terça-feira, 27 de outubro de 2009

Súmula 470 do STF

Estou quase terminando os comentários às Súmulas do STJ e do STF que cuidam de matéria tributária. Não postarei todas aqui, mas algumas, mais interessantes, talvez. Acho que é o caso da 470 do STF, que trata de situação bastante curiosa, e que até a atualidade guarda interesse prático, embora aprovada em 1964:

Súmula n.º 470/STF – “O imposto de transmissão ‘inter vivos’ não incide sobre a construção, ou parte dela, realizada, inequivocamente, pelo promitente comprador, mas sobre o valor do que tiver sido construído antes da promessa de venda.”

·         Aprovada na sessão plenária de 1/10/1964

Comentários ———————————————————————————

Esta súmula cuida de situação bastante semelhante à que originou a Súmula n.º 110/STF, para cujos comentários se remete o leitor. A distinção é que, ali, o STF fez referência apenas a “construção realizada pelo adquirente”, enquanto nesta Súmula 470 a distinção entre o objeto transferido (terreno vazio) e a construção feita posteriormente pelo promitente comprador é feita de forma mais explícita e clara.

A divergência que deu origem à súmula surge quando uma empresa de construção civil, por exemplo, adquire um terreno e nele constrói edifício sem antes formalizar a respectiva transferência no registro de imóveis. Quando, concluída a construção do edifício, a empresa pretende formalizar a transferência, o Município pretende exigir o ITBI sobre o valor do terreno e do edifício, alegando que ambos compõem de forma indivisível o bem a ser transferido. A empresa, por sua vez, alega que apenas o terreno foi objeto da transferência, eis que o edifício foi ela quem construiu.

Parece clara a razão da empresa de construção, no exemplo citado. Realmente, só o terreno lhe foi transferido. O edifício, por ela construído de boa-fé depois de celebrada a promessa de compra e venda, já não pertence legitimamente ao promitente vendedor, tanto que este, se não concretizado o negócio por alguma razão, terá de indenizar a construtora pela benfeitoria realizada no terreno.

Como destacou o Ministro Evandro Lins, ao votar no RE 55.263, não é possível “cobrar imposto de transmissão na construção feita pelo promitente comprador, quando na realidade, ele é que paga a construção...”. Além disso, prossegue o ministro, “quando se deu a aquisição do imóvel, havia, apenas, o terreno”. No mesmo RE, amparado na doutrina de Aliomar Baleeiro, o Ministro Pedro Chaves consignou que “juridicamente, o fato gerador ou imponível é transferência do domínio, não seu instrumento. Temos, pois, um tributo que surpreende a fortuna em sua dinâmica, no momento em que ela passa de um para outro titular e que incide sobre a transmissão de um para outro. (...)”. Por conta disso, voltando os olhos para o que fora efetivamente transferido (conforme o contrato de promessa de compra e venda), o Ministro Pedro Chaves continuou: “ao lado do aspecto tributário da incidência do imposto exclusivamente sobre a transmissão, imposto que tem seu fundamento no art. 19, III, da Constituição,” – referia-se ele à Carta de 1946 – “que o conceitua em termos que não podem se ampliar, a que se considerar o problema sob o ponto de vista social de uma política de habitação que deve facilitar e não dificultar a construção de residências.”

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Depósitos judiciais

Saiu no migalhas de hoje:

Azeitado

Agora não tem escapatória. O recolhimento de depósitos judiciais vai direto para a conta do Tesouro. A Câmara não só aprovou como ampliou os efeitos da MP 468, que obriga os bancos a repassar à CEF os depósitos judiciais referentes a tributos e contribuições federais. De fato, todos os depósitos judiciais feitos nos bancos, sejam eles tributários ou não, relativos a ações contra a União, fundos, autarquias e entidades federais, inclusive ações trabalhistas, terão de ir para a CEF, que se encarregará de remetê-los para a burra pública. A MP alcança os depósitos independentemente da data em que tiverem sido feitos. Ou seja.

O assunto merece reflexão.

O Estado do Ceará, faz muito tempo, adota essa prática. Os depósitos judiciais são "usados" pelo Judiciário, que faz as vezes de banco. Como os depósitos não são sacados todos de uma vez, havendo, todos os dias, levantamentos de depósitos antigos mas a realização de depósitos novos, o depositário (o Estado do Ceará, através do Judiciário) gasta o dinheiro e usa os novos depósitos para honrar o compromisso relativamente aos antigos. Depois de um tempo, reza a lenda, alguns desembargadores do TRF da 5.ª Região pretenderam fazer a mesma coisa, e levaram a idéia ao Ministro Pedro Malan, que, todavia, adotou-a com uma pequena mudança: os valores não seriam geridos pelo TRF, mas pelo próprio Ministério da Fazenda. Foi o que originou a Lei 9.713/98 (clique aqui).

Não pretendo, aqui, examinar a validade dessa prática, que, em relação às ações tributárias em que o Estado é parte, cria a inusitada figura do "pagamento provisório" que se converte em "pagamento definitivo" se o contribuinte perde a ação, ou é devolvido (sem precatório) se a parte ganha a ação. O meu objetivo é só o de discutir dois aspectos.

O primeiro: e se o Estado não devolve o dinheiro? Aconteceu comigo, certa feita. Em ação envolvendo dois particulares, na qual havia depósito judicial efetuado, as partes chegaram a um acordo e resolveram levantar a quantia do depósito. Quando lá chegaram... NADA. O dinheiro havia sido gasto, e o Estado pedia tempo para - com a arrecadação dos impostos da semana seguinte, talvez - pagar, ou, digo, devolver o depósito utilizado. Depois de pouco mais de um mês o depósito foi devolvido, e as partes puderam levantá-lo nos termos em que haviam acordado. Mas e se o Estado não o devolvesse? Seria o caso de mover ação contra ele, e receber a quantia através de precatório?

E isso nos leva ao segundo ponto: se o Estado pode usar o valor dos depósitos judiciais, gastando-o, e quando as partes, ao final do processo, pretendem levantar a quantia o Estado a devolve em pouco tempo, por que não estender essa idéia a todos os pagamentos que o Estado é condenado a fazer? Diante do abiscoitamento dos depósitos pelo Fisco, qual diferença, do ponto de vista econômico, financeiro e orçamentário, entre pagar e obter a restituição (em face da procedência do pedido de restituição), ou depositar e posteriormente levantar o depósito (em face da procedência do pedido de anulação do lançamento)?

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Conceito de receita...

Recebi do Eduardo Bim uma interessante decisão, com um comentário, dele, assaz pertinente.

A decisão:

TRIBUTÁRIO. FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS. REPARTIÇÃO DE RECEITAS. INCIDÊNCIA SOBRE A RECEITA BRUTA SEM DEDUÇÕES. ART. 159 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
1. É infundada a pretensão do Município autor a que se proceda à repartição de recursos do Fundo de Participação dos Municípios, com base na receita bruta da arrecadação das parcelas que integram a base de cálculo, sem deduções como incentivos fiscais, restituições e parcelas destinadas ao PIN, PROTERRA e FSE/FEF.
2. Na dicção do art. 159 da Constituição Federal, a transferência constitucional de receitas tributárias aos Municípios é feita com base no produto da arrecadação, e não na receita bruta, justamente porque a finalidade do FPM é transferir, àqueles entes estatais, valores que, originariamente, pelas regras de competência tributária, pertenceriam à União.
Com efeito, não basta o mero trânsito contábil de determinada receita pelo patrimônio da União para que a mesma integre a base de cálculo do FPM.
(AC 2001.71.07.003083-0/RS, REL. DES. FEDERAL JOEL ILAN PACIORNIK, 1ªT./TRF4, UNÂNIME, JULG. 17.06.2009, D.E. 07.07.2009)


E, agora, o comentário:

Será que aplicam esse entendimento para o PIS/Confins?

Muito pertinente mesmo. O Direito é via de mão dupla. A tese que vai, também tem que voltar. Não pode ser acolhida apenas quando favoreça a um dos lados da relação, para ser esquecida em seguida, quando sua aplicação coerente beneficiar o outro lado.
É o que ocorre aqui. Sem entrar no mérito do que deve ou não deve ser considerado receita, o conceito não pode ser um para fins de repartição de FPE e FPM, e outro para, em se tratando da receita das empresas, definir a incidência e a base imponível (afinal, B.C = F.G dimensionado economicamente) do PIS e da COFINS.
A propósito, antes do feriado havia escrito algumas palavras sobre a Súmula 68/STJ, que, acho, são pertinentes aqui:

Súmula n.º 68/STJ – “A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS.”

· Publicada no DJ de 4/2/1993

Comentários ———————————————————————————

A presente súmula cuida de questão indicativa da incoerência com a qual são tratados os tributos indiretos no Brasil. A depender da situação, e do interesse de quem argumenta, se diz que são pagos pelo consumidor final, ou pelo comerciante.

Se o comerciante, legalmente definido como o contribuinte do imposto, pleiteia a sua restituição, por exemplo, diz-se que repassou o encargo financeiro ao consumidor final, sendo este o “verdadeiro” devedor da exação. Isso para, naturalmente, negar ao contribuinte a restituição do tributo indevido. Confiram-se, a propósito, o art. 166 do CTN, e os comentários às Súmulas 71 e 546 do STF, supra.

Entretanto, se há inadimplência do consumidor final, que não paga o preço (e nem o tributo, que nele estaria embutido) ao comerciante, a Fazenda defende que a relação entre comerciante e vendedor é “mera relação de direito privado” sem qualquer repercussão tributária. Invoca, nesse particular, o art. 123 do CTN.

O mesmo se dá em relação às imunidades subjetivas. Quando uma entidade imune (v.g., uma entidade de assistência social) é vendedora de determinados produtos, e nessa condição invoca sua condição de imune para não se sujeitar à exigência do ICMS, diz-se que o tributo será repassado ao consumidor final, e que este não é imune, não sendo invocável, portanto, o benefício (STF, RE 191.067/SP, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 26/10/1999, v. u., DJ de 3/12/1999). Se, ao revés, a entidade imune é a compradora de determinados produtos, e invoca a imunidade para não se sujeitar ao tributo embutido no preço, diz-se que o contribuinte seria, na verdade, o vendedor, que não é imune, e por isso também se nega a aplicação do benefício (STF, AC 457-MC, Rel. Min. Carlos Britto, j. em 26/10/2004, v. u., DJ de 11/2/2005, p. 5). (1)

Algo semelhante se dá em relação a muitos outros aspectos da tributação indireta, não sendo, contudo, pertinente aprofundá-los aqui. O que importa, para a compreensão da presente súmula, é que ela reflete um desses aspectos contraditórios.

Com efeito, como a contribuição para o PIS (e também a COFINS: confira-se a Súmula n.º 94/STJ, infra) incide sobre o faturamento (CF/88, art. 195, I, “b”), surge a questão de saber se, no caso de contribuinte que pratica operações sujeitas ao ICM, hoje ICMS, o valor desse imposto integra, ou não, a base de cálculo da contribuição.

Caso se entenda que o ICMS é um encargo do comerciante vendedor (assim como o custo da energia elétrica, da mão de obra, da matéria prima etc.), e que o preço, embora seja calculado de forma a recuperar todos esses encargos (inclusive o ICMS), com ele não se confunde, concluir-se-á pela inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS. Realmente, se o comerciante recebe R$ 100.000,00 pela venda de mercadorias em determinado mês, esse é o seu faturamento, devendo ser submetido à incidência do PIS (e da COFINS, a teor da Súmula 94/STJ, infra).

O problema é que, de acordo com a jurisprudência do próprio STJ – e também do STF – o ICMS é “tributo indireto” que, quando incide sobre uma venda, agrega-se ao preço desta e é suportado pelo comprador da mercadoria. Tanto que, como já apontado, no caso de pagamento indevido, somente se restitui o indébito tributário caso o comerciante, dito “contribuinte de direito”, demonstre não haver repassado o valor do tributo ao consumidor final, embutindo-o no preço.

Ora, se se considera que quem “suporta” o ônus representado pelo ICMS, do ponto de vista jurídico – e não meramente econômico – é o consumidor final, usando-se isso como argumento para denegar a restituição ao chamado “contribuinte de direito”, comerciante, então o valor do imposto, embutido no preço, não pode ser considerado “receita” do comerciante.

De duas uma. Ou o preço pertence ao comerciante, e o tributo, pago com o valor obtido com ele, é dívida do comerciante (devendo ser devolvido ao comerciante quando pago de maneira indevida), ou então o preço pertence só em parte ao comerciante, parte na qual não se compreende o tributo devido à Fazenda Estadual. Se essa segunda opção é a acolhida na interpretação do art. 166 do CTN e no trato da restituição do indébito do tributo indireto, não pode haver a incoerência de se escolher a primeira forma de compreensão do problema quando se trata de discutir a base de cálculo do PIS e da COFINS. Afinal, o direito é um só, e uma tese, quando verdadeira nos casos em que beneficia a Fazenda Pública, não pode se tornar falsa sempre que sua aplicação coerente beneficiar o contribuinte.

Com amparo nessas premissas, o STF está examinando essa mesma questão (RE 240.785 e ADC 18). É o caso de se aguardar para verificar se, no entendimento da Corte Maior, o ICMS deve ou não ser considerado na determinação da base de cálculo do PIS e da COFINS.

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NOTAS

(1) Mais recentemente essa incoerência parece estar sendo superada, consolidando-se, no âmbito do STF, entendimento segundo o qual a imunidade pode ser invocada quando detida pelo chamado “contribuinte de direito”, mesmo diante da possibilidade de o ônus do tributo ser repassado ao consumidor final, não imune. Tal entendimento é extraído, como decorrência, de duas teses já acolhidas pelo Plenário do STF: i) a imunidade subjetiva (v. g., de templos ou entidades sem fins lucrativos), abrange também o IPTU incidente sobre seus imóveis, ainda que estes estejam alugados a terceiros (o que naturalmente viabiliza o repasse do ônus do imposto aos inquilinos) e ii) não é pertinente a invocação de critérios de classificação de tributos, colhidos a partir da legislação ordinária, para restringir a abrangência da imunidade. Com base nessas premissas, a Segunda Turma do STF entendeu que a imunidade abrange até mesmo o ICMS incidente sobre produtos vendidos pela entidade imune, desde que a receita respectiva seja revertida no atendimento de suas finalidades institucionais (RE 141670 AgR/SP, Rel. Min. Nelson Jobim, j. em 10/10/2000, v. u., DJ de 2/2/2001, p. 105). No julgamento do RE 210.251 Edv/SP, o Plenário do STF discutiu mais uma vez a questão, e consignou que o “contribuinte de direito”, em sendo imune (v. g., entidade assistencial sem fins lucrativos), não deve ser onerado pelo ICMS, ainda que possa eventualmente transferir o ônus do imposto aos consumidores. Entenderam as vozes majoritárias, com inteiro acerto, que, se o “contribuinte de direito”, imune, “repassa” o valor do ICMS ao consumidor final, e não o paga ao Estado (por conta da imunidade), se está atingindo exatamente a finalidade da imunidade, desonerando uma atividade assistencial não lucrativa, que deve ser incentivada pelo Estado; por outro lado, se o produto vendido pela entidade assistencial não tem o ICMS “embutido” em seu preço, sendo assim vendido por quantia inferior à de mercado, isso será melhor para os consumidores, e para a própria entidade assistencial, que terá maior aceitação por parte de seus produtos. Não haverá, finalmente, desequilíbrio na concorrência, considerando a pequeníssima extensão dos negócios da entidade filantrópica (STF, Pleno, RE 210251 EDv/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j. em 26/2/2003, m. v., DJ de 28/11/2003, p. 11).

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

STF confirma decisão do STJ quanto à lista sêxtupla

Foi noticiado pelo STF que a segunda Turma daquela Corte decidiu, por maioria, pela validade da recusa, pelo STJ, da lista sêxtupla que lhe foi encaminhada pela OAB para a escolha dos nomes que comporiam a lista tríplice a ser submetida ao Presidente da República.
Logo depois, o assunto espalhou-se no twitter, nos blogs, e-mails, e na página do próprio STJ, que deu bastante destaque à decisão.
Já manifestei minha opinião sobre o problema, em posts anteriores (aqui, aqui e aqui e aqui).
Gostaria, agora, de examinar os principais argumentos utilizados pela Ministra Ellen Gracie em seu voto de desempate.
Não tive acesso ainda ao teor do voto, e tudo o que dele conheço decorre da notícia veiculada pelo próprio STF, que afirma existirem "vários argumentos", dos quais, todavia, destacam-se apenas os seguintes:
a) dos três escrutínios efetuados pelo STJ em sessão secreta, nenhum candidato obteve o quorum mínimo previsto no regimento interno para figurar na lista tríplice;
b) justificar os votos tiraria o caráter secreto da sessão, e tolheria a liberdade dos ministros para escolha dos nomes;
c) a cada votação o número de votos diminuía, e dar continuidade ao procedimento, ou exigir que os ministros expusessem suas razões, implicaria uma exposição desnecessária dos advogados constantes da lista.

São argumentos interessantes. Mas não me parece que procedam, com todo o respeito.
Primeiro, eles representam a clara interpretação da CF/88 à luz do regimento interno do STJ, o que não é adequado do ponto de vista hermenêutico. A CF não exige o apontado quorum, e nem o caráter secreto da votação. Mas exige que o STJ escolha três ENTRE OS SEIS indicados. As duas exigências que não constam da CF mas sim do regimento não podem servir de desculpa para o descumprimento de regra constitucional expressa.
Quanto à liberdade trazida pela votação secreta, ela não parece pertinente no caso, e nem pode ser usada como escudo para o descumprimento do dever constitucional de fundamentação dos atos do poder público. Ela é invocável em votações de caráter mera e exclusivamente político, cujas decisões não se devam pautar por critérios jurídicos, nas quais é perfeitamente legítimo àquele que decide fazê-lo neste ou naquele sentido sem que necessite apontar as razões. Além disso, ela é invocável quando aquele que decide pode ser COAGIDO ou por qualquer meio PUNIDO por quem se beneficiaria de sua escolha. É o caso do voto do eleitor em face do político poderoso, ou do deputado que decide rejeitar projeto de lei do interesse do chefe do Executivo. Mas não é, seguramente, o caso de um Ministro que rejeita o nome de um advogado. A prevalecer o argumento, dir-se-á que o desembargador também não precisaria fundamentar seus votos, para não perder a "liberdade" de decidir contra as partes...
Aliás, nem seria preciso afastar o sigilo em relação a cada Ministro. A deliberação até poderia continuar sendo sigilosa. Bastaria que, ao final da deliberação, sem se dizer quem votou em qual sentido, o STJ explicitasse por que, na visão da maioria dos Ministros (cujos nomes seriam preservados), os candidatos não teriam sido escolhidos (v.g., teriam defeitos tais ou tais).
Finalmente, quanto à "exposição desnecessária" dos advogados, acredito que, se os aspectos que seriam apontados são realmente os motivos pelos quais se considera que eles não deveriam ser admitidos no STJ, essa exposição não é desnecessária, mas sim necessária. Se é tão forte a rejeição do STJ à lista, todos precisam saber os motivos dela. Além disso, são eles, os membros da lista, que a estão provocando, ao insistir na questão (poderiam, se tivessem "medo da exposição", renunciar à pretensão de compor a lista...).
Devo dizer, finalmente, que sequer conheço quaisquer dos pretendentes à vaga. Nem mesmo conheço pessoas que tenham concorrido com eles e perdido, ou que pretendam concorrer a vagas futuras. Não tenho o menor interesse pessoal, direto ou indireto, em que desfecho seja este ou aquele. Manifesto minha opinião, aqui, com o exclusivo propósito de debater um tema jurídico relevante (como poderia ser feito em relação ao suposto "golpe" em Honduras, à proibição do uso do véu nas escolas francesas etc.). Parece perigoso o precedente. Como eu já disse antes: e se o Presidente "não aceita" nenhum dos três nomes da lista formulada pelo STJ, pode rejeitar tantas listas quantas forem apresentadas, sequer indicando os motivos, até aparecer uma na qual conste o nome que ele deseja agraciar com a vaga? Isso não transformaria o processo de escolha previsto na Constituição, concentrando a decisão que a CF pretendeu desconcentrada? Parece-me que a decisão do STF fornece elementos para responder sim a todas essas perguntas, o que seguramente não está de acordo com a Constituição Federal.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Uma introdução à ciência das finanças


A atualização não foi fácil. Subsistem nela, por certo, muitas insuficiências, sobretudo em face da magnitude da obra atualizada. Mas ficou pronta, e acho que o resultado compensou o esforço.
Inseri no livro uma "nota do atualizador" que, acredito, exprime com fidelidade minha opinião sobre a tarefa que executei:
Tenho sobre a minha mesa dois exemplares de 'Uma Introdução à Ciência das Finanças'. Um pertence à biblioteca do meu pai. É a primeira edição, publicada em 1955, em dois volumes. O outro, que recebi da editora Forense há poucos meses, é a 6.ª tiragem da 16.ª edição, de 2008. Mais de cinco décadas os separam, o que pode ser percebido mesmo sem os abrir. A cor do papel, o acabamento, os detalhes gráficos da capa, e o desgaste causado pelo manuseio – cuidadoso, mas freqüente – do exemplar mais antigo dão o seu testemunho da passagem do tempo. Apesar disso, tanto em uma, como na outra, o texto permanece atual. Inovador até. Mais de cinqüenta anos amarelaram as folhas daquela primeira edição, mas não as idéias, sendo precisamente essa a razão para ser o livro considerado um clássico da literatura brasileira em torno das finanças públicas.
Por isso, recebi como um honroso desafio o convite da editora Forense para atualizá-lo, dando continuidade ao diligente trabalho do Prof. Dejalma de Campos, que nos deixou em junho de 2007. Honroso, por conta da magnitude da obra, que estarei, ao colaborar com sua atualização, de alguma forma ajudando a manter disponível ao público em geral, principalmente ao estudante. Mas, também por isso, um desafio. Depois da morte de Baleeiro, em 1978, a realidade social, econômica e política passou por significativas alterações. O mesmo se pode dizer da legislação brasileira construída em torno das finanças públicas, e o que sobre ela se escreveu e julgou. Por isso, conquanto o pensamento de Baleeiro continue atual, alguns exemplos e remissões demandam atualização, e realidades novas, surgidas depois de sua morte, não foram evidentemente referidas.
Supressões de acentos e mudanças na moeda, decorrentes de reformas ortográficas e monetárias, ensejaram alterações diretas no texto. Não me pareceu que causasse qualquer intromissão na obra o fato de adaptá-la para que se refira a reais, em eventuais exemplos nos quais o autor menciona uma quantia em cruzeiros, nem seria razoável inserir nota de atualização para advertir o leitor da mudança na moeda. Mas, com exceção desses aspectos, toda e qualquer atualização foi feita de forma destacada, de sorte a que o leitor possa distinguir, com facilidade, o texto original das atualizações inseridas. Quando de pequena monta, fez-se a atualização em nota de rodapé. Atualizações um pouco mais longas foram feitas no corpo do próprio texto, mas em parágrafo recuado e precedido da expressão, em negrito, 'nota de atualização'.
Desgastado pelo tempo, o coliseu romano passou por restaurações. Mas, nelas, usaram-se tijolos de cor propositalmente mais clara. Foi a solução encontrada para restaurar a construção, mas fazê-lo de sorte a preservar-lhe a originalidade. Entendeu-se que superior à estética e à uniformidade na cor seria a possibilidade de distinguir os tijolos originais, que tantos fatos assistiram ao longo de dezenas de séculos de história, daqueles agora inseridos pelos restauradores. Segui o mesmo procedimento aqui. Até poderia ser visualmente mais confortável a leitura de um livro no qual as atualizações fossem feitas diretamente texto, sem qualquer destaque, mas isso descaracterizaria a obra.
Vale ressaltar, ainda, que as atualizações se limitam ao mínimo necessário para advertir o leitor para as mudanças na realidade, na legislação ou na jurisprudência, de forma sintética e objetiva. Quando muito, procura-se sugerir como essas mudanças poderiam ser compreendidas e tratadas à luz dos fundamentos e das bases constantes das lições de Baleeiro. Não se pretendeu, contudo, discorrer longa e profundamente sobre os aspectos alterados na legislação, ou sobre a realidade econômica ou a jurisprudência superveniente. A idéia, aqui, não é a de escrever outro livro, agregado ao clássico de Baleeiro, mas apenas a de tornar mais fácil a sua compreensão para o estudante que ainda não consegue discernir, por conta própria, as passagens defasadas daquelas que não o estão.
Esta atualização foi feita em face do texto da última edição do livro elaborada por Aliomar Baleeiro, e não das edições posteriores, que vinham sendo postas em dia pelos Professores Flávio Bauer Noveli e Dejalma de Campos. De qualquer modo, eu seria insincero, e injusto, se não reconhecesse, como reconheço, que recorri por diversas vezes às notas destes, constantes das várias edições lançadas entre 1978 e 2008. Faço o registro, de que as atualizações partem da versão digitalizada da última edição feita por Baleeiro, apenas para deixar claro que eventuais omissões e defeitos são imputáveis a mim, enquanto os méritos que esta atualização eventualmente tiver, eu os divido com os professores que me antecederam nessa tarefa.
A propósito de falhas e omissões, peço aos leitores que as detectarem, além de paciência, que me ajudem a corrigi-las, remetendo-me suas observações por e-mail, ou comentando-as em meu blog, através dos endereços abaixo indicados.
Finalmente, registro meus agradecimentos a todos os que compõem a equipe da Companhia Editora Forense, pelo auxílio que me prestaram neste trabalho, pela presteza no esclarecimento de dúvidas, na conferência de dados e na revisão final do texto. Agradeço, ainda, ao Prof. Hugo de Brito Machado, e à Prof.ª Raquel Cavalcanti Ramos Machado, pelos valiosos conselhos, tanto de forma quanto de conteúdo, que me foram de grande utilidade.
Fortaleza, 20 de março de 2009

Hugo de Brito Machado Segundo
hugosegundo@machado.adv.br
www.direitoedemocracia.blogspot.com

Bom, espero, como dito, contar com a paciência dos leitores, que convido para que utilizem este blog, também, como espaço para discussão de temas relacionados ao livro e à atualização.
Para outros detalhes sobre a obra, clique aqui.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Discussões em torno da "dogmática jurídica"


Tenho mantido, por meio eletrônico, um diálogo bastante proveitoso com o Diego Bomfim, amigo aqui de Fortaleza que fez mestrado em Direito Tributário na PUC/SP e, paralelamente a tantas outras leituras, e a uma intensa advocacia na capital paulista, dedicou algum tempo para ler meu "Por que dogmática jurídica?".
Tendo sido aluno do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr., ele tinha posição um tanto diferente da que defendi no livro, e por isso mesmo o debate foi interessante, sobretudo pela qualidade das observações que ele fez.
Com a sua autorização, resolvi publicar, aqui no blog, texto que ele elaborou, no qual faz uma análise crítica do meu livro.
Afinal de contas, se pretendo que se estude o direito de forma "não dogmática", não posso pretender que as opiniões contrárias às minhas sejam omitidas ou escondidas, para que as minhas prevaleçam por eventual desconhecimento das pessoas a respeito das alternativas. Seria como o biólogo do Século XIX que pretendesse esconder as idéias de Pasteur para que as pessoas não descobrissem ser falsa a teoria da geração espontânea...
O texto, que está colado logo adiante, veio acompanhado da seguinte mensagem:

***

São Paulo, 19 de agosto de 2009
Caro Hugo,
Segue um pequeno texto crítico elaborado após proveitosas e reiteradas leituras de sua obra “Por que dogmática jurídica?”
Como já havia te dito, uma das qualidades do texto é a de ser objetivo, permitindo que o leitor, no contexto de império do tempo em que vivemos, possa ter o raro prazer da releitura sem culpa.
O trabalho me impressionou já pelo título e pela, se é que assim eu poderia chamar, audácia. Penso, mesmo não adotando integralmente suas conclusões, que a discussão quanto ao emprego da expressão é altamente recomendável e permite, aos que a utilizam, empreender um processo de elucidação, aperfeiçoando-a e objetivando o exato sentido em que a utilizam. Ou seja, o trabalho é extremamente útil, seja quanto ao convencimento a respeito da incongruência da expressão ou mesmo quanto ao cuidado que se deve ter ao empregá-la, se assim desejar o cientista.
Espero que minhas ponderações possam ser úteis ao desenvolvimento futuro do tema e que gere, ao menos em parte, reflexões tão proveitosas como as que me foram permitidas pela leitura do texto.
Os comentários foram sendo escritos desde a primeira leitura e de acordo com o desenvolvimento da leitura, razão pela qual, por vezes, existem dúvidas, ponderações e críticas que, páginas seguintes, são esclarecidas ou, mesmo, refutadas por você. Mantive o texto com essa linha para que você possa ter uma ideia dos efeitos que são gerados no leitor, capítulo por capítulo.
Seguem os comentários que, pela força do hábito, saíram formais e distantes, mas que, no fundo, só possuem um objetivo: contribuir!
Um abraço,
Diego Bomfim

Breve análise crítica de Por que dogmática jurídica?, de Hugo de Brito Machado Segundo (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Por que dogmática jurídica? Rio de Janeiro: Forense, 2008).

1. Quanto à Introdução

Logo na introdução do livro é possível identificar a assunção clara do posicionamento de crítica à expressão dogmática jurídica, confirmando o que o leitor imagina quando tem contato com o título da obra. Trata-se um texto voltado a defender a incongruência da expressão.

Ora, se o texto tem esse claro escopo não há equívoco em se centrar, mesmo que mediatamente, a uma discussão terminológica. Pensamento que o autor parece, pelo menos em um primeiro momento, refutar.

Não é verdade que uma discussão terminológica seja “meramente terminológica”, já que, tomando-se o triângulo semiótico de Husserl, há sempre uma relação entre o suporte físico, o significado e a significação.

Assim, o emprego de um suporte físico equivocado (tendo em vista o significado correspondente predeterminado) pode gerar no intérprete significações incongruentes, causando um ruído na comunicação.

Tanto não é irrelevante uma discussão terminológica que na seguinte passagem é possível identificar que, em última análise, o livro trata de discutir os possíveis efeitos danosos que a utilização do termo pode fomentar:

“examina-se também, se a questão é meramente terminológica, sem maior relevância, ou se o uso da expressão pode trazer efetivas vantagens à precisão da linguagem, conseqüências impróprias e repercussões indevidas” (1). (os grifos não constam do original).

O termo empregado é muito importante em um texto científico, sendo relevante que haja sua clara definição, estipulativa ou não.

O pano de fundo do livro, portanto, pode ser tomado como terminológico, sem que haja um preconceito de ser meramente terminológico, vez que, como já afirmei em outra oportunidade, e reitero aqui, “a discussão terminológica dos termos empregados pela Ciência do direito pode, inegavelmente, influenciar na decidibilidade dos conflitos normativos”(2).

Talvez, a referência, feita pelo autor, ao fato da discussão não ser meramente terminológica tenha o condão de, justamente, afirmar de que se trata de uma discussão terminológica, mas que essa discussão gera efeitos outros que não residem apenas no emprego desta ou daquela expressão. É dizer: o emprego desta ou daquela expressão é relevante no âmbito de um discurso científico. Se essa foi a intenção do autor, penso que caberia um ou dois parágrafos de elucidação da questão. Se não, acho que há uma crítica interna realizada pelo próprio autor quanto ao objeto de todo o trabalho.

2. Quanto ao Capítulo I

O capítulo se inicia com informações sobre a fuga a respeito da definição precisa do que seria dogmática por parte de diversos “autores de textos jurídicos” (p. 4).

Nesse ponto, uma perplexidade positiva. Essa informação sempre passou ao largo de minhas reflexões (3). O autor descobriu o que Alfredo Augusto Becker chamaria de um fundamento óbvio.

Uma pequena observação que pode ser feita diz respeito à inclusão de Juan Ferreiro Lapatza dentre aqueles que se filiam à corrente autonômica do direito tributário. É que, apesar de transparecer essa ideia na passagem citada, o referido autor na mesma obra retoma o discurso, afirmando pela inexistência de autonomia científica do direito tributário.

De qualquer forma, para que a análise pudesse continuar, o autor – mediante inferência – assevera que por essa expressão estão os autores a se referir a um estudo descritivo das normas jurídicas em vigor. É o que se percebe quando afirma:

“como se trata da descrição de normas postas, o estudioso teria que delas partir necessariamente, não as podendo modificar. Seu papel seria descrever o direito que é, e não aquele que deveria ser, daí por que as normas seriam dogmas que não se poderiam modificar”. (p. 7).

Ora, com a passagem do texto, há a geração de muitas inquietações no leitor (pelo menos foram esses os sentimentos que eu tive): será, então, que na concepção do autor a função da ciência do direito é descrever o direito positivo como ele deveria ser? Se assim o fosse, quais seriam os parâmetros que o intérprete deveria acolher? Ou, o direito descrito, na óptica de quem, deve ser encarado como aquele que deve ser?

Sem entrar nessa discussão, o autor, nesse capítulo, centra a definição do conceito de dogmática que será utilizado como referencial para as críticas, afirmando que:

“diz-se dogmática a ciência do direito positivo, porque, nela o cientista deveria partir das normas vigentes, tendo-as como dogmas, vale dizer, como algo indiscutível e inquestionável”. (p. 11).

Cogita-se, nesse ponto, se o autor trabalha com a divisão entre enunciado e norma, desdobrando o raciocínio a respeito da possibilidade dessa dicotomia permitir um uso congruente da expressão dogmática jurídica. Cogita-se: será que essa dicotomia não salva a expressão das críticas que começam a ser formuladas pelo autor?

Ao final do capítulo, o texto oferece respostas aos questionamentos surgidos com a leitura da introdução referentes à ser ou não terminológica (ou meramente terminológica) a discussão travada.

Com as citações de Pontes de Miranda e Michel Villey, o autor parece responder: trata-se, sim, de uma discussão, mediatamente, terminológica, desde que se afaste o preconceito de ser uma discussão meramente terminológica.

Isso porque afirma:

“... é essa mesma precisão de linguagem, exigida quando se faz ciência, que nos impele a examinar se, para traçar a diferença entre as duas formas de estudo do direito anteriormente apontadas, é correto dizer-se que uma delas, a voltada para um determinado direito positivo, ou para uma parte dele, é dogmática”

3. Quanto ao Capítulo II e Conclusões

O capítulo se inicia com uma abordagem a respeito da evolução do que se deve entender por um estudo científico, centrando como premissa a provisoriedade do conhecimento, mesmo o científico, e tomando a teoria da verdade como correspondência (4) como premissa.

Nesse ponto, há a união de duas premissas: (i) a verdade se encontra por correspondência entre a imagem (uma linguagem) e o objeto (o real, que também pode ser tomado como linguagem); e (ii) a verdade é uma categoria provisória.

A dúvida que surge com a união das duas premissas é a seguinte: se toda verdade, sempre e indefinidamente, é uma categoria provisória, como posso tomar a verdade como um juízo de correspondência entre o objeto e sua descrição? Se nunca haverá a possibilidade de falseabilidade, não seria o caso de se adotar a teoria da verdade como consenso?

Na citação de Thomas Kuhn empreendida pelo autor, parece haver uma inclinação à escolha da teoria da verdade por consenso:

“... se o paradigma estiver destinado a vencer sua luta, o número e força de seus argumentos persuasivos aumentará. [...] Mais cientistas, convencidos da fecundidade da nova concepção, adotarão a nova maneira de praticar a ciência normal, até que restem apenas alguns poucos opositores mais velhos”. (os grifos não constam no original) (p. 21).

Essa linha de entendimento parece ser confirmada quando o autor, baseado nas lições de Arnaldo Vasconcelos, afirma que a ciência, numa terceira fase de evolução, longe de descrever, prescreve o próprio objeto de análise.

Nesse ponto, a crítica que pode ser feita parece residir na falta de objetivação do que é a verdade, tendo em vista uma maleabilidade (proposital ou não) que o texto propõe entre a verdade (i) por correspondência; e (ii) por consenso.

Continua o texto, afirmando que, no caso da ciência do direito caberia a essa prescrever as normas que devem ser. Parece que uma das dúvidas geradas pela leitura do primeiro capítulo começa a ser respondida: a ciência do direito, no modelo de referência do autor, prescreve o seu próprio objeto. Faltam as respostas quanto à forma de controle e operacionalização dessa “construção prescritiva”.

Em seguida (p. 28 e 29), parece haver uma tentativa de relacionar dogmatismo jurídico e positivismo jurídico, afirmando-se pela diminuta função reservada pelo positivismo jurídico à ciência do direito.

Aqui, a crítica pontual que pode ser feita se fixa na identificação que o texto parece fazer entre positivismo (gênero) e uma forma de exposição positivista e específica que é teoria pura do direito (espécie). Existem teorias positivistas que reservam papel relevante à ciência do direito. Essa ideia fica clara, quando o autor afirma que:

“o sentido de um dispositivo legal – sobretudo quando visto à luz de um princípio constitucional – é construído pelo intérprete, à luz do caso concreto, de forma crítica e sujeita a refutações”. (p. 30)

Ora, não há qualquer inconveniência ou incompatibilidade entre essa afirmação e o estudo positivista do direito. Essa pretensa incompatibilidade, apesar de mencionada, não é demonstrada no texto.

Acolher a ideia de que em ciência é “preciso saber duvidar” (citação de Paulo Dourado de Gusmão nas páginas 13 e 14) pressupõe a fixação de premissas. O próprio Paulo Dourado Gusmão, na passagem citada, esclarece que o discurso científico deverá ter como “ponto de partida um fato, uma premissa, uma idéia, uma constatação, uma norma, uma experiência, um princípio, ou uma hipótese”. (sem grifos no original).

O próprio autor assume um ponto de partida, aduzindo que “será à luz do caso concreto, partindo dos textos normativos, que o intérprete (re) construirá a norma jurídica a ser aplicada...” (sem grifos no original) (p. 39). Parece haver aqui, e também nas citações empreendidas aos escritos de Humberto Ávila, uma clara utilização velada do binômio enunciado/norma. Já que “texto normativo”, por certo, configura algo diferente da “norma”. É justamente essa diferenciação que permite a manutenção da expressão dogmática jurídica e, inclusive, a conveniência de sua manutenção. Isso porque o dogma serão os enunciados legais que, de forma alguma (a não ser pelos caminhos que o próprio direito positivo autoriza), poderão ser desprezados pelo intérprete. Nesse caso, correta é a utilização da expressão, desde que elucidada (Carnap).

Esse ponto de partida, portanto, é o dogma, o ponto fora de questionamentos ou fora de jogo, fora de refutação. Na citação encontrada no texto da obra de Dworkin (p. 37), é possível perceber que o autor americano também aduz nesse sentido, quando afirma:

“Os juízes considerados liberais e os chamados conservadores estão de acordo quanto às palavras que formam a Constituição enquanto texto pré-interpretativo”. (sem grifos no original).

O que não se alcança com a leitura da obra é onde está a contradição entre (i) se aceitar que as normas são construídas a partir dos enunciados legais e (ii) que o direito pode ser estudado de um ponto de vista dogmático ou de um ponto de vista positivista.

O dogma é a necessária aceitação de que aqueles textos legais seriam o ponto de partida, sem que, contra isso, possa ser investido qualquer contra-argumento. É um pilar que possibilita, inclusive, a construção de um discurso racional, possibilitando refutação, falseabilidade e, na dependência de uma série de fatores, revoluções.

Tratando da falseabilidade, o autor afirma que “quando alguém pretende travar ou neutralizar esse mecanismo, diz-se que não está agindo de forma científica, mas sim de modo autoritário”. (p. 21). No entanto, o mecanismo de falseabilidade é muito mais dinâmico e operacional quando se estabelecem premissas dentro de um discurso racional.

Tome-se como exemplo de sustentação dessas afirmações o seguinte causo:

Um certo dia um homem, de maneira ríspida e inesperada, afirma ao outro que viveria para sempre, gritando em seguida:

-- Eu sou Jesus!

Não foram fixadas premissas no diálogo, sendo irrelevante o dever de prova do alegado. Por mais que o segundo homem tentasse explicar que a ausência de premissas (de dogmas) não permitiria o desenvolvimento e, se for o caso, a refutação do alegado (vida eterna), o primeiro homem continuava a afirmar que ele era Jesus, o senhor da verdade, e que, por isso, ele poderia afirmar que viveria para sempre.

A surpresa do causo acontece porque o segundo homem, sem ter de respeitar qualquer premissa, passa afirmar:

-- Você não é Jesus!

Desesperado, o primeiro homem indaga:

-- Quem é você para afirmar que eu não sou Jesus?

Afirma, então, o segundo homem:

-- Deus!

O diálogo demonstra que a ausência de premissas objetivamente prefixadas (dogmas) impede o desenvolvimento a respeito do tema central (a possibilidade da vida eterna, no exemplo).

Isso também pode acontecer no direito. Numa discussão sobre uma dada norma jurídica, não havendo a fixação do dogma – os enunciados legais – sempre haverá a possibilidade do interlocutor se furtar da discussão, alegando que desconsidera, por inválida ou injusta no seu modelo de referência subjetivo, dado enunciado legal.

Em outro trecho (p. 39-41), o autor afirma – citando Miranda Coutinho – que as decisões podem ser, inclusive, contra legem, o que provaria a impossibilidade de utilização do termo dogmática jurídica.

Uma decisão que numa certa interpretação é contra legem nunca assim será vista por quem a profere, já que tem o dever de fundamentá-la através do direito positivo. Tome-se, como exemplo, aquela famosa decisão do Supremo Tribunal Federal que não considerou estupro presumido a conjunção carnal de um homem com uma menina de 13 anos e alguns meses, tendo em vista as peculiaridades do caso (salvo engano, restou provado que a menina aparentava ter muito mais de 14 anos, já possuía vida sexual ativa etc.). Nesse caso, para alguns, teria o tribunal extrapolado as regras do jogo e aplicado a regra do juiz (Hart), mas para outros (e também para os ministros do STF, provavelmente) houve mera aplicação do Código Penal ao caso. Mera aplicação da norma jurídica (por eles construída no caso concreto a partir do Código Penal), não sendo, absolutamente, a decisão contra legem.

Logo se percebe que é possível empreender um estudo dogmático sem aprisionar o intérprete. No entanto, a ausência de dogma permitiria que o Supremo Tribunal Federal, no exemplo dado, simplesmente afastasse a norma ao caso concreto – sem qualquer fundamentação – já que àquela norma não deveria ser. Ora, não deveria ser segundo quais parâmetros? Subjetivos, naturais, divinos, intrínsecos ao ser humano?

Parece que a fixação dogmática dos enunciados legais permite, sobremaneira, o desenvolvimento epistemológico da ciência do direito, sendo a base da possibilidade de uma refutação objetiva. Se não houver premissa não há diálogo e, sem diálogo, prevalece o arbítrio e a subjetividade.

Outro ponto de dúvida tem como pano de fundo as críticas realizadas pelo autor à completude do fenômeno jurídico e a pequenez de estudá-lo apenas através de um viés dogmático. Ora, muitos estudos dogmáticos encaram essa linha de pesquisa apenas como uma ferramenta, sem reduzir o direito à norma. Mesmo que se faça analogia ao positivismo, é possível afirmar que Kelsen (na Teoria pura e na Teoria geral do direito e do estado) afirma incessantemente que essa é apenas uma forma de se estudar o objeto-direito que podia ser visto sobre vários outros olhares diferentes. Apenas o olhar científico tem de ser baseado em premissas, por isso dogmático.

A contribuição de um estudo dogmático é contribuir mais de perto para uma discussão, mas uma discussão com fim. Trata-se da resolução do conflito de maneira objetiva. Trata-se de ser a ciência do direito, como diria Tércio Sampaio Ferraz Jr, uma tecnologia voltada à resolução de conflitos.

Penso que há um mínimo que, efetivamente, não se pode colocar em discussão que é justamente o estrato lingüístico (os enunciados) donde se inicia o processo de interpretação. Aqui, nesse exato ponto, não haveria dogmática? Não haveria aceitação absoluta? Se a resposta for não, como se poderia, por exemplo, tentar refutar uma certa tese construída por um autor se, quando se mencionasse a existência de um dispositivo legal e se construísse a norma jurídica correlata que contradissesse a tese – o autor contra-argumentasse, afirmando que o dispositivo de lei citado e também a norma correlata não podem servir de fundamento porque não são eficazes ou válidas, pois injustas e, por isso, elas não deveriam ser? Não haveria aqui, a construção de um diálogo improdutivo e não-fundante, impedindo, inclusive, o falseamento de suas alegações?

Na página 64, o autor aduz que “Se as razões que justificam a solução ‘y’ não impõem a invalidade da solução ‘x’, ou não suficientes a que ela seja alterada no plano interpretativo, deve-se buscar uma alteração do direito positivo. Em qualquer caso, porém, é a mesma ciência do direito que indica ao estudioso que a solução é ‘x’, mas deveria ser ‘y’”.

Nesses termos, é de se indagar: qual é o objeto da ciência do direito? Mesmo considerando que todo o arcabouço amplo seja o objeto, a norma será também. Pois bem. Com isso, teríamos que a ciência teria como uma de suas funções “lutar” pela modificação de seu próprio objeto?

A doutrina pode ser tomada como fonte (pragmática) do direito, mas essa mesma doutrina (que faz ciência do direito) está sim adstrita aos enunciados legais. É a partir da leitura dos enunciados (dogmas) e com a construção das normas jurídicas que a doutrina pode influenciar a construção do direito junto ao intérprete autêntico, e não requerendo sejam feitas mudanças legislativas.

Essa segunda função da doutrina até pode ser condensada e misturada no mesmo âmbito de um estudo dogmático e, até mesmo, gerar efeitos com a influência dos legisladores, no entanto, dentro de um universo de refutação (tão caro aos estudos científicos), um estudo dogmático – tomado como necessária fixação dos enunciados legais como objeto de análise – será muito mais fértil e operacional. Ou não?

Algumas observações metodológicas para aperfeiçoamento da segunda edição

· Página 1. A citação da obra de Theodor Schneider indica duas obras (A e B). No entanto, a bibliografia indica apenas uma.

Página 5. Não há referência a qualquer livro do Friedrich Muller na bibliografia.


--- NOTAS ---

(1) MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Por que dogmática jurídica? cit., p. 1. As demais referências à obra em análise serão realizadas apenas com a aposição do número das páginas cujas citações forem extraídas no próprio corpo do texto.

(2) BOMFIM, Diego Marcel. Tributação e livre concorrência: análise da influência do princípio da livre concorrência no exercício da competência tributária. Dissertação (Mestrado), São Paulo: PUC/SP, 2009, p. 219.

(3) A leitura do texto ora criticado me impeliu, quase me obrigou por uma questão de honestidade intelectual, a definir analiticamente o que entendia por estudo dogmático do direito quando da elaboração da minha dissertação de mestrado. Cf. BOMFIM, Diego Marcel. Tributação e livre concorrência. cit., passim.

(4)“Assentado o conceito de verdade na concordância entre a imagem que o sujeito faz do objeto com esse objeto...”. (p. 16). “... se o conhecimento é a interminável busca pela essência de um objeto (verdade), busca esta feita a partir da imagem que o homem tem ou faz desse objeto (existência)...” (p. 27).




***


Eu respondi ao Diego, escrevendo ao longo do texto dele próprio - com outra fonte - minhas observações e eventuais contra-argumentos. Aqui no blog, preferi resumi-las em separado, nesta parte final do post, assim:

1. Quanto à discussão ser, ou não, "meramente" terminológica:

A discussão até pode ser terminológica, mas destina-se a evitar possíveis equívocos que podem decorrer do uso da terminologia inadequada. Foi por isso que afirmei não ser ela “meramente” terminológica. Mas, realmente, como você explica no início, talvez nem existam discussões “meramente” terminológicas, pois sempre haverá a repercussão para além da mera escolha no uso do termo.

2. Quanto ao Prof. Lapatza defender a autonomia do Direito Tributário:

Eu não pretendi dizer que o Prof. Lapatza seja defensor da autonomia do direito tributário. Apenas mencionei que, ao tratar da questão da autonomia (não importando como perante ela se posiciona), ele usa a expressão ‘dogmática’ como sinônimo de ‘científica’. Foi em relação a Dino Jarach que eu disse tratar-se de uma defesa da autonomia do direito tributário. De qualquer modo, deixarei isso mais claro em eventual segunda edição.

3. Quanto ao papel da ciência não ser apenas o descritivo, mas também prescritivo:

Confesso que, lendo as observações, percebi que a minha tese de doutorado é um aprofundamento dessa questão, suscitada de forma muito superficial no “Por que dogmática...?”. Não pretendo que o cientista descreva o direito que deve ser. Ele deve descrever o direito que é, mas essa descrição não tem como ser dissociada da idéia que o sujeito faz do direito que deve ser.
Ao escolher um objeto para ser descrito (e não outro), há juízo de valor. Ao escolher quais características do objeto devem ser descritas, e quais não, também. E a razão de ser dessa descrição (afinal, para que descrever?), da mesma forma, envolve juízos de valor. Em outras palavras, a concepção do intérprete sobre “o que o direito deve ser” sempre interfere na forma como ele vê e descreve o “direito que é”. Por isso existem as divergências interpretativas, e por isso as afirmações feitas em torno do direito, ainda quando partam dos textos, não podem ser dogmáticas (afinal, as pessoas nem sempre dão ao texto o mesmo sentido...).

4. A dicotomia entre texto e norma salva o uso da expressão "dogmática jurídica"?

Acho que não. Ao contrário, a dicotomia é a demonstração de que a expressão deve ser abandonada, sobretudo porque o texto tem o sentido que o intérprete atribui a ele, e não um significado “em si” independente do sujeito. Como esses sentidos variam, não existindo “um sentido” unívoco e inquestionável para cada texto, não se pode dizer que estes, os textos, sejam dogmas. A não ser que se dê à palavra dogma sentido inteiramente diverso e até contrário do que ela tem hoje.

5. A verdade define-se pela correspondência ou pelo consenso?

Esse foi outro ponto que enfrentei com mais vagar na tese, e em torno do qual, confesso, até hoje não tenho certeza a respeito. Considero que a verdade se define pela correspondência, mas nunca temos como ter certeza quanto a essa correspondência, pelo que se faz importante recorrer ao consenso. É ele que nos permite saber se estamos mais próximos ou mais distantes dela.
Um professor do doutorado, Günter Maluschke, “quase me bate” porque defendi isso. Mas considero que, se a correspondência existe (ou se se está próximo dela), o consenso será mais facilmente obtido. Se há consenso sobre algo que não é verdadeiro, este será cedo ou tarde desfeito, tão logo alguém aponte (e convença os demais que, afinal, são também racionais) o defeito na teoria em torno da qual se formou o consenso. Em resumo, a correspondência é a verdade definitiva (inalcançável), e, através do consenso, se chega à verdade provisória, concreta, histórica e mutável. A primeira serve de padrão para a segunda, que dela infinitamente se aproxima. Conhecemos a segunda, que pensamos ser igual à primeira, até que aparece alguém (um Einstein, um Giordano Bruno, um Copérnico), para mostrar que não, nos termos referidos por Kuhn.

6. Mais uma vez, a questão da ciência prescritiva. Faltaria o livro explicar a forma e o controle dessa "construção prescritiva" feita pela ciência:

O que considero é que toda teoria descreve, mas não se limita a isso. A descrição é sempre feita para se chegar a alguma finalidade. Afinal, por que um cientista resolve descrever o ciclo de reprodução do vírus da gripe H1N1, em vez de descrever a influência da quantidade de óleo na trajetória de um grão de milho dentro da panela quando vira pipoca? Porque a descrição é feita para que se altere a realidade. Foi isso o que eu quis dizer quando afirmei que a ciência descreve, mas o faz para, em seguida, prescrever. O cientista que descrever o ciclo de reprodução do vírus da gripe suína, depois de fazê-lo, prescreverá como barrar essa reprodução de forma mais eficiente, como evitá-la etc.
Mas eu não defendo que o cientista confunda o direito que é e o direito que deve ser. Como se trata de realidade institucional, o segundo influencia – é inevitável – na forma como o primeiro é compreendido, no âmbito exegético. Nesse ponto, os limites à “construção prescritiva” são os mesmos impostos à “atividade criadora” do intérprete, que deve fundamentar racionalmente sua decisão etc. Mas a “construção prescritiva” pode dar-se no plano legislativo. Quando um autor afirma que a atual lei de execuções fiscais tem defeitos tais ou tais, e preconiza alterações que visem ao seu aperfeiçoamento, está fazendo ciência também, nesse sentido. É o mesmo que se dá quando um cientista preconiza o uso de uma asa de formato diferente, com winglets nas pontas, para propiciar uma economia de combustível para o avião a jato.

7. Não existiria incoerência ou contradição entre um estudo positivista do Direito e a distinção entre texto e norma ou mesmo o reconhecimento de que não é unívoco o sentido desta:

Na verdade, não pretendo reduzir o positivismo à Teoria Pura do Direito, e nem esta ao uso da expressão “dogmática...”. Certamente existem autores positivistas, notadamente da escola sociológica (Pontes de Miranda, Tobias Barreto etc.) que sequer admitiriam ver os textos legais como “dogmas”. O que me pareceu foi que o positivismo foi o responsável pela difusão do termo, que é bastante coerente com a idéia central a quase todas as suas divisões (pelo menos as de cunho normativista), que pretendem se ocupar apenas do direito que é, “proibindo” o cientista de cogitar sobre como ele deveria ou poderia ser.

8. Tomar o texto legal como dogma seria um ponto de partida sem o qual não seria possível a discussão racional em torno do Direito:

Acredito que existe uma diferença entre tomar o texto legal como ponto de partida, e tomar o texto legal como ponto de partida “necessário” contra o qual não pode ser investido “qualquer contra argumento”. Há uma distinção no grau de importância (absoluto ou relativo) atribuído a esse ponto de partida.
Quando alguém realiza o que se tem chamado de overrulling, ou “ponderação de regras”, muitas vezes se dá ao texto um sentido bem diverso de sua literalidade. É como se aquele texto fosse posto de lado. O fato de a decisão continuar sendo buscada dentro do sistema não afasta o detalhe de que aquele texto específico (que também deveria ser um “ponto de partida”), foi afastado. Não é, portanto, um “dogma”, assim entendido aquilo tido por “necessário” e que não pode sofrer “qualquer” contra-argumento.
Além disso, se mesmo sem sair do sistema posso extrair decisão “a” ou decisão “b” para um mesmo caso (como na moldura de Kelsen), podendo haver divergência quanto a essas soluções, não há como dizer que sejam dogmáticas. Afinal, contra elas podem ser invocados inúmeros contra-argumentos.

9. Ainda a importância do dogma: numa discussão sobre uma dada norma jurídica, não havendo a fixação do dogma – os enunciados legais – sempre haverá a possibilidade do interlocutor se furtar da discussão, alegando que desconsidera, por inválida ou injusta no seu modelo de referência subjetivo, dado enunciado legal:

Bastante razoável seu argumento. O afastamento do dogma, nesse sentido, seria dogmático, porque retiraria toda a racionalidade da discussão. Mais ou menos como aquelas duas crianças que discutem à exaustão um tema e, quando uma vê que perdeu o debate, encerra-o, enfaticamente, dizendo: “- Pode até ser assado para você, mas PARA MIM continua assim”.
Entretanto, não defendo que os textos legais não tenham qualquer valor, ou que possam ser afastados sempre que se desejar. Mais uma vez, aqui, é preciso insistir na distinção entre ter o texto como um ponto de partida a ser adotado em atenção aos ideais de segurança e democracia, e ter o texto como algo “inafastável” contra o qual não pode ser suscitado “qualquer contra-argumento”.
Sua argumentação parte da premissa de que, ou eu aceito o texto sem admitir “qualquer contra-argumento”, ou então devo afastá-lo para argumentar em torno de questões jurídicas como se ele não existisse. Acredito que exista um meio termo – que na prática é o que acontece – que deve ser considerado.
Além disso, a idéia central é: se o sentido do texto (e o que é ele senão o seu sentido?) é tão maleável, dependendo dos valores do intérprete, das peculiaridades do caso etc., como atribuir à tarefa de descrevê-los a denominação de “dogmática”?

10. Uma das funções da ciência seria lutar pela mudança no seu próprio objeto?

Sim. Não diria “lutar”, mas descrever o seu objeto com o propósito de melhorá-lo. É assim com todas as outras, não é? Se não melhorar o próprio objeto, pelo menos dar a ele um uso ou um tratamento que leve a um resultado “melhor”.
O homem não estuda a atmosfera “só por estudar”. Estuda para prever mudanças climáticas, prevenir catástrofes, controlar a emissão de gases e evitar o efeito estufa... Também não estuda os micróbios, ou o seu código genético, só para os descrever... A ciência é sempre prescritiva, não porque o médico diga “para mim não existem doenças então nunca ficarei doente”, mas porque ele tenta entender as doenças que existem para criar mecanismos que as combatam ou previnam.
Dizer que o cientista do direito deve “apenas” descrever normas é como dizer que o médico deve apenas descrever doenças, ou procedimentos cirúrgicos, estando mesmo proibido de, por qualquer meio, aprimorá-los, investigar sua finalidade ou razão de ser etc.

11. É a partir da leitura dos enunciados (dogmas) e com a construção das normas jurídicas que a doutrina pode influenciar a construção do direito junto ao intérprete autêntico, e não requerendo sejam feitas mudanças legislativas.

Por que a doutrina estaria proibida de sugerir mudanças legislativas? Por qual razão, ao reformarem o CPC, teriam de chamar economistas e sociólogos, e não processualistas?

12. Dentro de um universo de refutação (tão caro aos estudos científicos), um estudo dogmático – tomado como necessária fixação dos enunciados legais como objeto de análise – será muito mais fértil e operacional. Ou não?

É verdade. Reitero aqui o que comentei antes. Se pretendo estudar o direito positivo, tenho que partir da premissa de que ele existe. Mas se posso descrevê-lo de uma forma, e outro colega estudioso do mesmo objeto pode descrevê-lo de outra – e isso ocorre! – como posso dizer que esse estudo é dogmático? Só porque ambos descrevemos – embora de forma diferente – um mesmo objeto que nos é dado?
Nesse caso, por que não dizer apenas “ciência do direito positivo”, para evitar a confusão que o termo dogmática pode suscitar? Afinal, dizer “dogmático” o estudo pode sugerir que a minha interpretação do direito positivo é irrefutável, porquanto feita a partir da “mera descrição” de textos em torno dos quais não se admitem contra-argumentos.
Aliás, nesse ponto, há um argumento que utilizo no livro que considero apropriado. É o seguinte: se dois químicos dizem estar descrevendo certas reações entre duas substâncias, tal como esses fenômenos ocorrem e não como eles deveriam ocorrer, dizem estar fazendo ciência, e não usam a expressão dogmática. O mesmo ocorre com biólogos (quando descrevem um animal que é, e não que deve ser, tendo seu corpo como “ponto de partida”), e não se fala de biologia dogmática. Por que o direito, mesmo se entendido como limitado à descrição de normas, seria dogmático? A expressão, aí, termina por sugerir que se trata de uma descrição irrefutável, tendo sido isso o que eu procurei combater.
Talvez, com todos os esclarecimentos que você faz ao uso da expressão, e que eu fiz acima, a questão termine sendo mesmo “meramente” terminológica. Mas existem certos termos que são mais precisos do que outros. Se digo “ciência do direito positivo”, está claro que desenvolverei um estudo tendo-o como objeto, e não preciso explicar mais nada. Se digo “dogmática”, tenho de dedicar várias linhas para dizer que a dogmática a que me refiro “não é dogmática”. Não seria melhor, então, simplesmente abandonar a expressão?

13. Quanto aos aspectos metodológicos, e finalmente:

A bibliografia tem esse e outros defeitos. Também faltou o do Karl Engisch, que citei e não está referido ao final, e o nome do Marcelo Gleiser saiu errado. Vou corrigir em eventual segunda edição. Obrigado por mais essas duas indicações de problemas, que eu não tinha visto.

No mais, Diego, só tenho a agradecer, sinceramente, pela oportunidade de debater com alguém do seu nível, que, conquanto assoberbado de afazeres, dedicou tamanha atenção ao despretensioso (conquanto você o tenha considerado “audacioso”) livro que escrevi.

E fica aqui no blog, uma vez mais (já constou da mensagem com a qual o respondi), o agradecimento. Muito obrigado, Diego, pela oportunidade do debate!