terça-feira, 8 de junho de 2010

A LC 118 e o encurtamento do prazo prescricional.


Já referi aqui no blog que o STF parece ser "anti-STJ". Se o contribuinte ganha uma questão no STJ, pode esperar que, no STF, vai perder. E vice-versa. Foi assim com COFINS de sociedades de profissionais, com o ICMS incidente na importação de aeronaves, com a restituição do ICMS-ST, com o crédito de IPI no caso de entradas tributadas e saídas isentas etc. Não se trata, como já disse, de ser contra ou a favor do contribuinte. Se um decide uma tese contra o contribuinte, o outro a decide a favor dele, e vice versa. A idéia é um desmanchar a jurisprudência do outro. Raríssimas são as vezes em que ambos conhecem da mesma tese e a resolvem de maneira convergente. Pode ser coincidência, é claro. Não sugiro que seja proposital. Mas que ocorre, ocorre, e, como gosta de repetir o meu pai, contra fatos não há argumentos.
Está ocorrendo algo nesse sentido, agora, em relação à LC 118/2005, e a pretensa "diminuição", por ela veiculada, do prazo prescricional previsto no art. 168, I, do CTN.
Como se sabe, pela tese que ficou conhecida como "dos 5+5", o contribuinte tinha, na prática, 10 anos para pleitear a restituição do indébito, relativamente aos tributos sujeitos a lançamento por homologação.
Em meu CTN anotado eu havia escrito:

O pagamento antecipado extingue o crédito, desde que a autoridade competente, ao homologar a apuração levada a cabo pelo contribuinte, conclua pelo seu acerto e pela suficiência do respectivo pagamento. É por isso que o art. 156 do CTN alude ao pagamento antecipado e à homologação, juntos, como causa da extinção do crédito tributário, em se tratando de lançamento por homologação. Essa, aliás, foi a premissa maior sobre a qual se construiu a tese dos “5+5”, relativamente ao prazo de prescrição da ação de restituição do indébito: (i) o prazo de prescrição, de cinco anos, conta-se a partir da extinção do crédito; (ii) em se tratando de lançamento por homologação, essa extinção ocorre, quando a homologação é tácita (o que ocorre na maioria das vezes), cinco anos após os respectivos fatos geradores; logo, (iii) o prazo de prescrição, de cinco anos, somente tem início ao cabo de cinco anos após a ocorrência do fato gerador.

Entretanto, deve-se ressaltar que essa tese dos “5+5”, já consagrada no STJ, foi expressamente afastada pela LC no 118/2005. Pretendeu-se dar à citada norma caráter intepretativo, para que a mesma pudesse retroagir, o que o STJ não aceitou. Sua aplicação, pois, pode ocorrer apenas em relação aos pagamentos indevidos ocorridos a partir de junho de 2005, da seguinte forma: "(...) É possível simplificar a aplicação da citada regra de direito intertemporal da seguinte forma: I) Para os recolhimentos efetuados até 8/6/2000 (cinco anos antes do inicio da vigência LC 118/2005) aplica-se a regra dos "cinco mais cinco"; II) Para os recolhimentos efetuados entre 9/6/2000 a 8/6/2005 a prescrição ocorrerá em 8/6/2010 (cinco anos a contar da vigência da LC 118/2005); e III) Para os recolhimentos efetuados a partir de 9/6/2005 (início de vigência da LC 118/2005) aplica-se a prescrição quinquenal contada da data do pagamento. Conclui-se, ainda, de forma pragmática, que para todas as ações protocolizadas até 8/6/2010 (cinco anos da vigência da LC 118/05) é de ser afastada a prescrição de indébitos efetuados nos 10 anos anteriores ao seu ajuizamento, nos casos de homologação tácita. (...)" (STJ, 1.ª T, REsp 1086871/SC, j. em 24/03/2009, DJe de 02/04/2009). Confiram-se, a propósito, as notas ao art. 106, I, do CTN.

A questão estava resolvida, pelo STJ, no âmbito dos chamados "recursos repetitivos", não comportando mais discussão. E, a meu ver, estava resolvida corretamente. O "encurtamento" do prazo, levado a efeito pela LC 118/2005, não pode de maneira alguma ser aplicado senão a pagamentos indevidos que ocorram a partir do início de sua vigência, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade das leis. É uma questão de Teoria do Direito, e de respeito à idéia de tempus regit actum, como escrevi em texto que publiquei na Revista Dialética de Direito Tributário há alguns anos:

“Normas que cuidam de prazos, notadamente de prazos longos, como são os prescricionais, quando são alteradas, devem respeitar certos postulados de direito intertemporal, sob pena de retroagirem. Imagine-se que o prazo para a interposição do recurso extraordinário, que é de 15 dias, seja reduzido para 10 dias, e a lei que assim dispõe entra em vigor quando determinado advogado estava a concluir seu recurso, para protocolá-lo no 14.º dia do prazo. A aplicação imediata do novo prazo, de 10 dias, “puxará o tapete” do tal advogado, que, em vez de ainda ter um dia de prazo, já terá estourado em quatro dias o seu prazo.
O mesmo ocorre com a repetição do indébito tributário. Caso se entenda que o prazo era de 10 anos, sua redução imediata para 5 anos implicará a total supressão do direito à restituição para todos aqueles que já tinham deixado passar mais da metade do prazo que tinham. Se a LC 118/2005 não tivesse contado com uma vacatio legis, a surpresa teria sido total, mas isso é irrelevante, pois a vacatio naturalmente não dá à lei autorização para, quando entrar em vigor, retroagir.
Trata-se de uma conseqüência óbvia de algumas noções de Teoria Geral do Direito.
Cumpre lembrar que o suporte fático (hipótese de incidência, tatbestand, fattispecie) da norma que cuida de um prazo prescricional contém, ao lado de outros elementos (existência de pretensão, inexistência de hipóteses interruptivas ou suspensivas etc.), um essencial: o tempo (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Campinas: Bookseller, 2000, tomo 6, p. 146). Sua estrutura lingüística pode ser descrita mais ou menos assim:

- se transcorrerem “x” anos a partir do termo inicial “t” (hipótese);
- considera-se prescrita a pretensão relativa a “p” (conseqüência).

Suponha-se que a norma N1 fixa esse prazo prescricional em 10 anos. Sob a sua vigência, Miguel vê ocorrer o termo inicial “t”, e deixa transcorrerem 8 anos sem ajuizar a ação. A norma ainda não incidiu, e, por isso mesmo, pode-se dizer que a prescrição da pretensão de Miguel ainda não está consumada. Entretanto, antes de se consumarem os 10 anos, uma nova norma (N2) altera esse prazo, reduzindo-o para 5 anos. Nesse contexto, caso se proceda à “aplicação imediata” de N2 a uma ação proposta por Miguel após a sua vigência, a sua incidência ocorrerá sobre suporte fático ocorrido muito antes, em nítida e total retroatividade. O transcurso dos cinco anos, que provoca a incidência da norma e gera como conseqüência a consumação da prescrição, no caso, ocorreu antes do início de sua vigência.
Por conta disso, a norma nova (N2) somente pode ser aplicada aos suportes fáticos (transcurso cinco anos...) que ocorrerem após o início de sua vigência. Daí porque se uma norma nova aumenta prazos prescricionais, pode ser aplicada imediatamente aos prazos em curso, sem problema algum, o que não ocorre com aquela que reduz esses prazos. Quando há redução, a norma nova somente é aplicável quando o “pedaço” do prazo anterior ainda por transcorrer for maior que o novo prazo nela fixado. Se for menor, a norma nova não pode ser aplicada (pois não poderá alcançar a parte desse prazo temporalmente situada antes do início de sua vigência), devendo, por isso, a situação continuar sendo disciplinada pela norma anterior (N1).
Dessa forma, para que haja o necessário respeito à regra da irretroatividade das leis, a regra do art. 3.º da LC 118/2005 somente pode ser aplicada aos prazos em curso de forma a que, depois de sua vigência, não se disponha de prazo superior a 5 anos para a restituição do indébito tributário. Tudo dependerá de quanto do prazo em curso ainda subsiste. Se um contribuinte, com a entrada em vigor da LC 118/2005, dispunha ainda de 6, 7, 8, ou 9 anos para postular a restituição do indébito tributário, esse prazo é reduzido de sorte a que somente subsistam mais 5 anos. Mas se mais da metade do prazo já se escoou (e, portanto, faltam menos de 5 anos para que o prazo se encerre por completo), o prazo deve ser contado nos termos da legislação anterior. (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Lançamento por homologação, repetição do indébito e prescrição. O "encurtamento" do prazo levado a efeito pela LC 118/2005. Revista Dialética de Direito Tributário n.º 140, p. 45 e ss.)

Não obstante, a questão foi submetida ao STF pela Fazenda em face da decisão do STJ que considerou inconstitucional a aplicação retroativa da LC 118/2005. E, no STF, a questão - que no STJ foi resolvida pacificamente em favor do contribuinte - está praticamente empatada (?!). Foi o que se noticiou:

Pedido de vista adia julgamento sobre prazo para pedir restituição de pagamento indevido de tributos sujeitos a lançamento por homologação

Pedido de vista do ministro Eros Grau interrompeu, nesta quarta-feira (5) o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 566621, em que se discute a constitucionalidade da segunda parte do artigo 4º da Lei Complementar nº 118/2005, que determinou a aplicação retroativa do seu artigo 3º, norma que, ao interpretar o artigo 168, I, do Código Tributário Nacional (CTN), fixou em cinco anos, desde o pagamento indevido, o prazo para o contribuinte buscar a repetição de indébitos tributários (restituição) relativamente a tributos sujeitos a lançamento por homologação.

O julgamento foi adiado quando cinco ministros já haviam se manifestado pela inconstitucionalidade do artigo mencionado da LC 118 por violação à segurança jurídica, pois teria se sobreposto, de forma retroativa, à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que consolidou interpretação no sentido de que o prazo seria de dez anos contados do fato gerador.

A chamada tese dos "cinco mais cinco", firmada pelo STJ, decorreu da aplicação combinada dos artigos 150, parágrafos 1º e 4º, 156, VII, e 168, I, do CTN. De acordo com interpretação de tais artigos, o contribuinte tinha o prazo de cinco anos para solicitar a restituição de valores, contados do decurso do prazo para homologação, também de cinco anos, mas contados do fato gerador. Com isso, na prática, nos casos de homologação tácita, o prazo era de dez anos contados do fato gerador.

Repercussão geral

O STF deu ao processo o caráter de repercussão geral. Assim, um grande número de processos versando sobre o mesmo assunto, em tramitação nos mais diversos tribunais, ficam suspensos até a decisão de mérito do STF sobre o tema.

No julgamento de hoje, a relatora, ministra Ellen Gracie, reportou-se ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 605, relatada pelo ministro Celso de Mello, lembrando que, naquela oportunidade, a Suprema Corte assentou que mesmo as leis que se autoproclamam interpretativas estão sujeitas ao crivo do Judiciário.

Analisando o art. 3º da LC 118/2005, a ministra entendeu que o dispositivo não tem caráter meramente interpretativo, pois inova no mundo jurídico, reduzindo o prazo de dez anos consolidado pela jurisprudência do STJ. Assim, descabe dar ao art. 3º aplicação retroativa, sob pena de violação ao princípio da segurança jurídica. Para a relatora, também viola tal princípio a aplicação imediata e abrupta do prazo novo a ações imediatamente posteriores à publicação da LC 118/05. Entendeu, no ponto, que os 120 dias de vacacio legis (adaptação) configuram tempo necessário e suficiente para a transição do prazo maior de 10 anos para o prazo menor de 5 anos, viabilizando, após o seu decurso, a partir de 9 de junho de 2005, a aplicação plena do art. 3º da LC 118/05 às ações ajuizadas a partir de então.

A ministra Ellen Gracie adotou, assim, o entendimento do próprio STF na Súmula 445, em detrimento da aplicação do art. 2.028 do Código Civil. É que, tendo a LC 118/05 estabelecido aplicação retroativa, só caberia eliminar o que é inconstitucional, não havendo lacuna que permita a invocação do art. 2.028.

Em suma, ela considerou inconstitucional a segunda parte do artigo 4º da LC 118/05, por violação à segurança jurídica, entendendo aplicável o novo prazo às ações ajuizadas após a vacacio legis, ou seja, a partir de 9 de junho de 2005.

Votaram de acordo com a ministra Ellen Gracie os ministros Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Cezar Peluso. Mas, para o ministro Celso, o novo prazo só poderia ser aplicado aos fatos (indébitos) posteriores à vigência da LC 118/05 .

Divergência

O ministro Marco Aurélio foi o segundo a votar e abriu a divergência em relação ao voto da ministra Ellen Gracie. Para ele, a Lei Complementar 118/05 apenas interpreta a regra que já valia – ou seja, a reclamação dos valores pagos indevidamente deve ser feita no prazo de cinco anos segundo o que estaria previsto desde 1966, no CTN.

Ao divergir do voto da relatora, o ministro Marco Aurélio deu razão à União e proveu o RE. Segundo ele, foi o STJ que flexibilizou indevidamente esse prazo para dez anos.

Como ele, votaram os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Gilmar Mendes.

FK,MG/EH,LP

Processos relacionados
RE 566621


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Como o julgamento ainda não foi concluído, é ainda possível que algum ministro mude seu entendimento quanto ao início da incidência do novo prazo, para aderir à tese, corretíssima, do Min. Celso de Mello. Mas, se isso não ocorrer, na melhor das hipóteses o contribuinte não terá a lei aplicada a ações já em curso quando de sua propositura, atingindo-se, porém, todos aqueles que ajuizaram ações algum tempo depois, ainda que para recuperar pagamentos feitos antes da nova lei.
Com todo o respeito, a questão não é, como pareceu à Ministra Ellen, de analogia, de omissão legislativa ou de vontade do legislador. A questão é de respeito ao princípio da irretroatividade, e à idéia de que se o "suporte fático" da norma que trata do prazo de prescrição é o decurso de um lapso de cinco anos, essa norma somente pode incidir sobre cinco anos que tenham ocorrido integralmente depois de sua vigência. Do contrário, estará atingindo fatos anteriores a ela, em prejuízo à segurança jurídica.
Resta aguardar para ver como o STF, com o voto dos ministros que faltam, resolverá a questão.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Interpretação e integração da lei tributária

Dando continuidade à coleção que, há dez anos, o ICET edita em parceria com a Dialética, encaminharemos em breve os artigos que integrarão o próximo volume, dedicado ao tema "Interpretação e Integração da Lei Tributária".
Contamos, desta vez, na escolha do tema e principalmente na elaboração das perguntas, com a valiosa colaboração da Profa. Raquel Machado, que se ocupa do tema em seu Doutorado em Direito Tributário, que cursa na USP.
Deixo aqui, para que se possa ter uma idéia dos assuntos tratados no livro, as perguntas que foram submetidas aos autores convidados. Pareceram-me pertinentes, atuais e desafiadoras. Algumas delas demandariam toda uma tese para serem adequadamente respondidas.


Interpretação e aplicação da lei tributária

1. Noções fundamentais

1.1. O que é interpretação? Há distinção entre interpretação e hermenêutica?

1.2. Há distinção entre a norma e o texto que eventualmente a exprime? Qual?

1.3. É possível aferir o sentido de um texto legal sem partir de um caso concreto em face do qual se cogita de sua aplicação?

1.4. Há discricionariedade por parte do intérprete, na interpretação dos textos legais, ou pode-se falar na existência de um resultado correto?

1.5. Existe distinção entre interpretação e integração? Qual o seu relevo no âmbito tributário?

2. Interpretação da lei tributária no CTN

2.1. Existe algum método ou elemento peculiar a ser utilizado na interpretação da lei tributária?

2.2. Como deve ser entendido o art. 111 do CTN, segundo o qual, nas hipóteses que indica, a legislação tributária deve ser interpretada literalmente? O que fazer em situações nas quais as palavras utilizadas pelo legislador tenham literalmente mais de um sentido?

2.3. Quando deve ser considerada como presente a “dúvida”, para efeito de aplicação do disposto no art. 112 do CTN?

2.4. Qual o fundamento das limitações ao uso da integração, contidas no art. 108, §§ 1.º e 2.º do CTN?

2.5. A desconsideração de negócio jurídico desprovido de patologias que o invalidem, feita com a finalidade de lhe atribuir efeito tributário próprio de negócio diverso, encontra óbice no art. 108, § 1.º, do CTN?

3. Interpretação da lei tributária à luz da Constituição

3.1. Qual o papel da Constituição no processo de interpretação dos textos de normas a ela inferiores?

3.2. Se a lei tributária não pode alterar os conceitos, institutos e formas de Direito Privado utilizados pela Constituição (CTN, art. 110), onde o intérprete deve buscar o sentido dos mesmos? Na própria Constituição? No Direito Privado?

3.3. Qual o efeito da modificação, no âmbito do Direito Privado, do significado de conceitos utilizados pela legislação tributária? Faz diferença o fato de tais conceitos terem sido empregados pela Constituição?

3.4. No caso de negativa de vigência ao art. 110 do CTN, por parte de decisão proferida por Tribunal de Apelação (TRF ou TJ), é cabível Recurso Especial, ou Recurso Extraordinário?

4. Direito e Economia

4.1. O que preconiza a corrente intitulada law and economics relativamente à interpretação das normas jurídicas? Qual sua utilidade ou aplicabilidade no âmbito tributário?

4.2. Há distinção entre interpretação econômica da norma tributária e interpretação de acordo com os efeitos econômicos da norma tributária? Caso afirmativo, qual?

4.3. Como aferir, a partir de uma análise econômica do Direito, quais realidades ou efeitos econômicos são desejáveis, devendo ser mantidos ou almejados, e quais são indesejáveis, devendo ser combatidos ou evitados? Se a Economia deve ser levada em conta na interpretação das normas jurídicas, como saber quando estas devem modificar aquela?

5. Existem aspectos relevantes em torno do tema não suscitados nas questões anteriores? Quais são eles?