terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Notas de epistemologia


Neste pequeno recesso resolvi iniciar a leitura de "Steve Jobs", biografia escrita por Walter Isaacson. Já tinha lido a biografia de Einstein, feita também por Isaacson, e imaginava que a de Jobs estaria igualmente bem escrita. Realmente está. Ainda no primeiro terço do livro, resolvi fazer, aqui, duas rápidas anotações sobre ele, de natureza, digamos, epistemológica.
Como no próximo semestre oferecerei a disciplina "Epistemologia Jurídica" na pós-graduação em Direito (Mestrado/Doutorado) da UFC, reuni alguma bibliografia e estou organizando as aulas. Para alternar com leituras menos densas, nas horas vagas dedico-me à biografia de Jobs, mas não tiro a epistemologia da cabeça, pelo que duas coisas me vieram à mente.
Primeira: as qualidades de um objeto dependem do sujeito que o observa. Demonstração disso é que, por estar preocupado com epistemologia jurídica, percebi no livro coisas que outra pessoa (aliás, eu mesmo, em outro momento) poderia não perceber.
Segunda: Jobs gostava de imaginar objetos que não existiam, e aparentemente não eram possíveis de serem construídos, deixando doidos os engenheiros que trabalhavam para ele na tentativa de implementá-los. Foi o que se deu com o primeiro mouse da Apple, com as janelas do sistema operacional do primeiro Mac etc. Isso mostra que, de fato, a ciência não se deve limitar a descrever o que existe, mas fazê-lo com a finalidade de transformar - ou preservar, o que não deixa de ser uma forma de transformação (um post para isso depois) - a realidade, transformação que decorre da capacidade da mente humana de diferenciar real e possível. Do contrário, ainda estaríamos descrevendo, de dentro de uma caverna, os fenômenos da natureza...
Aliás, quanto ao que se considera "possível", outro dado interessante. No início da década de 80, Bill Atkinson, que trabalhava para a Apple na elaboração de software, estava tentando fazer com que as janelas do sistema operacional do Mac se sobrepusessem (algo tão comum hoje em dia). Os programadores mais experientes, que já tinham tentado isso, consideravam impossível. Mas Atkinson não sabia. Por isso, não desistiu. Tentou, e conseguiu. Daí sua afirmação, contida na página 118 da biografia (na edição em Português), de que o impressiona o poder da ingenuidade: "justamente porque não sabia que não poderia ser feito, eu estava capacitado a fazê-lo." A ingenuidade afastou o que, nas palavras de Bachelard, seria um obstáculo epistemológico...
No mais, a biografia permite muitas associações com o livro "Andar do bêbado", aqui no blog já referido algumas vezes. Uma delas é a própria escolha do nome Apple, ligado às dietas loucas que Jobs fazia à época e a uma temporada que passou em uma fazenda de maçãs. Outra, ainda mais pertinente, refere-se ao fato de Ron Wayne, amigo de Jobs e Wozniak, ter desistido dos seus 10% no capital inicial da Apple por achar os dois sócios majoritários "um verdadeiro redemoinho". Como a empresa, à época, era uma sociedade simples sem limitação da responsabilidade dos sócios, Wayne teve medo de Jobs e Wozniak (que tinham 45% do capital cada um, mas nenhum patrimônio pessoal) atolarem a empresa em dívidas e as execuções serem redirecionadas contra ele, que já tinha algum patrimônio (uma casa, um carro...). Ele saiu da sociedade e recebeu cerca de oitocentos dólares. Se tivesse permanecido, sua participação hoje valeria certa de 2,6 bilhões de dólares... É fácil pensar que ele não deveria ter saído da sociedade, agora, em 2011, quando se sabe o êxito que ela teve. Mas, à época...

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Amartya Sen e Lee Kuan Yew

Como disse no post anterior, uma questão que pensava em inserir na seleção para o Mestrado em Direito da UFC, feita agora no final de 2011, relacionava-se a Amartya Sen e a Lee Kuan Yew.

A questão era a seguinte:
Quais são nossas prioridades? Primeiro, o bem estar social, a sobrevivência do nosso povo. Depois, normas e processos democráticos que de tempos em tempos temos de suspender.” (Lee Kuan Yew)

Com raras exceções, a democracia não trouxe bons governos aos novos países em desenvolvimento... O que os asiáticos valorizam não necessariamente é o que os americanos ou os europeus valorizam. Os ocidentais valorizam as liberdades do indivíduo. Como um asiático com herança cultural chinesa, valorizo um governo que seja honesto, efetivo e eficiente.” (Lee Kuan Yew)
No pensamento de Amartya Sen é possível encontrar referência às mesmas questões versadas nesses dois trechos de discursos do então primeiro ministro de Cingapura? Destaque convergências e possíveis divergências, analisando-as à luz do pensamento de Sen.



Como resposta, esperar-se-ia algo mais ou menos assim:

           Sim, é possível encontrar referência a tais idéias, que perpassam grande parte da obra de Amartya Sen. É praticamente nenhuma, porém, a convergência entre o pensamento de Sen e o de Lee Kuan Yew, pelo menos no que diz respeito às idéias contidas nas transcrições feitas na prova.

            Sen discrepa de autores que elegem a maximização da felicidade ou do prazer como critério para orientar as decisões coletivas (utilitaristas), e mesmo dos que substituem tais critérios por recursos, bens materiais ou renda (v.g., Rawls e Dworkin), apontando defeitos em cada uma dessas abordagens cuja análise não se comportaria aqui. Para ele, a criatura humana se caracteriza pela liberdade, sendo o exercício desta o seu maior bem e sua maior aspiração. Bens materiais, renda, riqueza etc. só têm relevância porque conferem maior liberdade a quem os acumula. A idéia básica de Sen, neste ponto, é a de que não é possível a alguém definir, de forma geral e para todos, a melhor forma de se viver, mas é possível assegurar às pessoas condições para que vivam como lhes parecer melhor.

            Nessa ordem de idéias, é um contrassenso suprimir a liberdade, por meio do sacrifício à democracia e a tudo o que lhe subjaz (v.g., liberdades de imprensa e de pensamento) em favor de uma suposta melhoria das condições sociais ou de um alegado desenvolvimento econômico, pois isso equivale a abrir mão do fim em favor do meio. Por outro lado, não há relação necessária entre sacrifício à democracia e crescimento econômico.

           Quanto a uma possível oposição entre o que seriam os “valores asiáticos” e os “valores ocidentais”, Sen considera ser inerente à criatura humana valorizar a liberdade. Não se trata de algo comum aos ocidentais, entre os quais, aliás, houve, e ainda há, experiências totalitárias, sendo certo que é possível apontar na tradição oriental, seja ela árabe, indiana ou chinesa, a existência de pensadores que defendem ideais democráticos. Tanto que tais “valores asiáticos” são curiosamente defendidos principalmente por ditadores. Não são defendidos pelos que sofrem repressão de seus regimes, presos, perseguidos políticos, censurados etc., que, também asiáticos, certamente não consideram que o seu governo é honesto, efetivo e eficiente.


***



Conhecer Cingapura e parte da Indonésia permitiu-me, digamos, vivenciar na prática o debate de idéias acima mencionado. Afinal, como disse a Melissa Guará no comentário ao post anterior, Cingapura é um "oásis de segurança, mas com restrições a direitos fundamentais muito severas". Oportunamente tratarei dessas restrições - e de outras experiências vividas por lá. Estou, a propósito, lendo com muito interesse a biografia de Kuan Yew, para tentar entender como (na versão dele) foi possível transformar uma minúscula cidade "enjeitada" pela Malásia em um dos lugares mais ricos do mundo (5.º do mundo em renda per capita). Aliás, não apenas ricos, mas com praticamente "pleno emprego" (mesmo em uma fase de tanta dificuldade na economia), e IDH superior ao de lugares como o Reino Unido, Grécia e Portugal.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Lee Kuan Yew


Sempre que viajo costumo fazer aquisições para minha biblioteca, às vezes tendo problemas de excesso de bagagem, e desta vez achava que, por conta do idioma ou da cultura, isso não aconteceria. Enganei-me. Quando embarcava de Cingapura para Bali encontrei, em uma grande livraria no aeroporto, alguns livros interessantes, inclusive um de Lee Kuan Yew, ex-primeiro ministro de Cingapura, em inglês. São suas memórias, que em parte se confundem com a própria história do país. Edição excelente, encadernada, em dois volumes de cerca de 750 páginas cada um, com um preço muito bom (nessas horas vemos o quanto livros são caros no Brasil). Deu-me um pouco de trabalho para carregar, sobretudo porque não pude colocar dentro da mala, já despachada. Mas valeu a pena.



Foi uma enorme coincidência, pois era sobre ele a questão que eu ia formular para a prova escrita da seleção para o Mestrado em Direito da UFC. Ia, pois, como comentarei depois, percebi que praticamente todos os candidatos esperavam uma questão sobre Amartya Sen (e era exatamente isso, pois Sen é um crítico das idéias de Lee Kuan Yew), e muitos só estavam lendo "Desenvolvimento como Liberdade". Vi que a questão não selecionaria, pois todos que tivessem alguma idéia a respeito do pensamento de Sen (talvez colhida em um resumo, ou em uma leitura de orelhas), poderiam escrever alguma coisa e obter razoável pontuação. Para evitá-lo, cobrei algo mais básico, que ninguém estaria lendo às vésperas da prova mas todos teriam, pelo menos em tese, a obrigação de saber desde a graduação: Teoria Pura do Direito. Uma homenagem aos 120 anos de Kelsen, cujo aniversário se deu poucos dias antes da aplicação da prova. Mas, como disse, isso fica para outro post.
Quanto à Cingapura, trata-se de um país fascinante (clique aqui). Uma ilha de prosperidade, desenvolvimento e organização. Mas, também, de uma legislação bastante severa, com proibições como a de mascar chicletes, e multas bem pesadas para atos aparentemente banais, como cuspir no chão. Passar alguns dias por lá foi vivenciar na prática o assunto em torno do qual trataria a questão da seleção do Mestrado, experiência que, por excesso de zelo, é melhor mesmo deixar para comentar só quando eu chegar ao Brasil.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Olhar diverso

Raquel Ramos Machado, minha mulher, é professora de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro, e está concluindo seu doutorado em Direito Tributário na USP. Em meio a tantos afazeres, notadamente à elaboração da sua tese, decidiu iniciar um blog (www.olhardiverso.com), cuja visita recomendo. Em linguagem elegante e poética, ela se propõe a cuidar de temas que vão do Direito Administrativo à Epistemologia, de forma leve e profunda.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Michele Taruffo na UFC

Reproduzo a mensagem/convite do Professor Marcelo Lima Guerra:

Queridos amigos, Dia 5.12. o C.A.C.B. promoverá um evento imperdível: a Conferência “Processo e Verdade” do Prof. Michele Taruffo. O Prof. Taruffo é uma das mais reconhecidas autoridades internacionais em matéria de prova judicial, tendo voz, igualmente, no debate contemporâneo em epistemologia e filosofia, para além de sua consagrada expertise como processualista civil italiano e comparatista. Suas obras são marcos da reflexão filosófica jurídica contemporânea, especialmente em direito processual, valendo citar, dentre as mais destacadas, as seguintes: La Motivazione della Sentenza Civile; La prova dei fatti giuridici.Nozioni generali, Milano 1992 (há tradução espanhola: La prueba de los hechos, Madrid 2002); Sui confini. Sctitti sulla giustizia civile, Bologna 2002 (há tradução espanhola: Sobre las fronteras. Escritos sobre la justicia civil, Bogotá 2006) e o recentíssimo La semplice verità. Il giudice e la costruzione dei fatti, Bari 2009 (há tradução espanhola: Simplemente la verdad. El juez y la construcción de los hechos, Madrid-Barcelona-Buenos Aires 2010). Local: Faculdade de Direito, Auditório Willis Santiago Guerra Horário: 19h00, 2ª feira, 05.12.2011

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Relativismo moral e o andar do bêbado...


O "Andar do Bêbado" deixou-me impressionado, por revelar, em termos, digamos, mais técnicos, algo em torno do que todos temos alguma intuição, e que aparece nítido em filmes como "Efeito Borboleta". Passo agora a perceber demonstrações de seu acerto em diversas ocorrências do cotidiano.
A mais recente delas (não a mais recentemente ocorrida, mas a mais recentemente constatada) diz respeito ao relativismo moral, tema que há algum tempo me interessa, e que, em larga medida, motivou, como já disse por aqui (clique aqui e aqui), minha tese de doutorado. Trata-se de uma crítica ao relativismo moral, simples e bem construída, que encontrei por acaso em um livro a que tive acesso "mais por acaso ainda".
Andava por Dublin, à procura da Peterson, para comprar alguns fumos especiais para cachimbo, para o meu sogro. 
 Nessa procura, próximo à Trinity University, encontro uma livraria minúscula, mas repleta de obras excelentes (e muitas desconhecidas aqui, de autores que talvez tenham maior circulação apenas na Irlanda e na Inglaterra). No meio delas, o livro de Piers Benn, no qual li o seguinte:


"...people often argue for relativism by pointing out the vast diversity of moral views, of customs ans traditions, that have held sway in different societies. The discoveries of anthropologists had an important role in making moral relativism popular, since they brought to light the diversity of moral codes in the world. They caused many people to doubt that the moral values of western Europe in the late nineteenth century reflected an eternal and universal morality. (...) It seemed obvious, then, that no one system of morality was universally valid.

Is this a good argument for relativism? (...) If moral relativism amounted only to a descriptive claim, a mere observation that different cultures believe in different moral values, it would not be a very interesting doctrine. For we already know that such cultural differences exist. But are the codes that people ought to follow, culturally determined?” (BENN, Piers. Ethics. London: UCL, 1998, p. 15)


Ele tem toda razão. Até pode ser verdade que existam, de fato (plano do "ser"), vários costumes, várias culturas etc. Mas daí não se pode concluir, necessariamente, que todas essas culturas e costumes devam ser respeitados (plano do "dever ser"). Afinal, como ensina Hume, de um "ser" não se pode extrair um "dever-ser". Não é (só) porque as coisas são de uma forma que elas devem ser assim e não de outro modo. Não é porque as pessoas eventualmente matam as outras, quando se aborrecem com elas, ou quando lhes querem tirar um relógio ou o telefone celular, que se defenderá que isso deve acontecer. Naturalmente, até se pode defender o relativismo moral, mas será necessário recorrer a outros argumentos para justificá-lo.

Mas não é meu propósito, aqui, discutir o relativismo moral ou o universalismo moral. O que provocou este post foi apenas a observação de que uma caminhada incerta à procura de uma latinha de fumo de cachimbo conduziu a um livro, que trouxe argumento interessante, que já reproduzi em minhas aulas de ética na UFC, em bancas examinadoras, neste post, que por sua vez podem ter influenciado mais alguém... O andar do bêbado.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Posto que...

Participava de uma banca examinadora de graduação, na UFC, e vi um colega criticar bastante uma aluna por ela haver usado, em sua monografia, a expressão "posto que". Como era minha orientanda, manifestei-me na defesa do uso da expressão, invocando, para tanto, o Soneto da Fidelidade, que celebrizou o "posto que":


Soneto de Fidelidade
Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal,
posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Moraes, "Antologia Poética", Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1960, pág. 96.