII do art. 3º da LC 116/2003. 4. Hipótese dos autos em que não restou abstraído qual o serviço prestado ou se o contribuinte possui ou não estabelecimento no local da realização do serviço, de forma que a constatação de ofensa à lei federal esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. 5. Agravo regimental não provido.' (STJ, 2.ª T, AgRg no Ag 903224/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, j. em 11.12.2007, DJ de 7.2.2008, p. 1)
Como se vê, o STJ não chegou a conheceer do recurso por considerar que, em face das peculiaridades do caso (forma como a questão fora tratada no acórdão recorrido e na petiçaõ de recurso especial), isso dependeria do reexame de fatos e provas, o que não pode ser feito no âmbito do Recurso Especial. Deixou claro, de qualquer sorte, que o entendimento a respeito do local da ocorrência do fato gerador do ISS, antes construído a partir do DL 406/68, há de ser, como apontávamos na primeira edição deste livro, diferente em razão do art. 3.º da LC 116/2003."

Mas, e o leitor pode estar se perguntando: - E não eram TRÊS notas rápidas? A segunda já nem foi tão rápida assim, e, além disso, onde está a terceira?
A terceira: Vagando (Não é navegando não. Eu estava vagando mesmo...) pela internet, pesquisando em decisões do Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais, encontrei decisão que julga questão interessante, e faz remissão a esse meu livro, de Anotações ao CTN. Confiram a página 8 do documento que pode ser encontrado em http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/conselho_contribuintes/acordaos/2007/2/17709072.pdf

Ah... Ainda tinha uma quarta coisa, que lembrei agora. Depois de correr um pouco no último sábado de manhã, fui à livraria Acadêmica da Rua Pereira Filgueiras, procurar o livro "Ponto de Mutação", que eu lhes havia encomendado e já havia chegado. Na livraria, vi outros lançamentos, e terminei comprando também o "A Virtude Soberana", de Dworkin, e "O Direito e os Direitos Humanos", de Michel Villey, ambos da Martins Fontes. Neste último, há crítica sem tamanho à questão dos Direitos Humanos. Achei tão absurdo que não consegui não comprar, até mesmo em função do renome do autor, e do respeito que ele certamente merece. Não era uma crítica feita por qualquer irresponsável que sai escrevendo na internet o que pensa que sabe depois de ler a Teoria Pura do Direito. E até por uma questão epistemológica: não devemos nos fechar às refutações. Afinal, como observa Popper (com quem concordo inteiramente), o científico não se caracteriza por ser refutável?
Pensando nisso, comprei o livro, e o estou lendo. Ocorre que, até agora, não consegui concordar com praticamente nada do que o autor disse. E o pior: acho que a refutação será até fácil. Mas, como prometi que seriam três notas (e aqui já estaria eu metendo uma quarta), e como não terminei ainda de ler o livro, deixarei para uma próxima vez.

sexta-feira, 28 de março de 2008

O Ponto de Mutação

Uma das atividades solicitadas pelo Professor da disciplina de Metodologia do Ensino Jurídico foi a elaboração de um pequeno texto em torno do filme "O Ponto de Mutação", que referi em postagem anterior.
Vi novamente o filme, e produzi o texto abaixo. Já encomendei o livro, em torno do qual o filme foi feito, mas o prazo para a entrega do resumo esgotou-se antes da chegada do livro, pelo que tive de fazê-lo só a partir do filme mesmo.
Considerando a extensão e a profundidade do filme, e do livro no qual é baseado, é óbvio que o texto não cuida de todos os seus aspectos. Isso, aliás, seria impossível, epistemologicamente falando. Nem Capra o poderia. Mas eu nem pretendi mesmo isso. É apenas um "resumo" do filme, algo um pouquinho mais extendido que aquelas sinopses que são colocadas no verso das caixas de fitas ou DVDs de filmes. A maior diferença é que, aqui e ali, faço alguns comentários. Como ao final, quando comparo, muito rapidamente, a crítica atual da "civilização" com as idéias de Rousseau.
Aí vai:
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O Ponto de Mutação


Trata-se de filme baseado na obra The Turning Point, de Fritjof Capra, no qual um político norte-americano (Jack), tendo perdido as eleições e estando um pouco desorientado, liga para um amigo poeta (Thomas), americano, poeta, que atualmente vive na França e o convida para passar alguns dias na França. A história passa-se nos anos 80, durante a “era Reagan”.
Convite aceito, ambos vão então dar uma volta pelas redondezas, e chegam ao Mont Saint Michel, pequena cidade medieval situada em local que, quando a maré sobe, fica ilhado, circundado de água. Lá chegando, encontram Sonia, uma cientista que está a passear sozinha depois de um pequeno desentendimento com a filha adolescente, com a qual não se entende bem.
Quando os dois amigos estão conversando em torno de um grande relógio, discutindo sobre como o homem teria conseguido com ele medir o tempo, Sonia, que estava no mesmo recinto, ouve a conversa e é convidada a nela interferir, fazendo questionamentos aos dois. A partir daí, os três passam todo o dia discutindo questões existenciais, cada um por seu prisma, ponto de vista ou, numa linguagem Gadameriana, por seu horizonte histórico (de político, poeta e cientista).
A discussão entre os três se inicia com a influência da invenção do relógio (não de sol ou de areia, mas o relógio mecânico, com ponteiros, que mede horas, minutos, segundos etc.) sobre a visão de mundo do homem. Para Sonia, o relógio, que é um “espelho” ou “modelo” da natureza, confundiu o homem, que passou a ver a natureza como um grande relógio, ou seja, passou a pensar na natureza como uma reprodução ampliada de seu relógio, e não o contrário.
O curioso é como as visões dos três são incompletas e, por isso, insuficientes, sem, contudo, serem propriamente “erradas”. O político, preocupado com os aspectos pragmáticos, com a aceitação, pelo povo (do qual se depende numa democracia), de cada idéia discutida. O poeta e a cientista, críticos da política, sequer votam, e com sua omissão não ajudam a melhorá-la nem a implementar as idéias que defendem. O político, por sua vez, tem visão demasiadamente simplista das coisas. Mecanicista, nas palavras de Sonia.
Para Sonia, desde Descartes, a partir do iluminismo, com o chamado cientificismo, a sociedade tornou-se demasiadamente mecanicista. Vê o mundo como um espaço no qual coisas estão colocadas, de forma independente, coisas que podem ser montadas e desmontadas, relacionadas e separadas etc, quando na verdade o mundo é um sistema, devendo o universo em geral, e nosso planeta em particular, serem vistos como um organismo vivo– e não como uma máquina.
A questão não é, propriamente, criticar o cientificismo, Descartes e sua visão de mundo, mas apenas reconhecer que algum tempo se passou desde então, e referida visão tornou-se insuficiente, incompleta. Foi muito útil quando surgiu, para romper com o paradigma anterior, mas não pode ter a mesma utilidade para sempre. Há de ser, como toda obra humana, superada. E é disso que Sonia fala.
Examinando a realidade como um todo, como um sistema integrado, e não de forma fragmentada e departamentalizada, se pode tanto compreender melhor a causa os problemas (todos inter-relacionados), como, por conseguinte, trabalhar de forma mais eficaz a sua resolução. Sonia dá como exemplo o Brasil, que para pagar sua dívida externa desmata a Amazônia para produzir soja e carne, gerando efeito estufa, pobreza e problemas cardíacos decorrentes do consumo de carne vermelha. Todos os problemas – eis que a realidade, a economia, a biologia, a natureza etc. – devem ser visto como um sistema. Não é possível olhar isoladamente para problemas globais, tentando resolvê-los isoladamente. A visão mecanicista só vê cada problema isolado, e o resolve, “consertando” a peça quebrada. Mas como não vê o sistema, e as demais peças que estão conectadas com aquela que quebrou, e, por conseguinte, não corrige esse sistema, a peça quebrará de novo.
Sonia usa então o expressivo exemplo da medicina. Cada vez mais moderna, mas cada vez mais cara. As mais avançadas técnicas são acessíveis apenas a uma minoria, quando a saúde em geral seria melhorada com uma mudança nos hábitos alimentares. As pessoas, contudo, preferem se alimentar mal, e depois gastar com tratamentos, pois não vêem as interconexões.
Jack, então, suscita o problema visto por seu prisma político-pragmático: se ele, como Presidente, cortasse gastos militares, restringisse o consumo da carne, enfim, tomasse todas as medidas necessárias para resolver os problemas apontados por Sônia, nunca mais conseguiria se eleger.
Esse é, aliás, o problema apontado desde Platão em relação às democracias: o povo não quer aquilo que é ruim em um primeiro momento, mas pode ser melhor em um prazo mais longo. E os políticos, desejando agradar o povo, não fazem o seu melhor. Algo como o pai que, não querendo desagradar o filho, deixa de lhe ministrar remédio com gosto ruim mas eficaz no trato de doença que o aflige.[1] E é exatamente isso o que Sonia preconiza: informar e cobrar responsabilidade das pessoas (e não só dos políticos).
Sonia passa, então, a tratar de como seus conhecimentos de física a auxiliam a ter uma visão diferente do mundo. Uma visão ecológica, como ela diz, em oposição à visão cartesiana (de um universo newtoniano). Átomos têm pequenos núcleos, com os elétrons orbitando de forma muito rápida, sendo impossível precisar-lhes, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição (princípio da incerteza). Os orbitais (zonas onde estão os elétrons) os guardam e podem ser combinados com os orbitais de outros elétrons (gerando moléculas, reações etc.). Isso significa que algo aparentemente sólido não o é tanto, e está em constante “troca” com o que lhe está ao redor. A matéria, portanto, por mais sólida que pareça ser, no nível sub-atômico não passa de um conjunto de interconexões. Os elétrons formam um “campo de força” ao redor do núcleo difícil de ser comprimido, não obstante haja, entre os elétrons e o núcleo, apenas espaço vazio.
Sonia apela ainda para aspecto atualmente bastante frisado por diversos filósofos e cientistas (v.g., Carl Sagan, na série Cosmos, e Marcelo Gleiser, em A Dança do Universo, que demonstram inclusive a pouca nitidez que hoje atinge a linha divisória entre ciência e filosofia), que é o da semelhança entre as atuais descobertas da física e a sabedoria antiga, notadamente oriental. E ainda a compreensão pela sociedade ocidental, tardiamente, do acerto de certos valores antes tidos como “não-civilizados”, como, por exemplo, a proteção que os povos pré-colombianos dedicavam à natureza. Frisa, ainda, e por isso mesmo, a necessária preocupação ética que deve estar presente nos atos do cientista.
A teoria dos sistemas, segundo Sonia, pode ser aplicada à ecologia, à biologia, mas também à economia e à política. A idéia é não observar os objetos isolados, mas os objetos inter-relacionados de forma sistêmica. Colhendo uma árvore como exemplo, não deve ela ser vista dissociada do habitat, que é, para pássaros e insetos, ou do alimento, que fornece através dos frutos, para diversos animais. Esses animais, por sua vez, não deixam de ser agentes que espalham suas sementes por extensões mais vastas de território, que adubam suas raízes com seus excrementos e com seus próprios corpos, quando mortos etc.
O interessante é observar as diferentes visões dos personagens. Enquanto Sonia expõe suas idéias a respeito da realidade, decorrentes das descobertas da Física contemporânea e de sua aplicação a domínios como a ecologia e a economia, Jack analisa as implicações políticas (questionando se apenas em uma ditadura tais idéias poderiam ser todas implementadas com rapidez, e, não obstante, frisando as vantagens da liberdade e da democracia, apesar de tudo). Thomas, por sua vez, expõe o lado humano da questão. Afirma sentir-se igualmente constrangido em ser comparado a um sistema ou a um relógio. Questiona o lugar das relações entre pessoas, dos sentimentos, medos, raivas, ansiedades etc. E questiona ainda aspecto da mais alta profundidade epistemológica: a realidade, a vida, tudo será sempre infinitamente mais complexo e maior do que a explicação (ou a representação) que conseguirmos fazer com o uso de nossas teorias. Daí, para ele, a importância da arte, e da poesia.
Suponho que as idéias do filme podem ser comparadas a outras, surgidas em outros âmbitos do conhecimento, que formulam igual crítica à concepção iluminista da realidade e do papel do homem em face dela. Gadamer na Hermenêutica Filosófica e Einsten (e os físicos que o seguiram) na Física são exemplos disso. Não que as idéias iluministas sejam de todo ruins. São, como apontou Sonia, insuficientes, ou estão defasadas. Foram úteis à sua época, mas não podem continuar servindo, inalteradas, para sempre.
É preciso lembrar, contudo, que a História não é linear, e que as classificações nela feitas são muitas vezes arbitrárias. Não existem divisões estanques na realidade, mas apenas nas classificações que dela faz o homem (nessa sua visão mecanicista...). Merece referência, portanto, que a primeira crítica ao iluminismo, feita em sentido muitíssimo semelhante à do filme, e que à época fora até ridicularizada (embora tenha contado com a adesão, em certa medida, de Kant), foi formulada por ninguém menos que Rousseau. Bom exemplo das repercussões que tais idéias de Rousseau tiveram, no campo da literatura (como hoje têm no cinema), pode ser colhido no magnífico A cidade e as serras, de Eça de Queirós.
Notas:

[1] Talvez a solução esteja, como aponta Paulo Bonavides ao cuidar dos direitos fundamentais vistos em sua quarta dimensão, em se assegurar não só a democracia, mas o direito à informação, à educação e ao pluralismo. Quando as pessoas souberem do que Sonia diz, e passarem a concordar com ela, isso pode mudar a atitude dos políticos... Mas, para isso, é preciso que estes, de logo, colaborem, a fim de transformar o círculo vicioso em um círculo virtuoso.
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Se alguém assistiu ao filme e chegou a conclusão diversa, achando que eu "viajei" nas idéias acima, por favor, não deixe de se manifestar a respeito.

Teoria e Prática

Alguém pode até estranhar. Um blog que mistura hermenêutica, epistemologia jurídica, a jurisprudência do STJ sobre Direito Tributário, e referência a livro de Direito Tributário e Financeiro dedicado a provas e concursos?
Pois é... Sempre fiz essa mistura. Acho que não devemos nos impressionar tanto com a propalada distinção entre "teoria" e "prática", e os que dizem preferir apenas a última, porque a primeira "nem sempre funciona", terminam por involuntariamente fornecer eloqüente atestado de ignorância.
É claro que teoria e prática não coincidem. Nem poderiam. A teoria visa a compreender e aperfeiçoar a prática, que, por sua vez, destina-se a dar a concretude possível à teoria. A teoria, portanto, tem mesmo é que ser (um tanto) diferente da prática, para, tal como um aparelho ortodôntico, fazê-la melhor. Sobretudo no âmbito das ciências do espírito, que não raro lidam com a questão da liberdade humana. Afinal, de que serviria uma teoria que apenas descrevesse a prática, tal como é? De muito pouco, certamente... Não seria, para começo de conversa, evolutiva, pelo que, se só esse tipo de conhecimento fosse praticado, ainda estaríamos escrevendo em paredes de cavernas.
Não existem, por outro lado, ciências teóricas, opostas a outras ciências, que seriam práticas. Toda ciência - desde a Matemática até o Direito - tem uma formulação teórica, e uma aplicação prática.
E é incrível como um conhecimento aparentemente "teórico" ajuda, e muito, a resolver problemas "práticos"... E para demonstrá-lo, basta ver a dificuldade que alguns alunos, que não têm boa base em Teoria do Direito, têm para entender problemas "práticos" de Direito Tributário - que caem em concursos também! - como a diferença entre imunidade, isenção e não-incidência; a distinção entre hipótese de incidência e fato gerador; o problema da tributação dos atos ilícitos; o direito intertemporal em relação à norma que reduz prazo de prescrição; só para citar alguns exemplos.
Isso não é só um esclarecimento para o leitor do blog. É também um conselho para o aluno, cada vez mais comum, que desde os primeiros semestres do bacharelado (ou antes, ainda no colégio, em face do vestibular?) deixa o raciocínio de molho, usando apenas a capacidade de memorização. Não interessa pensar, mas apenas decorar o entendimento da CESPE sobre cada questão controvertida que se apresenta... Pensando assim, talvez - talvez - o sujeito consiga o sonhado cargo público, a estabilidade e o subsídio. Para quem só quer isso (pouco importanto inclusive se o cargo será bem exercido), tudo bem, embora se deva reconhecer que deve ser muito chato, e um sacrifício muito grande, pois é até mais difícil de entender quando não se sabe o porquê.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Jean Grondin

Para satisfazer, de forma imediata e despreocupada, pequenas dúvidas e curiosidades que nos assaltam eventualmente, o Google é uma excelente ferramenta. Qual é a capital de não sei onde? Qual a língua oficial de lugar tal? Quem era o pai de não sei quem? Qual o e-mail de fulano? Há filmes nos quais até já se usa o verbo "googled" (- I googled him and discovered that he is...) para designar o ato de submeter algo (ou alguém) ao crivo desse poderoso Search Engine.
O sucesso incomparável do Google, em relação a mecanismos de busca anteriores (v.g., Yahoo, Altavista etc.) decorre do método que ele usa para apresentar os resultados, que coloca em primeiro lugar aqueles provavelmente mais confiáveis, relevantes e interessantes. Para fazê-lo, ordena as incontáveis páginas a serem apresentadas pelo número de referências que recebem de outras páginas, considerando também a ordem que essas páginas, autoras das referências, têm.
É mais ou menos o critério usado, no meio acadêmico, para definir a importância de um texto. Quanto mais citado ele é, e quanto mais citados são os que o citam, melhor deve ser.
Evidentemente, é um critério que pode ter falhas, mas, para ser implementado de forma automática, é excelente. Devemos lembrar que o usuário, muitas vezes, não tem condições para (nem deseja) ler cada uma das milhares ou milhões de páginas que às vezes aparecem como resultado de sua busca, e o computador não tem como "ler" todas as páginas por ele e fazer um juízo de valor sobre seu conteúdo.
Pois bem, mas toda essa divagação é só para dizer que hoje, com o propósito de sanar uma dúvida a respeito da nacionalidade de Jean Grondin, autor de textos de Hermenêutica que tem nome francês mas escreve muito em alemão, "I googled him", e descobri, além da nacionalidade, e do motivo do nome e dos textos em alemão, o seu currículo e, o mais interessante, diversos textos escritos por ele, disponíveis on-line em formato DOC ou PDF. O endereço, cuja visita recomendo a quem tenha interesse por Hermenêutica, é http://www.mapageweb.umontreal.ca/grondinj/textes.html

LC 127


Pouco depois de lançado o livro de Comentários à LC 123/2006 (Estatuto das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), escrito por Gladston Mamede (Direito Empresarial), Irene Nohara (Direito Administrativo), Sérgio Pinto Martins (Direito do Trabalho) e por mim (Direito Tributário), foi publicada a LC 127/2007, que modificou um pouco o trato da matéria, especialmente em relação ao "Simples Nacional".

Decorrido tão pouco tempo desde o lançamento do livro, não será possível lançar, desde logo, uma segunda edição. Como as mudanças não foram tão profundas assim, será necessário aguardar o esgotamento da primeira edição, o que levará de um a dois anos...
Daí porque a Atlas decidiu disponibilizar, no seu site, o conteúdo da atualização, em PDF. Está no seguinte endereço, que aqui disponibilizo para facilitar a vida de eventuais leitores do livro:



terça-feira, 25 de março de 2008

Apropriação indébita previdenciária

Acabei de ver no informativo do STF:


Apropriação Indébita Previdenciária e Natureza


O Tribunal negou provimento a agravo regimental interposto contra decisão do Min. Marco Aurélio, que determinara o arquivamento de inquérito, do qual relator, em que apurada a suposta prática do delito de apropriação indébita previdenciária (CP, art. 168-A: “Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:”). Salientando que a apropriação indébita previdenciária não consubstancia crime formal, mas omissivo material — no que indispensável a ocorrência de apropriação dos valores, com inversão da posse respectiva —, e tem por objeto jurídico protegido o patrimônio da previdência social, entendeu-se que, pendente recurso administrativo em que discutida a exigibilidade do tributo, seria inviável tanto a propositura da ação penal quanto a manutenção do inquérito, sob pena de preservar-se situação que degrada o contribuinte.
Inq 2537 AgR/GO, rel. Min. Marco Aurélio, 10.3.2008. (Inq- 2537)


Essa notícia me motivou a trazer o tema à discussão.

Trata-se do seguinte: é constitucional o tipo penal previsto no art. 168-A do CPB? Haveria, de fato, APROPRIAÇÃO, ou será que o empregador não teria duas dívidas, ou dois credores? 92% do salário deve ser pago do empregado, e 8% deve ser pago ao INSS (hoje, Receita Federal)?


Sobre o tema, escrevemos - a Raquel e eu - no livro do ICET relativo às sanções penais tributárias, o seguinte:
"18.1) O art. 2.º, II, da Lei 8.137/90 e o art. 168-A do CPB representam, ou podem representar, hipótese de prisão por dívida tributária? Há como interpretá-los sem fazê-los entrar em conflito com o art. 5.º, LXVII, da CF/88? Por que a pena prevista no primeiro é inferior à imposta pelo segundo?
Quanto à apropriação indébita tributária e previdenciária, os dispositivos penais a elas pertinentes têm a seguinte redação:
“Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;
II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
(...)

A primeira questão que se coloca, então, é a de saber se não está prevista, nos artigos transcritos, hipótese específica de prisão por dívida tributária. A segunda, como já acenamos, consiste em indagar por qual razão a “apropriação” de contribuições previdenciárias enseja a aplicação de pena mais gravosa que a “apropriação” de outros tributos.
Quanto ao problema de saber se há, no caso, típico exemplo de prisão por dívida tributária, há quem afirme que não se trata de mera dívida, mas de apropriação, o que afastaria a incidência do dispositivo constitucional que veda a prisão por dívida. Não nos parece, contudo, que a questão possa ser resolvida de modo assim tão simplista.
Há apropriação quando o infrator, estando na posse de coisa alheia móvel em função do consentimento de seu dono, não lha devolve ou não a entrega a quem de direito animado pelo propósito de dela apoderar-se, ou seja, de dela tornar-se o proprietário. É necessário, portanto, que exista uma coisa móvel, e que essa “coisa” seja legitimamente posta sob a posse do infrator. Essa, aliás, é a grande distinção entre a apropriação e o furto, pois enquanto neste último o infrator subtrai indevidamente a coisa da esfera de disponibilidade de seu titular, na apropriação indébita a coisa é legitimamente entregue ao infrator, e a ilicitude está em sua não-devolução.
Naturalmente, deve estar presente, também, para que se caracterize a apropriação indébita, o propósito de tornar-se proprietário da coisa. Se esta não for entregue por razões diversas desse propósito do infrator de fazer-se proprietário, não há apropriação.
Antes de continuarmos examinando essa questão, entretanto, dois esclarecimentos se fazem necessários:
(i) a lei não é livre para batizar de apropriação o que apropriação não é, para, com mero jogo de palavras, tentar afastar a incidência de dispositivos constitucionais que vedam a prisão por dívida. Assim, não é porque o não pagamento do tributo está rotulado de “apropriação” que, só por isso, de apropriação realmente se tratará; e, o mais importante,
(ii) o fato de não se configurar a apropriação indébita não quer dizer que a conduta do infrator não seja ilícita, ou que a dívida não subsista e deva ter seu adimplemento obtido com o uso de todos os meios que a ordem jurídica oferece. Esse segundo esclarecimento é da maior relevância porque não são poucos os que, no debate dessa questão, confundem a configuração do crime com a idéia de que a dívida existe e deve ser paga. Age-se como se a conclusão pela inexistência de apropriação indébita fosse “absurda” porque liberaria o contribuinte para realmente para jamais pagar o que deve e tornar-se legitimamente o proprietário dos recursos que deveriam ser entregues ao Fisco. Uma coisa, porém, não tem nada a ver com a outra: o fato de não haver crime no mero não pagamento não quer dizer que o pagamento não deva acontecer.
Feitos esses esclarecimentos, examinemos se há, no caso, efetiva “apropriação”, no sentido técnico do termo.
De saída, contudo, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade do § 1.º, II, do art. 168-A do CPB, acima transcrito, por configurar nítida e indiscutível hipótese de prisão por dívida. As contribuições previdenciárias das quais o sujeito seja contribuinte e responsável, quando não recolhidas sem qualquer fraude ou ocultação, representam pura e simplesmente uma dívida tributária. O argumento de que foram consideradas despesas ou custos contábeis que relativos à venda de mercadorias, e que por isso mesmo teriam sido “embutidas” nos preços e pagas pelos consumidores, não conduz à conclusão de que seu não recolhimento implique uma apropriação. Isso porque não apenas as contribuições previdenciárias, mas todos os custos e despesas de um empreendimento são – ou pelo menos se procura que sejam – repercutidos nos preços dos produtos e serviços oferecidos à sociedade.
Assim, ao se admitir que o § 1.º, II, do art. 168-A do CPB não trata de clara hipótese de prisão por dívida, também ter-se-ia de admitir que qualquer dívida não paga, no exercício de qualquer atividade profissional ou econômica, enseja “apropriação”, sendo o correspondente inadimplemento passível de tipificação penal. Ao admitir tal conclusão, o art. 5.º, LXVII, da CF/88, e nada, equivalerão precisa e exatamente à mesma coisa.
Exemplificando, o advogado deve cobrar honorários que o permitam pagar o IPTU da sede de seu escritório, o ISS incidente sobre seus serviços, o material de escritório adquirido, a remuneração de uma secretária, de um contínuo, a ajuda de custo de um estagiário, a conta de energia elétrica e assim por diante. Não se pode pretender, por isso, que o não pagamento da conta de energia, porque se trata de custo já embutido dos honorários cobrados do cliente, seja tipificado como “apropriação”. Do contrário, repita-se, o não pagamento de toda e qualquer dívida contraída no âmbito de uma atividade econômica, se inadimplida, configuraria “apropriação”.
Entretanto, quanto ao caput, que trata de contribuição retida pelo sujeito na condição de responsável tributário, ainda se poderia falar em apropriação, eis que o responsável “retém” valor que a rigor deveria ter sido pago ao empregado, obrigando-se a repassá-lo ao Fisco.
Ainda nesse caso, porém, como é necessária a existência de “algo” a ser apropriado, afasta-se de plano, por não preencher o tipo, a hipótese na qual o contribuinte tem recursos para pagar apenas o “líquido” de sua folha de salários, não havendo recursos disponíveis para o pagamento das contribuições. Imagine-se, por exemplo, que o contribuinte tem folha de salários no valor de R$ 1.000,00, e a contribuição que deveria ser “retida” sobre tais salários é de R$ 200,00[1]. Tendo os R$ 1.000,00 em caixa, caso entregue os R$ 800,00 diretamente aos seus empregados, mas não recolha os R$ 200,00 à previdência, poderia-se falar na configuração da “apropriação”. Entretanto, caso o contribuinte esteja em dificuldades e só possua R$ 800,00, que entrega diretamente aos seus empregados, qual “coisa” ou “objeto” terá sido objeto da apropriação? Coisa nenhuma, não havendo crime à míngua de algo a ser apropriado. É claro que existe a dívida, que tem de ser honrada pelo contribuinte, se for o caso com a execução de seu patrimônio, mas não existe crime. Como aponta Vicente Oscar Diaz, “para no caer en error se debe considerar que, en primer lugar, solo puede decirse que existe falta de ingreso de retenciones cuando las mismas se hubiesen practicado realmente existiendo fondos líquidos para ello, porque de lo contrario se estaría en una ficción jurídica o en una aplicación por analogía contraria a los postulados del derecho penal.”[2]
Considerando, ainda, a necessidade da presença do dolo para a configuração do crime, só o propósito do contribuinte de apropriar-se, tornar-se proprietário dos valores. Se o pagamento não ocorre por outras razões, também não há crime (confira-se, a propósito, a resposta à pergunta 18). Nesse contexto, se o contribuinte não paga o tributo “retido”, mas escritura e declara ao Fisco a retenção e o seu dever de recolher o valor correspondente, não há a intenção de apropriar-se dele. E se a retenção é feita, mas não é escriturada nem declarada, há crime, mas sua tipificação já se encontra prevista no art. 1.º da Lei 8.137/90.
Fora disso, não há apropriação, mas uma dívida, e criminalizá-la também implica desrespeito ao art. 5.º, LXVII, da CF/88.
Não se afirme que o responsável pela retenção está, no caso, se apropriando de algo, porque isso na verdade não ocorre. E alguns exemplos o esclarecerão muito facilmente.
Suponha-se que uma pessoa jurídica faça um pagamento para uma pessoa física. Do valor contratado deverá ser retido o IRFonte. Assim, por exemplo, se uma sociedade comercial remunera um professor de Direito para a elaboração de um parecer jurídico, e são contratados honorários no valor de R$ 10.000,00, a contratante deverá pagar ao contratado R$ 7.250,00, e recolher R$ 2.750,00 de IRFonte.[3] Se o IRFonte não for recolhido, dir-se-á, estará configurado o crime previsto no art. 2.o., II, da Lei 8.137/90, ainda que não tenha havido omissão, fraude, ocultação, falsificação ou adulteração de qualquer livro, documento ou declaração fiscal. Mas será que houve mesmo apropriação?
Vejamos.
Se a pessoa jurídica contratante não tivesse pago nada do que contratara com o parecerista, teria havido apropriação? Não. Apenas subsistiria a dívida relativa aos honorários contratados.
E se a pessoa jurídica contratasse o pagamento dos honorários em duas parcelas, e pagasse apenas a primeira, mantendo-se inadimplente com a segunda, teria havido apropriação? Não. Apenas subsistiria a dívida relativa à segunda parte dos honorários.
Então, por que o parcelamento desses honorários, com a entrega de 72,5% ao prestador do serviço, e 27,5% ao Fisco credor desse mesmo prestador, configura apropriação? Sinceramente, não vemos qualquer diferença entre essa divisão da dívida, e o enquadramento jurídico do inadimplemento de qualquer das duas parcelas, e as duas divisões e inadimplementos apontados nos parágrafos anteriores.
Convém insistir, mesmo correndo o risco de sermos enfadonhos, que não se está aqui defendendo a licitude desse não pagamento. Não se está defendendo que os valores podem validamente permanecer com o devedor. Não se está afirmando que o inadimplemento é louvável, digno, moral, nada disso! Apenas se está pondo em dúvida a caracterização de algo diverso e mais grave que uma simples dívida, o que é coisa diversa.
A não ser assim, e dado ao termo “apropriação” o sentido coloquial e amplo que parece ser o empregado pelos artigos em questão, o não pagamento de toda e qualquer dívida será uma apropriação, tornando letra morta o disposto no art. 5.º, LXVII, da CF/88, que dispõe: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Nem discutiremos, aqui, o argumento fundado na literalidade do dispositivo, que se reporta apenas à prisão civil, pelo que a prisão penal estaria autorizada. Com a devida vênia aos que com ele se impressionam, o mesmo é completamente infundado, como demonstra Hugo de Brito Machado[4], em argumentos que poderiam ser assim sintetizados:
(i) os dispositivos constitucionais, notadamente os que tratam de direitos fundamentais, não podem ser interpretados literalmente;
(ii) a prisão civil é algo muito menos grave, e menos ofensivo à liberdade e à dignidade do preso, que a prisão penal. Se o inadimplemento de uma dívida não pode ensejar a primeira, com muito mais razão não pode, também, ensejar a segunda.[5]
Assim, e em suma, os artigos que cuidam da chamada “apropriação indébita previdenciária”, e do “não-pagamento de tributos retidos ou descontados”, podem em tese ser interpretados conforme a Constituição, caso se entenda que exigem, para a configuração do crime: (i) dolo específico, representado pelo propósito de apropriação dos valores, propósito este revelado pela prática de atos no sentido de ocultar a dívida correspondente, inviabilizando sua cobrança pelo Fisco; (ii) efetiva existência de valores com os quais o pagamento pudesse ocorrer.
Entendidos como a punição do mero inadimplemento, são inconstitucionais, como já decidiu, aliás, o Tribunal Regional Federal da 5.ª Região:
“Penal. Processual Penal. Habeas Corpus Preventivo. Trancamento de Ação Penal. Apropriação Indébita Previdenciária. Não Recolhimento de Contribuições Deduzidas. Ausência de Dolo Específico. Rejeição da Denúncia.
1. A lei penal não pode descrever como crime o mero não pagamento, posto que não é lícito ao legislador comum contornar proibição inserta na Lei Maior, que vedou a prisão por dívidas, ressalvadas as exceções que ela própria consagrou;
2. O crime de apropriação indébita previdenciária não se exaure com o mero deixar de pagar, exigindo dolo específico de se apropriar os valores, iludindo o Fisco, razão por que não comete o crime quem registra todos os débitos em sua contabilidade e não dispõe de ativos suficientes para a quitação dos tributos questionados;
3. A denúncia para ser apta deve conter a descrição de todos os elementos constitutivos do ilícito;
4. Ordem concedida para o trancamento da ação penal.”[6]

Em seu voto, o ilustre relator consignou:
“O ilícito da apropriação indébita previdenciária (seja na definição dada antigamente pela Lei n.º 8.212/91, seja na dada pelo novo art. 168-A do Código Penal) não pode ser havido como omissivo próprio, exaurindo-se com o inadimplemento. Se o não pagar constituísse o crime em questão, este seria inconstitucional. Se a Constituição interditou a prisão por dívida, entendendo que a liberdade é valor superior ao patrimônio, não poderia o legislador infraconstitucional superar a proibição e lograr o intento interditado pela Carta Política erigindo à condição de crime o não pagar. Com este expediente o legislador contornaria a vontade constitucional inserindo a proteção patrimonial acima da liberdade na medida em que o inadimplemento, não podendo ser combatido com a prisão civil, o seria com a prisão penal.
Para a configuração do crime não basta o não pagamento. Exige-se a existência do valor e, ou a intenção de apropriar-se dele, ou de iludir o Fisco, inibindo o lançamento. No caso dos autos, o Ministério Público não se preocupou em descrever tais elementos que são essenciais à existência do ilícito em foco. Ou dito de outra forma, a conduta descrita na denúncia não configura ilícito penal.”[7]

Em outro aresto, o mesmo TRF da 5.ª Região deixou claro que a fraude, a ocultação de fato, ou adulteração de documentos, são elementos indispensáveis para caracterizar a “apropriação”. Entendeu, a nosso ver com inteiro acerto, que “o procedimento adotado pelo acusado de registrar na contabilidade da empresa, todos os seus débitos, revela-se incompatível com a intenção de se apropriar dos valores das contribuições.”[8]
Essa interpretação conforme a Constituição, porém, pode gerar incongruências relativamente às penas fixadas, notadamente entre o art. 1.º, e o art. 2.º da Lei 8.137/90, o que pode recomendar efetivamente a declaração de inconstitucionalidade do inciso II do art. 2.º referido.
Realmente, e aqui passamos a responder a segunda parte da pergunta, o art. 2.º, II, da Lei 8.137/90 impõe pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa para a retenção e o não-pagamento de tributos e contribuições de uma maneira geral, enquanto o art. 168-A do CPB impõe pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa, para a retenção e o não-pagamento de contribuições previdenciárias, distinção para a qual não parece haver justificativa plausível.
Poder-se-ia dizer que existe um “valor social” mais forte subjacente às contribuições previdenciárias, mas isso não é justificativa para a diferenciação. Com efeito, os impostos em geral também são utilizados para finalidades de grande importância social. E, além disso, o art. 2.º, II, da Lei 8.137/90 abrange também outras contribuições, como a COFINS, a CSLL e a CPMF, que têm finalidade social tão ou mais importante que as contribuições especificamente previdenciárias.[9]
Há, então, tratamento penal desigual para situações equivalentes.
Duas soluções, aqui, são possíveis.
Uma é entender que o art. 168-A do CPB é inconstitucional, por violação ao princípio da isonomia, o que faria a “apropriação indébita previdenciária” subsumir-se ao tipo – e submeter-se à pena – do art. 2.º, II, da Lei 8.137/90. Essa solução parece-nos correta caso se entenda a “apropriação” com a amplitude que foi combatida na resposta à primeira parte desta pergunta, ou seja, abrangente realmente do mero inadimplemento, desacompanhado de fraude, equivocadamente considerado como uma “apropriação”.
Entretanto, como essa maior abrangência ao conceito de “apropriação” nos parece inconstitucional, sendo indispensável para a configuração do tipo que os tributos “retidos” não sejam pagos em virtude de fraude, omissão ou adulteração de documentos, lançamentos contábeis ou declarações etc., propomos solução diversa para o citado conflito de normas.
Não é possível impor à apropriação, considerado o tipo em interpretação conforme a Constituição, como delito menos grave que o previsto no art. 1.º da Lei 8.137/90. Ou o crime é o mesmo, ou a apropriação é mais grave. Não menos. Não há, portanto, como interpretar o art. 2.º, II, da Lei 8.137/90 conforme a Constituição, pois não faria sentido nele estar tipificada conduta igual ou mais grave que a do art. 1.º, com a imputação de pena menor, o que não ocorre caso o mesmo seja simplesmente suprimido da ordem jurídica por vício de invalidade, hipótese na qual a conduta nele tipificada passaria a estar abrangida pelo art. 1.º. da mesma lei. Essa solução faz inclusive desaparecer o conflito decorrente da diversidade das penas para ilícito da mesma natureza, pois tanto o art. 1.º da Lei 8.137/90 como o art. 168-A do CPB impõem a pena de reclusão de 2 a 5 anos, e multa.[10]
NOTAS

[1] Os valores são fictícios, apenas para facilitar o exemplo, e não necessariamente guardam relação com as alíquotas atualmente em vigor.
[2] Vicente Oscar Diaz, “Criminalizacion de las infracciones tributarias”, artigo publicado no volume de apoio das XIX Jornadas Latino-Americanas de Direito Tributário, Lisboa: ILADT, 1998, livro 4, p. 92.
[3] Não consideramos, no exemplo, para facilitar o cálculo, as deduções relativas ao limite de isenção, e ao intervalo submetido à alíquota de 15%.
[4] Hugo de Brito Machado, Estudos de Direito Penal Tributário, São Paulo: Atlas, 2003, p. 21 e ss.
[5] Parece-nos completamente sem razão, data maxima venia, o argumento segundo o qual a criminalização da mera dívida tributária seria juridicamente possível porque “a garantia constitucional excludente da prisão por dívida decorre do inadimplemento da relação obrigacional situada no campo do Direito Privado. Já a sonegação situa-se no campo do Direito Público, alcançando seu objeto a própria política econômica, afetando o patrimônio público, repercutindo na arrecadação, com reflexo nas atividades do Estado...” (Ac un da 3ª T do TRF da 1ª R - ACr 96.01.04926-6 - Rel Juiz Fernando Gonçalves - DJU II de 19.08.1996, p.58561). Ora, a vedação constitucional não diferencia credores “privados” de credores “públicos”. Além disso, em um Estado que se pretende Democrático de Direito não se concebe que ser devedor de um empregado, de um fornecedor, ou de um prestador de serviços não possa ser considerado crime, mas ser devedor do Poder Público o seja. Não bastasse a flagrante violação ao princípio da isonomia, a própria ordem jurídica coloca créditos de natureza “privada” em posição privilegiada relativamente ao crédito tributário, no caso de insolvência da empresa.
[6] Ac un da 2.ª T do TRF da 5.ª Região – Rel. Des. Fed. Paulo Roberto de Oliveira Lima – HC 1.549-CE – Impetrante: Schubert de Farias Machado – Impetrado: Juízo Federal da 12.ª Vara, Fortaleza/CE – Paciente: (...) – DJU II de 20.05.2003, p. 649.
[7] Fls. 298 dos autos do HC 1.549-CE – Processo n.º 2002.05.00.026441-5 – Ementa publicada no DJU II de 20.05.2003, p. 649.
[8] Ac un da 1.ª T do TRF da 5ª R - Rel.: Juiz Ubaldo Ataíde Cavalcante - Apelação Criminal n° 1.745/AL (97.05.19560-9) - j. 02.12.00 - DJU 2 de 12.5.2000, p.510 – Revista Dialética de Direito Tributário n.° 58, p.196.
[9] Confira-se, a propósito, Heloisa Estellita: “O Princípio Constitucional da Isonomia e o Crime de Omissão no Recolhimento de Contribuições Previdenciárias (Art. 168-A, § 1.º, I, Código Penal)”, em Direito Penal Empresarial, coord. Heloisa Estellita, São Paulo: Dialética, 2001, p. 93 e ss.
[10] Subsistiria, é certo, a inconstitucionalidade do tratamento diferenciado dado às hipóteses de extinção da punibilidade, como aponta Heloisa Estellita no trabalho antes referido "




Convite - 30 anos do Mestrado em Direito da UFC

Recebi por e-mail e estou repassando:


"CONVITE


O Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UniversidadeFederal do Ceará - UFC - convida aos professores, ex-professores,mestrandos, ex-mestrandos e toda a comunidade juridica do Estado doCeará para a Sessão Comemorativa pelos trinta anos de sua criação.
Na oportunidade, serão proferidas palestras pelos Professores-Doutores Joaquim Salgado Filho e Marcelo Campos Gallupo.
DATA: Dia 28 de Março de 2008 (sexta-feira)
HORÁRIO: 9h
LOCAL: Anfiteatro Willis Santiago Guerra Filho, Faculdade de Direito, UFC. Praça Clóvis Beviláqua, s/n - Centro - CEP - 60.035-180, Fortaleza- Ceará.
PALESTRANTES: Professor Doutor Joaquim Carlos Salgado. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da UFMG, PUC-Minas e Faculdade Milton Campos.
Professor Doutor Marcelo Campos Galuppo. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, Professor da UNA (Belo Horizonte), Presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e de Pós-graduação em Direito - CONPEDI. Coordenador de Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas, Presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologiado Direito. Na ocasião, serão vendidas camisas e demais brindes comemorativos aos 30anos do curso de Mestrado, com edição será limitada. O convite gráfico se encontra no arquivo em anexo. Contamos com a presença de todos.
Atenciosamente,
Professor Doutor João Luis Nogueira Matias
COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNIVERSIDADEFEDERAL DO CEARA - UFC"

quinta-feira, 20 de março de 2008

Matéria orgânica em exoplaneta


Outra postagem que parece não ter nada a ver, mas pode terminar tendo...


A NASA descobriu, através do telescópio Hubble, a existência de moléculas orgânicas (metano) em exoplaneta do tamanho de júpiter.

Exoplaneta, como se sabe, é termo utilizado para designar planetas que orbitam outras estrelas que não o nosso Sol, vale dizer, planetas que compõem ou formam outros sistemas planetários que não o sistema solar.

A descoberta é relevante. Não se trata, ainda, da descoberta de vida, mas o simples fato de ter sido descoberto ser normal a existência de planetas em torno de outras estrelas, e, agora, a descoberta de matéria orgânica nesses planetas, torna muito mais plausível o que antes estava predominantemente no campo da especulação: a existência de vida fora da Terra.

Não estou - por favor! - falando de UFOs, OVNIs ou outras maluquices do gênero. O fato de muitos lunáticos terem se ocupado do tema da vida extraterrestre circundou-o de preconceito, quando na verdade se trata de assunto que pode ser analisado cientificamente, com seriedade, como qualquer outro.

E a descoberta de vida em outro planeta, ainda que de natureza microbiológica e rudimentar, romperia diversos paradigmas no plano filosófico e religioso, com interferência em todos os setores do comportamento humano. Basta lembrar o quão revolucionária foi a superação das teorias geocêntricas. Só que, no caso atual, o impacto seria muito maior.

Terminei!....

Concluí o texto. Posso agora viajar tranqüilo. Só uma revisão ortográfica, e já o remeterei. Agora, nos próximos dois dias, cuidarei de ler assuntos mais filosóficos, além de pretender me ocupar também de outras coisas, como, por exemplo, do assunto do vídeo abaixo:



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As respostas que dei foram as seguintes:

1) À luz da Constituição (art. 5º, inciso LV), seria possível a legislação infra-constitucional reduzir o conceito de "ampla defesa administrativa e judicial", refletido na legislação ordinária em vigor em 5 de outubro de 1988? Trata-se de um conceito flexível, subordinado à legislação ordinária, ou os meios então existentes não poderiam ser restringidos, sob pena de violação à ampla defesa constitucionalmente assegurada?
Não, a legislação infraconstitucional não pode reduzir o próprio conceito de ampla defesa, seja no âmbito administrativo, seja no âmbito judicial. São admissíveis apenas restrições ao exercício desse direito, e mesmo assim somente quando forem indispensáveis ao razoável exercício desse mesmo direito – ou de outros direitos também fundamentais - por outros cidadãos. Exemplificando, a legislação pode estabelecer prazo (desde que razoável) para o oferecimento de defesa, pode determinar qual a autoridade competente para apreciá-la (tornando, por conseguinte, incompetentes outras que não a designada), e assim por diante.

2) A Lei 11.382/06, que alterou as disposições do CPC sobre execução de títulos extrajudiciais, revogou a Lei 6.830/80? Considerando a resposta ofertada, os embargos à execução fiscal possuem efeito suspensivo? Qual o prazo para sua interposição?
Não. A Lei 6.830/80 continua em vigor, e, por ser norma mais específica, evidentemente não é atingida por uma outra, mais recente, que altere, como a Lei 11.382/06 alterou, o Código de Processo Civil. A nova disposição tem aplicação apenas subsidiária no âmbito da execução fiscal, vale dizer, pode ser invocada diante de omissões da lei de execuções fiscais.
Considerando essa primeira parte da resposta, os embargos à execução fiscal possuem, sim, efeito suspensivo, não se lhes aplicando o disposto no art. 739-A do CPC. Os arts. 17, 18, 19, 24 e 32 da Lei 6.830/80 não deixam espaço para discussão razoável a esse respeito. O prazo para a sua interposição continua sendo de 30 (trinta) dias
.

3) É válido proceder à penhora "on line" antes de intimado o contribuinte para promover a garantia do juízo?
Não. O art. 185-A do CTN é muito expresso ao condicionar o deferimento da indisponibilidade on-line de bens à citação do executado, ao não-oferecimento de bens por parte deste e ao insucesso na tentativa de se localizarem outros bens a serem penhorados. Vale dizer, só em último caso tal grave medida pode ser tomada.

4) Como deve ser interpretada a Súmula 317 do STJ ("É definitiva a execução de título extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os embargos")? Caso a o recurso do devedor seja provido e a Fazenda Pública venha a resultar definitivamente vencida, como deverão ser ressarcidos os prejuízos causados ao contribuinte? Que verbas devem compor esse ressarcimento? O pagamento dessa indenização está sujeito ao disposto no art. 100 da CF?
Entendemos que a citada Súmula deve ser considerada pertinente para as execuções de títulos extrajudiciais em geral, disciplinadas pelo CPC, sendo inaplicável às execuções fiscais.
A razão de ser desse entendimento reside precisamente na resposta às perguntas subseqüentes, contidas na mesma pergunta. Com efeito, vencida em sede recursal, a Fazenda deverá certamente devolver a quantia indevidamente recebida pelo normal seguimento da execução, acrescida de eventual reparação de danos morais e, se for o caso, da diferença entre o preço da avaliação e o da arrematação, se no leilão o bem restar arrematado por valor inferior àquele pelo qual fora avaliado. Mas isso terá, necessariamente, de ocorrer por intermédio de precatório, nos termos do art. 100 da CF/88.
Por tudo isso, parece-nos mais razoável que se aguarde o julgamento definitivo dos embargos para, só então, dar seguimento à execução. Essa idéia, aliás, está claramente subjacente aos arts. 17, 18, 19, 24 e 32, § 1.º da Lei 6.830/80.

5) Pode o fisco a despeito das prerrogativas que cercam a cobrança do crédito tributário, aplicar sanções políticas ao devedor, tais como levar a protesto a certidão de dívida ativa ou determinando a inclusão de seu nome no SERASA?
Não. O protesto da CDA e a inclusão do nome do contribuinte supostamente devedor no SERASA constituem evidente desvio de finalidade. O protesto não é necessário – como o é em relação aos títulos de crédito – para que a Fazenda possa executar os “co-obrigados”. Já o SERASA, assim como qualquer outro cadastro de inadimplentes, tem como propósito permitir a quem está prestes a celebrar contrato saber se o contratante tem crédito, viabilizando ao consulente do cadastro a avaliação do risco do negócio para, se for o caso, não o celebrar. No caso do débito tributário, tanto a inadimplência não configura necessariamente quebra da confiança (o débito não nasceu da vontade do devedor) como o fato de o contribuinte discutir débito com o qual não concorda não significa que vá discutir, também, aqueles que contratou voluntariamente.

6) À luz da Constituição, é possível a instituir validamente a execução do crédito tributário por autoridade diversa da jurisdicional?
Não. A execução forçada do crédito tributário por autoridade diversa da jurisdicional implicaria ofensa ao disposto nos incisos XXXV, LIV e LV da CF/88.


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O texto ficou com 23 páginas (fonte 12, espaço simples), de sorte que não vou postá-lo na íntegra. Deixarei para expor as suas razões em eventual debate em torno das respostas, em face do qual poderá ser necessária a exposição dos fundamentos das respostas.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Execução Fiscal

Fui convidado pelo Professor Ives Gandra da Silva Martins para escrever artigo para compor o livro de apoio do próximo Simpósio Nacional de Direito Tributário, evento realizado anualmente pelo Centro de Extensão Universitária - CEU.
A sistemática do simpósio é muito interessante.
O Prof. Ives envia, para os autores convidados, seis perguntas a serem respondidas através de um artigo, fixando um prazo para sua conclusão e remessa.
Recebidos os artigos, ele então elabora um livro, de sua coordenação, com os textos nos quais os diversos autores (inclusive ele) respondem as várias perguntas.
A sistemática, até aí, é semelhante à dos livros editados pela Dialética em conjunto com o ICET, com a diferença apenas de que, nos livros do ICET, o número de perguntas é muito maior.
Mas, daí em diante, a sistemática é bem diferente, pois nos livros do ICET não ocorre o que se segue:
Publicado o livro (coleção "pesquisas tributárias", da RT), é realizado o simpósio, no qual os autores que escreveram são chamados a expor oralmente as respostas que deram a cada uma das perguntas e os seus motivos.
As respostas, claro, nem sempre coincidem, havendo, em seguida, proveitoso debate. Os autores, aliás, já conhecem as posições dos demais - pois receberam o livro - e têm condições de travar discussões bem interessantes.
Em seguida, as várias "versões" de respostas são submetidas a uma votação. Todos os presentes, tanto integrantes da mesa como os que estiverem na platéia, levantam a mão para manifestar concordância com esta ou aquela forma de responder as perguntas. Os votos são apurados e, no final, a organização do simpósio tem, de forma democrática e amplamente debatida, uma resposta "oficial" para cada pergunta. E tais respostas são publicadas no livro do ano seguinte, como um apêndice.
Discute-se ainda, ao final do evento, de forma igualmente aberta e democrática, o tema a ser objeto do simpósio seguinte. No ano passado, eu e o Schubert, que participávamos, colaboramos com algumas sugestões que, ao cabo, contribuiram para que o tema e as perguntas deste ano de 2008 fossem:
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1) À luz da Constituição (art. 5º, inciso LV), seria possível a legislação infra-constitucional reduzir o conceito de "ampla defesa administrativa e judicial", refletido na legislação ordinária em vigor em 5 de outubro de 1988? Trata-se de um conceito flexível, subordinado à legislação ordinária, ou os meios então existentes não poderiam ser restringidos, sob pena de violação à ampla defesa constitucionalmente assegurada?
2) A Lei 11.382/06, que alterou as disposições do CPC sobre execução de títulos extrajudiciais, revogou a Lei 6.830/80? Considerando a resposta ofertada, os embargos à execução fiscal possuem efeito suspensivo? Qual o prazo para sua interposição?
3) É válido proceder à penhora "on line" antes de intimado o contribuinte para promover a garantia do juízo?
4) Como deve ser interpretada a Súmula 317 do STJ ("É definitiva a execução de título extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os embargos")? Caso a o recurso do devedor seja provido e a Fazenda Pública venha a resultar definitivamente vencida, como deverão ser ressarcidos os prejuízos causados ao contribuinte? Que verbas devem compor esse ressarcimento? O pagamento dessa indenização está sujeito ao disposto no art. 100 da CF?
5) Pode o fisco a despeito das prerrogativas que cercam a cobrança do crédito tributário, aplicar sanções políticas ao devedor, tais como levar a protesto a certidão de dívida ativa ou determinando a inclusão de seu nome no SERASA?
6) À luz da Constituição, é possível a instituir validamente a execução do crédito tributário por autoridade diversa da jurisdicional?
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Estou concluindo o texto no qual são respondidas. Tenho até o final da semana santa (segunda-feira próxima) para enviá-lo, por e-mail, para a secretária do Prof. Ives. Mas gostaria de saber dos leitores do blog: o que acham delas? como as responderiam? Minhas respostas, pelo menos em relação a três delas, podem ser deduzidas de postagens anteriores neste mesmo blog, mas vou deixar para divulgá-las depois. Na oportunidade, não postarei o texto todo, que está ficando um pouco longo, mas as perguntas e as respectivas respostas.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Sigilo bancário

Editada em 2001, a LC 105/2001 foi motivo para a propositura de diversas ADIns.

Nenhuma julgada, até o momento, nem mesmo sem sede liminar, não obstante passados já mais de sete anos de sua edição.

Agora, com o fim da CPMF, e a regulamentação da disposição da LC 105 que determina o acompanhamento on-line e em tempo real da movimentação financeira de todo e qualquer cidadão (ops... Todo não. Os fiscais, servidores públicos, numa inversão sem precedentes dos princípios da publicidade e da intimidade que devem prevalecer nas esferas pública e privada, respectivamente, só por ordem judicial podem ter seus sigilos quebrados - LC 105, art. 3.º, § 1.º), outra ADIn foi proposta, tendo inclusive sido objeto de postagem anterior.

A propósito da mencionada postagem anterior, esclareço que não a elaborei para defender a quebra de sigilo. E nem para combatê-la. O propósito foi o de discuti-la. Por isso disponibilizei a inicial da ADI, e das informações da AGU.

Mas, agora oferecendo meu posicionamento a respeito, digo o seguinte:


A discussão em torno da quebra de sigilo bancário vem sendo travada, no Brasil, de forma inteiramente distorcida. Sofística até. Todo debate em torno dela começa com a afirmação de que "os direitos fundamentais são relativos"...


Ora, não se discute a relatividade desse direito, mas sim QUEM É COMPETENTE PARA FAZER ESSA RELATIVIZAÇÃO.


A questão, em suma, não é saber se o sigilo pode ser quebrado, mas quem pode fazê-lo. Esse é o verdadeiro debate subjacente à LC 105/2001.


E o STF, ao que tudo indica, SE FOR COERENTE, decidirá pela impossibilidade de quebra senão quando determinada por CPI ou pelo Judiciário. A decisão abaixo, recente, é indicação clara nesse sentido:


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MS 22801 / DF - DISTRITO FEDERAL

MANDADO DE SEGURANÇA

Relator(a): Min. MENEZES DIREITO

Julgamento: 17/12/2007 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação DJE-047 DIVULG 13-03-2008 PUBLIC 14-03-2008EMENT VOL-02311-01 PP-00167

Parte(s) IMPTE.: BANCO CENTRAL DO BRASIL E OUTRO

ADV.: PROCURADOR-GERAL DO BANCO CENTRAL DO BRASIL

IMPDO.: TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO


Ementa Mandado de Segurança. Tribunal de Contas da União. Banco Central do Brasil. Operações financeiras. Sigilo.

1. A Lei Complementar nº 105, de 10/1/01, não conferiu ao Tribunal de Contas da União poderes para determinar a quebra do sigilo bancário de dados constantes do Banco Central do Brasil. O legislador conferiu esses poderes ao Poder Judiciário (art. 3º), ao Poder Legislativo Federal (art. 4º), bem como às Comissões Parlamentares de Inquérito, após prévia aprovação do pedido pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do plenário de suas respectivas comissões parlamentares de inquérito (§§ 1º e 2º do art. 4º).

2. Embora as atividades do TCU, por sua natureza, verificação de contas e até mesmo o julgamento das contas das pessoas enumeradas no artigo 71, II, da Constituição Federal, justifiquem a eventual quebra de sigilo, não houve essa determinação na lei específica que tratou do tema, não cabendo a interpretação extensiva, mormente porque há princípio constitucional que protege a intimidade e a vida privada, art. 5º, X, da Constituição Federal, no qual está inserida a garantia ao sigilo bancário.

3. Ordem concedida para afastar as determinações do acórdão nº 72/96 - TCU - 2ª Câmara (fl. 31), bem como as penalidades impostas ao impetrante no Acórdão nº 54/97 - TCU - Plenário."

Será esse o motivo de a LC 105 até agora não ter tido sua validade apreciada em relação à autorização que dá ao fisco de quebrar diretamente o sigilo dos contribuintes, na via administrativa? Será que o STF, depois de vários anos deixando a Receita aplicar a lei à vontade, vai afirmá-la inconstitucional e modular os efeitos da decisão, para que sejam ex nunc?

Só a título ilustrativo, colo o que escrevi a respeito em meu "Processo Tributário", desde a primeira edição:




"2.5.2.4 Fiscalização e sigilo bancário
Ainda a propósito do conflito entre os poderes de fiscalização (necessários à efetividade dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva), e os direitos individuais do contribuinte fiscalizado (intimidade, privacidade, propriedade, livre iniciativa etc.), questão de grande relevo diz respeito ao sigilo bancário e à sua quebra por autoridades administrativas, assegurada pela LC no 105/2001.
Defensores da validade da citada lei sempre procuram, propositalmente ou não, desviar o foco da questão. Defendem a relatividade do direito à intimidade, a inexistência de “direitos absolutos”, e a necessidade de serem prestigiados também os princípios da isonomia e da capacidade contributiva. Como existem sonegadores que se valem do sigilo bancário para ocultar rendimentos e não submetê-los à tributação, a quebra desse sigilo seria do interesse de todos os que não são sonegadores.
Na argumentação acima resumida, entretanto, há duas falácias evidentes.
A maior delas consiste em defender a validade da LC no 105/2001 utilizando argumentos relativos à possibilidade de quebra do sigilo bancário (há muito admitida pela doutrina, e pelo Poder Judiciário), quando na verdade o que se discute é quem está autorizado a efetuar essa quebra, se a Administração, a interessada nos dados, e por isso mesmo parcial, ou se o Poder Judiciário. É o que Irving Copi define como falácia da conclusão irrelevante, ou ignoratio elenchi, segundo a qual “um argumento que pretende estabelecer uma determinada conclusão é dirigido para provar uma conclusão diferente”.[1]
Se é certo que o direito ao sigilo não é absoluto, devendo ser conciliado com as atribuições de uma fiscalização a fim de prestigiar os princípios da capacidade contributiva e da isonomia, é igualmente certo que as atribuições dessa fiscalização também não são absolutas, e não podem suprimir o direito ao sigilo de que se cuida. A regra é o respeito ao sigilo, sendo exceção a sua quebra, em face de circunstâncias que justifiquem a atribuição de maior peso aos princípios que justificam a fiscalização que aos que protegem a intimidade do fiscalizado.
Por isso mesmo, é inconstitucional o dispositivo que praticamente torna esse sigilo inexistente, ao determinar que o Poder Executivo disciplinará (por decreto...) a periodicidade e os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços (LC no 105/2001, art. 5o). Com efeito, citado artigo não apenas “relativiza” o direito ao sigilo, possibilitando sua conciliação com outros à luz de um caso concreto. Não. Citado artigo transforma a “quebra” do sigilo em uma regra sem exceções.
E, mesmo que assim não fosse, o artigo padeceria de outra inconstitucionalidade (que também vicia o art. 6o da mesma lei complementar), porquanto deixa nas mãos da administração, parte interessada, e não do Poder Judiciário, em tese imparcial, o juízo acerca da presença das circunstâncias que justificam a quebra.
Precisas, sobre o tema, são as palavras de James Marins:
“Torna-se lugar comum se aludir à relatividade do sigilo ante ao interesse público, premissa essa que não pode ser negada. O que demanda análise mais detida é justamente a quem compete pronunciar-se pela existência, ou não, de interesse social relevante face a um caso concreto. Tal competência por expressa injunção constitucional está cometida ao Poder Judiciário como único órgão do Estado autorizado a sopesar os valores constitucionais da inviolabilidade de dados e das comunicações telefônicas diante de específica necessidade fundada no interesse público – demonstrado concretamente pela Fazenda Pública – para fins de seu momentâneo afastamento.
Ora, retirar tal competência do órgão institucionalmente investido da prerrogativa de agir de forma imparcial, a quem compete se manifestar concretamente a respeito dos direitos dos cidadãos, é esvaziar de forma temerária as atribuições constitucionais do Poder Judiciário, aquele que diz o direito. Atente-se que se caso fosse permitido à Administração Tributária a possibilidade de quebrar o sigilo dos cidadãos se estaria a centrar na mesma figura os papéis de parte e de juiz, o que não se admite em se tratando de respeito a direitos fundamentais da pessoa humana.”[2]
A outra falácia contida na argumentação resumida parágrafos acima consiste em associar a defesa do direito ao sigilo à defesa da prática impune de irregularidades. Parte-se da premissa, obviamente falsa, de que irregularidades são praticadas apenas pelos indivíduos fiscalizados, nunca pelas autoridades fiscalizadoras.[3] Trata-se de falácia perigosa, recorrente em regimes autoritários, não sendo demais lembrar a idéia que a Santa Inquisição fazia do direito de defesa: uma heresia, pois, se o acusado realmente fosse culpado, o direito de defesa representaria o direito de mentir, e, se o acusado fosse inocente, o direito de defesa pressuporia a inabilidade das sacrossantas autoridades julgadoras de descobrirem a verdade sozinhas.
Não se invoque, ainda na defesa dos dispositivos da LC no 105/2001, o chamado “sigilo fiscal”, segundo o qual não haveria propriamente uma “quebra” de sigilo, mas apenas uma “transferência” desse sigilo para o Fisco, que não poderia divulgar nada daí decorrente. Na verdade, o cidadão não tem direito à privacidade apenas em face de determinadas pessoas, mas sim em face de toda a coletividade. Não se pode afirmar, portanto, que a violação ao sigilo é válida porque perpetrada “apenas” pelas autoridades fazendárias. A propósito, direitos fundamentais como o da inviolabilidade de dados, do domicílio, de comunicações telefônicas etc. foram concebidos precisamente para serem opostos ao Poder Público, quem historicamente mais os violou. Além de tudo isso, paralelamente à LC no 105/2001, foi editada também a LC no 104/2001, que procedeu a alterações no art. 198 do CTN que praticamente aboliram o dever de sigilo fiscal, autorizando a “divulgação” de informações relativas a uma série de situações que enumera.
Merecem exame cuidadoso, também, as conclusões que a fiscalização tributária poderá tirar dos dados bancários do contribuinte.
A movimentação bancária certamente pode representar indício de capacidade contributiva. Uma pessoa física que em suas declarações afirma receber rendimentos anuais equivalentes a “x”, mas movimenta, no mesmo período, “10x”, possivelmente possui capacidade contributiva superior àquela pela qual está sendo tributada. Pode ter omitido rendimentos em sua declaração. Não se pode dizer, porém, que os “10x” movimentados sejam, todos, rendimentos tributáveis, a serem onerados pelo IRPF.
É comum contribuintes sacarem valores, utilizarem-nos parcialmente, e depositarem o restante novamente na mesma conta; transferirem valores de uma conta para outra; sacarem valores para realizar um negócio qualquer, o qual posteriormente não é concretizado, com o retorno integral dos valores para a conta correspondente etc. Esses fatos podem justificar, no todo ou em parte, a movimentação bancária não declarada, razão pela qual a fiscalização não pode simplesmente considerar cada depósito bancário como “rendimento”, para fins de cobrança do imposto de renda. É necessário comprovar que o depósito não declarado realmente equivale a um rendimento omitido na respectiva declaração.
O Tribunal Federal de Recursos, a propósito, através de sua Súmula 182, consolidou o entendimento segundo o qual “é ilegítimo o lançamento do imposto de renda arbitrado com base apenas em depósitos bancários”.
A Câmara Superior de Recursos Fiscais, última instância no julgamento de processos administrativos tributários federais, manifestou-se sobre a questão nos seguintes termos:
“IRPF – Omissão de rendimentos – Depósitos bancários – A existência de depósitos bancários em montante incompatível com os dados da declaração de rendimentos, por si só não é fato gerador de imposto de renda. O lançamento baseado em depósitos bancários só é admissível quando ficar comprovado o nexo causal entre cada depósito e o fato que represente omissão de rendimentos. Recurso provido.”[4]
Há quem entenda que, em face da Lei no 9.430/96, especialmente de seu art. 42, a mera existência de depósitos não declarados já poderia ser objeto de tributação pelo imposto de renda (no caso de pessoas físicas), ou pelos tributos incidentes sobre a renda e a receita (no caso de pessoas jurídicas), pois geraria uma presunção relativa de omissão de rendimentos ou de omissão de receitas, a ser elidida pelo contribuinte. Segundo o referido artigo, caracterizam omissão de receita ou de rendimento “os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto a instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações”.
Em face do citado artigo, o Conselho de Contribuintes proferiu alguns acórdãos alterando o entendimento antes ali já sedimentado:
“Insubsiste o lançamento realizado com base exclusivamente em depósitos bancários, sem vinculação deles à receita desviada, por ferir o princípio da reserva legal consagrado nos arts. 3, 97 e 142 do Código Tributário Nacional. O lançamento por presunção de omissão de receitas com base em depósitos bancários de origem não comprovada somente tem lugar a partir do ano calendário de 1997, por força do disposto no art. 42, da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996.”[5]
Não nos parece, contudo, que norma veiculada através de lei ordinária tenha a aptidão de alterar os critérios de fundamentação do lançamento tributário, por se tratar de decorrência do princípio constitucional do devido processo legal, essencial ao exercício do direito de defesa por parte do contribuinte.
Com efeito, muitas vezes é impossível produzir a prova negativa de que um determinado depósito não representa riqueza nova, mas sim valor já recebido e devidamente declarado e tributado. Merecem transcrição, sobre o assunto em questão, as reflexões de Raquel Cavalcanti Ramos Machado:
“É de se ressaltar, porém, que uma lei não pode mudar a necessidade de fundamentação concreta e comprovada da ocorrência do fato gerador, pois essa exigência decorre da própria natureza da fundamentação do ato administrativo, e ainda dos elementos necessários ao exercício do direito de defesa do contribuinte. E, mais, como será adiante desenvolvido, essa exigência decorre da natureza do lançamento tributário, que é atividade privativa da administração.
Aliás, importa lembrar que o exame dessa questão pelo extinto Tribunal Federal de Recursos deu-se exatamente à luz da natureza da atividade de lançamento e dos elementos necessários ao exercício do direito de defesa por parte do contribuinte:
‘Tributário. IR. Lançamento de Ofício. Presunção. Depósito Bancário. Sinais Exteriores da Riqueza.’
I – ‘É ilegítimo o lançamento de ofício do imposto de renda, tomando-se como renda simples existência de depósito bancário’ (EAC 72.975-RJ, rel. Min. Justino Ribeiro, 2a Seção, 04.11.82).
II – ‘A presunção hominis adotada pela autoridade lançadora pode ser elidida mediante a demonstração de que os indícios utilizados pela administração são insuficientes para evidenciar a ocorrência do fato gerador’, pois, ‘mera presunção não permite a instauração de processo fiscal’. (AMS 72.745-SP, rel. Min. Otto Rocha, 1a Turma, 25.08.75).
III – Os depósitos bancários, embora possam refletir sinais exteriores de riqueza, não caracterizam, por si só, rendimentos tributáveis.
IV – Precedentes. Remessa oficial desprovida (Ac. da 5a Turma do TFR – rel. Min. Pedro Acioli – REO 83606 – DJ 30/05/85 – EJ vol. 5579-01, p. 48)
Isso reforça a contestação de que, ainda que a Lei no 9.430/96 afirmasse que a mera existência de um depósito bancário, sem outro dado exterior que comprove omissão de rendimento, autoriza a tributação pelo Imposto de Renda e transfere o ônus de prova em contrário para o contribuinte, essa norma seria inválida.
Isso porque o fato meramente alegado, ou cuja ocorrência não é demonstrada, simplesmente não tem o condão de obrigar o contribuinte. Nesses casos, para não se submeter à exigência, em vez de tentar produzir prova muitas vezes de difícil realização, deve o contribuinte, em verdade, demonstrar o vício na formação do ato administrativo. Essa é a lição de Marco Aurélio Greco, ao afirmar que, nesses casos, o ônus do contribuinte:
‘(...) não é o de produzir prova negativa ou prova impossível, mas sim o de demonstrar que a exigência feita padece de vícios, dentre os quais pode se encontrar o de não ter a Administração realizado prova suficiente da ocorrência do fato gerador do tributo.
(...)
Não cabe ao contribuinte provar a inocorrência do fato gerador; incumbe ao fisco, isto sim, demonstrar sua ocorrência’ (‘Do Lançamento’, in Caderno de Pesquisas Tributárias no 12, São Paulo, Editora Resenha Tributária e Centro de Extensão Universitária, p. 170-171).”[6]
A partir da Lei no 9.430/96, portanto, pode-se até admitir um abrandamento no entendimento anterior do Conselho de Contribuintes, segundo o qual o Fisco teria de associar cada depósito a um fato específico que consubstanciasse omissão de rendimentos ou omissão de receitas. Esse abrandamento significa que o Fisco pode fazer esse mesmo lançamento com base nos depósitos bancários associados a outros indícios de omissão de rendimentos, sem ter de associá-los a cada um dos depósitos individualmente, desde que o somatório de todos esses indícios consubstancie acervo probatório suficiente para gerar uma presunção relativa e assim inverter o ônus da prova em desfavor do contribuinte. Isso porque a presunção criada, nesse caso, não decorrerá simplesmente dos depósitos, nem imporá ao contribuinte o ônus da prova impossível.
Esse entendimento, aliás, harmoniza-se com aquele sempre adotado pelo Poder Judiciário, segundo o qual o que estaria vedado ao Fisco seria o lançamento baseado exclusivamente em depósitos bancários, vedação que, por decorrer da Constituição e não das leis, continua existindo independentemente do que dispõe a Lei no 9.430/96.
Vale registrar, contudo, que esse não tem sido o pensamento da Secretaria da Receita Federal, sendo possível, também, apontar acórdãos do Superior Tribunal de Justiça que consideram “inaplicável” o entendimento cristalizado na Súmula 182 do TFR às situações posteriores à Lei 9.430/96 e à LC 105/2001.[7] É preciso cuidado com esse entendimento, não sendo possível estendê-lo a todo e qualquer caso concreto. Deve-se, ainda, ter muita cautela com suas repercussões no âmbito penal tributário, sob pena de violar-se o princípio constitucional da presunção de inocência, invertendo-se o ônus da prova no processo penal.[8]



NOTAS


[1] Irving M. Copi, Introdução à Lógica, tradução de Álvaro Cabral, 2. ed., São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 86.

[2] James Marins, Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial), São Paulo: Dialética, 2001, p. 243.

[3] Talvez essa idéia nefasta tenha inspirado o redator do art. 3o, § 1o, da LC no 105/2001, segundo o qual “dependem de prévia autorização do Poder Judiciário a prestação de informações e o fornecimento de documentos sigilosos solicitados por comissão de inquérito administrativo destinada a apurar responsabilidade de servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido”. Segundo o citado parágrafo, como se vê, os integrantes do Poder Público, no que pertine às suas atribuições públicas, têm direito a que seu sigilo somente seja quebrado por meio do Poder Judiciário. Cidadãos, contudo, titulares do direito à individualidade, à intimidade e à privacidade, podem ter suas informações bancárias vasculhadas independentemente de interferência judicial. Sua inconstitucionalidade é ainda mais evidente que a dos demais dispositivos da citada lei, por violação ao princípio da isonomia, e inversão completa do princípio da publicidade.

[4] Ac. da 1a T. da CSRF – mv. – no 01-02.641 – Rel. Cons. Antonio de Freitas Dutra – j. 16.3.1999 – DOU-e 1 11.8.99, p. 12 – ementa oficial – Repertório IOB de Jurisprudência – 1a quinzena de outubro de 1999 – caderno 1 – p. 567.

[5] Ac. da 8a C. do 1o CC – no 108-06.870 – Rel. Cons. Nelson Lósso Filho; DOU I de 22.10.2002, p. 33 – Jurisprudência IR – IOB – Anexo ao Bol. 2/2003 – p. 1 e 2.

[6] Raquel Cavalcanti Ramos Machado, “A Prova no Processo Tributário: Presunção de Validade do Ato Administrativo e Ônus da Prova”, artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário no 96, São Paulo: Dialética, setembro de 2003, p. 82 e 83.

[7] Nesse sentido: STJ, 1.ª T, REsp 792.812/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 13/3/2007, DJ de 2/4/2007, p. 242.
[8] Confira-se, a esse respeito, a coletânea coordenada por Hugo de Brito Machado (Sanções Penais Tributárias, São Paulo/Fortaleza: Dialética/ICET, 2006, p. 25, 422, 423 e passim),