1.1. Não é de hoje que os tributos conhecidos como indiretos suscitam questões e em torno delas dividem os estudiosos do Direito Tributário, da Economia e da Ciência das Finanças. Apesar disso, pode-se dizer que o tema ainda é carente de atenção, sobretudo no que diz respeito ao tratamento que lhe é dado no Brasil. Na doutrina, quando não é examinado de forma superficial e simplista, é objeto de exame que, conquanto profundo, dá pouca atenção a alguns dispositivos da Constituição e ao que têm decidido os Tribunais . Por sua vez, ao ser disciplinado na legislação e pela jurisprudência, recebe tratamento fragmentado e, o que é pior, desprovido de coerência.
1.2. Há autores que rejeitam a classificação dos tributos entre diretos e indiretos, afirmando-a não-científica, meramente econômica ou simplesmente equivocada, não podendo ser levada em consideração para fins jurídicos em nenhuma hipótese. Nem sempre há suficiente clareza, contudo, quanto ao critério que utilizam para distinguir o que é científico do que não é; ou o que é econômico do que é jurídico.
1.3. De rigor, não se pode dizer que a classificação de tributos em diretos e indiretos seja exclusivamente econômica, pois é justamente no estudo da Economia que se verifica a possibilidade de todos os tributos terem, a depender das circunstâncias, seu ônus transferido a terceiro, o qual não necessariamente está situado à frente na cadeia produtiva. Isso significa dizer que, economicamente, nem sempre o ônus do tributo recai sobre o consumidor; quer dizer ainda que isso não ocorre em relação a um tipo específico de tributo, o que, antes de justificar, desautoriza a pretendida classificação (todos os tributos poderiam ser ou não indiretos, a depender das circunstâncias). Mas pode ser que a classificação, conquanto não seja “econômica”, leve em consideração um efeito econômico da tributação, que poderia ter relevância jurídica quanto a certos tributos, por ser neles mais perceptível. É isso, esse reconhecimento de efeitos jurídicos, que os críticos da classificação repelem.
1.4. Em oposição a estes, que rejeitam a classificação, há os que a descrevem e acolhem com grande simplicidade. Embora cada um à sua maneira, dela cuidam como se fosse muito fácil identificar os tributos que se encaixam na classe dos indiretos, separando-os daqueles tidos (também de modo surpreendentemente pacífico) como diretos, sendo óbvios e perfeitamente justificáveis, por igual, os efeitos jurídicos dessa diferenciação, os quais, porém, nem sempre são tratados com clareza e coerência
1.5. Conquanto não seja tão simples e fácil entendê-la, o certo é que tampouco se pode ignorar a classificação, até porque existem tributos que aparentemente são graduados em função da capacidade contributiva (ou de outra característica) indiretamente manifestada por alguém diverso daquele legalmente definido como sujeito passivo da exação. Poder-se-ia dizer, aliás, que há, no ordenamento jurídico brasileiro, disposições que fazem alusão à circunstância de certos tributos onerarem produtos e serviços, sendo indiretamente suportados por quem os consome. É o caso do art. 150, § 5.º, da CF/88, segundo o qual “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.” A grande questão, nesse contexto, talvez seja não a de saber se a classificação existe e deve ser considerada para fins jurídicos, mas sim quais conseqüências jurídicas podem ser dela validamente extraídas, e quais não podem.
1.6. Aliás, os principais problemas surgidos em torno dos tributos conhecidos como indiretos decorrem precisamente da incoerência com que o legislador, parte da doutrina e a jurisprudência extraem conseqüências jurídicas dessa classificação. É incoerente e contraditória a forma como os mais diversos aspectos da tributação indireta são tratados pela ordem jurídica brasileira.
1.7. Para exemplificar as apontadas contradição e incoerência, basta perceber que, em situações distintas, a ordem jurídica (tal como interpretada pela jurisprudência) considera, em relação aos tributos que usualmente se classificam como indiretos (v.g., o ICMS), que o contribuinte a ser levado em consideração é ora o de direito, ora o de fato. Quando o contribuinte de direito pleiteia a restituição do tributo pago indevidamente, por exemplo, exige-se a prova de que não houve o repasse do ônus representado pelo tributo ao contribuinte de fato (cuja existência, para este efeito, é levada em consideração), sob pena de indeferimento da restituição. Mas, contraditoriamente, quando o contribuinte de direito é vítima da inadimplência do comprador, dito contribuinte de fato, diz-se que esta não lhe exime de pagar o tributo, eis que ele, o vendedor, é o “verdadeiro” contribuinte, não havendo qualquer relação jurídica entre o Estado e o contribuinte de fato (cuja existência, veja-se, é agora tida como juridicamente irrelevante). O mesmo se dá quanto o contribuinte de fato pleiteia a restituição do indébito tributário.
1.8. Mais exemplos não são aqui necessários – serão, ao seu tempo, examinados neste trabalho – para demonstrar que, conforme a circunstância, considera-se ora de suma importância, ora inteiramente irrelevante, para fins jurídicos (vale dizer, para fins de reconhecimento da existência de direitos subjetivos e deveres jurídicos), a existência de um contribuinte de fato, que supostamente arca com o ônus de um tributo legalmente devido por um contribuinte de direito. Nesse contexto, reconheça-se, talvez seja difícil determinar um regime jurídico adequado para o tributo indireto, mas isso não traz dificuldade para se apontarem as tais contradições, nem para que se conclua serem elas inaceitáveis. Independentemente de como se defina o tributo indireto e de como se entenda seu regime jurídico, suas características deverão ser levadas em consideração de forma coerente. E, o mais importante: não se pode, no trato dado à questão, chegar-se a conclusão que crie situação incompatível com o ordenamento jurídico, notadamente com suas normas situadas hierarquicamente acima daquelas que supostamente cuidam dos efeitos jurídicos que decorrem da natureza “indireta” deste ou daquele tributo.
1.9. Nessa ordem de idéias, pretende-se examinar, neste estudo, o que se deve considerar um tributo indireto, e qual seu regime jurídico à luz do ordenamento brasileiro. Mas, especialmente, almeja-se demonstrar as já mencionadas contradição e incoerência com que o legislador e a jurisprudência tratam o tema no Brasil. Se não se lograr, aqui, cumprir o primeiro propósito do trabalho, o esforço ainda assim terá valido a pena se, pelo menos, se conseguirem despertar os estudiosos da tributação no país para o segundo, relativo aos defeitos da forma como o tema vem sendo tratado. Afinal, na ciência, muitas vezes as perguntas que alguém suscita são mais importantes que as respostas que se lhes dão.