segunda-feira, 5 de abril de 2010

ITR e imóvel invadido

Recebi esse acórdão do Eduardo Bim, por email. É bem interessante, não tanto pela conclusão (que é notável, diga-se de passagem), mas pelos fundamentos.
Digo não pela conclusão porque a ela se poderia ter chegado por outros caminhos. De acordo com o CTN, são possíveis fatos geradores do ITR a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel rural, entendendo-se como tal não apenas aquela formalmente regularizada em face do Direito Privado, mas a situação de alguém que, "de fato", age como dono do imóvel. Há várias decisões, aliás, relativamente ao IPTU, esclarecendo poder ser também colhido como contribuinte do imposto aquele que detém a posse com animus domini de um imóvel, vale dizer, quem tem a posse "como se dono fosse". Se é assim, a contrario, quem tem a propriedade formal, mas não age "como se dono fosse" porque o imóvel está invadido, só por isso já não poderia ser considerado contribuinte. O acórdão, porém, não se limitou a isso, cogitando mesmo de razoabilidade e boa-fé ao tratar da conduta do Estado (em sentido amplo) que não garante o direito de propriedade mas, paralelamente, exige do contribuinte o imposto sobre esse direito. Essa é uma que, com certeza, vai para a terceira edição do meu "CTN anotado". É conferir:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. ITR. IMÓVEL INVADIDO POR INTEGRANTES DE MOVIMENTO DE FAMÍLIAS SEM-TERRA. AÇÃO DECLARATÓRIA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. FATO GERADOR DO ITR. PROPRIEDADE. MEDIDA LIMINAR DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE NÃO CUMPRIDA PELO ESTADO DO PARANÁ. INTERVENÇÃO FEDERAL ACOLHIDA PELO ÓRGÃO ESPECIAL DO TJPR. INEXISTÊNCIA DE HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA. PERDA ANTECIPADA DA POSSE SEM O DEVIDO PROCESSO DE DESAPROPRIAÇÃO. ESVAZIAMENTO DOS ELEMENTOS DA PROPRIEDADE. DESAPARECIMENTO DA BASE MATERIAL DO FATO GERADOR. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA BOA-FÉ OBJETIVA.
1. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.
2. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento pacífico de que se aplica o prazo prescricional do Decreto 20.910/1932 para demanda declaratória que busca, na verdade, a desconstituição de lançamento tributário (caráter constitutivo negativo da demanda).
3. O Fato Gerador do ITR é a propriedade, o domínio útil, ou a posse, consoante disposição do art. 29 do Código Tributário Nacional.
4. Sem a presença dos elementos objetivos e subjetivos que a lei, expressa ou implicitamente, exige ao qualificar a hipótese de incidência, não se constitui a relação jurídico-tributária.
5. A questão jurídica de fundo cinge-se à legitimidade passiva do proprietário de imóvel rural, invadido por 80 famílias de sem-terra, para responder pelo ITR.
6. Com a invasão, sobre cuja legitimidade não se faz qualquer juízo de valor, o direito de propriedade ficou desprovido de praticamente todos os elementos a ele inerentes: não há mais posse, nem possibilidade de uso ou fruição do bem.
7. Direito de propriedade sem posse, uso, fruição e incapaz de gerar qualquer tipo de renda ao seu titular deixa de ser, na essência, direito de propriedade, pois não passa de uma casca vazia à procura de seu conteúdo e sentido, uma formalidade legal negada pela realidade dos fatos.
8. Por mais legítimas e humanitárias que sejam as razões do Poder Público para não cumprir, por 14 anos, decisão judicial que determinou a reintegração do imóvel ao legítimo proprietário, inclusive com pedido de Intervenção Federal deferido pelo TJPR, há de se convir que o mínimo que do Estado se espera é que reconheça que aquele que – diante da omissão estatal e da dramaticidade dos conflitos agrários deste Brasil de grandes desigualdades sociais – não tem mais direito algum não pode ser tributado por algo que só por ficção ainda é de seu domínio.
9. Ofende o princípio da razoabilidade, o princípio da boa-fé objetiva e o bom senso que o próprio Estado, omisso na salvaguarda de direito dos cidadãos, venha a utilizar a aparência desse mesmo direito, ou o resquício que dele restou, para cobrar tributos que pressupõem a sua incolumidade e existência nos planos jurídico (formal) e fático (material).
10. Irrelevante que a cobrança do tributo e a omissão estatal se encaixem em esferas diferentes da Administração Pública. União, Estados e Municípios, não obstante o perfil e personalidade próprios que lhes conferiu a Constituição de 1988, são parte de um todo maior, que é o Estado brasileiro. Ao final das contas, é este que responde pela garantia dos direitos individuais e sociais, bem como pela razoabilidade da conduta dos vários entes públicos em que se divide e organiza, aí se incluindo a autoridade tributária.
11. Na peculiar situação dos autos, considerando a privação antecipada da posse e o esvaziamento dos elementos da propriedade sem o devido processo de desapropriação, é inexigível o ITR ante o desaparecimento da base material do fato gerador e a violação dos princípios da razoabilidade e da boa-fé objetiva.
12. Recurso Especial parcialmente provido somente para reconhecer a aplicação da prescrição quinquenal.
(STJ, 2 T., v.u., REsp 963.499/PR, rel. Min.HERMAN BENJAMIN, j. em 19/03/2009, DE 14.12.2009)