terça-feira, 19 de junho de 2012

ADPF, pneus usados e coisa julgada

Faz tempo, muito tempo, que não posto nada. Quase dois meses. Uma eternidade para um blog, nessa rapidez com que as coisas acontecem no ambiente da internet.
Não vou dizer que foi falta de tempo. Não foi. Embora ele esteja, de fato, cada vez mais escasso para mim, a gente sempre arruma um pouquinho, quando quer. Foi falta de vontade mesmo. E o blog só tem graça assim.
Bom, mas resolvi voltar a escrever aqui por conta de uma decisão do STF, proferida há algum tempo mas só recentemente publicada. Eis sua ementa:


ADPF N. 101-DF

RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ADEQUAÇÃO. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. ARTS. 170, 196 E 225 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. CONSTITUCIONALIDADE DE ATOS NORMATIVOS PROIBITIVOS DA IMPORTAÇÃO DE PNEUS USADOS. RECICLAGEM DE PNEUS USADOS: AUSÊNCIA DE ELIMINAÇÃO TOTAL DE SEUS EFEITOS NOCIVOS À SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA SAÚDE E DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO. COISA JULGADA COM CONTEÚDO EXECUTADO OU EXAURIDO: IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO. DECISÕES JUDICIAIS COM CONTEÚDO INDETERMINADO NO TEMPO: PROIBIÇÃO DE NOVOS EFEITOS  A PARTIR DO JULGAMENTO. ARGUIÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
1. Adequação da arguição pela correta indicação de preceitos fundamentais atingidos, a saber, o direito à saúde, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (arts. 196 e 225 da Constituição Brasileira) e a busca de desenvolvimento econômico sustentável: princípios constitucionais da livre iniciativa e da liberdade de comércio interpretados e aplicados em harmonia com o do desenvolvimento social saudável.
Multiplicidade de ações judiciais, nos diversos graus de jurisdição, nas quais se têm interpretações e decisões divergentes sobre a matéria: situação de insegurança jurídica acrescida da ausência de outro meio processual hábil para solucionar a polêmica pendente: observância do princípio da subsidiariedade. Cabimento da presente ação.
2. Argüição de descumprimento dos preceitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos: decisões judiciais nacionais permitindo a importação de pneus usados de Países que não compõem o Mercosul: objeto de contencioso na Organização Mundial do Comércio – OMC, a partir de 20.6.2005, pela Solicitação de Consulta da União Europeia ao Brasil.
3. Crescente aumento da frota de veículos no mundo a acarretar também aumento de pneus novos e, consequentemente, necessidade de sua substituição em decorrência do seu desgaste.
Necessidade de destinação ecologicamente correta dos pneus usados para submissão dos procedimentos às normas constitucionais e legais vigentes.
Ausência de eliminação total dos efeitos nocivos da destinação dos pneus usados, com malefícios ao meio ambiente: demonstração pelos dados.
4. Princípios constitucionais (art. 225) a) do desenvolvimento sustentável e b) da equidade e responsabilidade intergeracional.
Meio ambiente ecologicamente equilibrado: preservação para a geração atual e para as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável: crescimento econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujos direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futuras.
Atendimento ao princípio da precaução, acolhido constitucional­mente, harmonizado com os demais princípios da ordem social e econômica.
5. Direito à saúde: o depósito de pneus ao ar livre, inexorável com a falta de utilização dos pneus inservíveis, fomentado pela importação é fator de disseminação de doenças tropicais.
Legitimidade e razoabilidade da atuação estatal preventiva, prudente e precavida, na adoção de políticas públicas que evitem causas do aumento de doenças graves ou contagiosas.
Direito à saúde: bem não patrimonial, cuja tutela se impõe de forma inibitória, preventiva, impedindo-se atos de importação de pneus usados, idêntico procedimento adotado pelos Estados desenvolvidos, que deles  se livram.
6. Recurso Extraordinário n. 202.313, Relator o Ministro Carlos Velloso, Plenário, DJ 19.12.1996, e Recurso Extraordinário n. 203.954, Relator o Ministro Ilmar Galvão, Plenário, DJ 7.2.1997: Portarias emitidas pelo Departamento de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – Decex harmonizadas com o princípio da legalidade; fundamento direto no art. 237 da Constituição da República.
7. Autorização para importação de remoldados provenientes de Estados integrantes do Mercosul limitados ao produto final, pneu, e não às carcaças: determinação do Tribunal ad hoc, à qual teve de se submeter o Brasil em decorrência dos acordos firmados pelo bloco econômico: ausência de tratamento discriminatório nas relações comerciais firmadas pelo Brasil.
8. Demonstração de que: a) os elementos que compõem o pneus, dando-lhe durabilidade, é responsável pela demora na sua decomposi­ção quando descartado em aterros; b) a dificuldade de seu armazenamento impele a sua queima, o que libera substâncias tóxicas e cancerígenas no ar; c) quando compactados inteiros, os pneus tendem a voltar à sua forma original e retornam à superfície, ocupando espaços que são escassos e de grande valia, em especial nas grandes cidades; d) pneus inservíveis e descartados a céu aberto são criadouros de insetos e outros transmissores de doenças; e) o alto índice calorífico dos pneus, interessante para as indústrias cimenteiras, quando  queimados a céu aberto se tornam focos de incêndio difíceis de extinguir, podendo durar dias, meses e até anos; f) o Brasil produz pneus usados em quantitativo suficiente para abastecer as fábricas de remoldagem de pneus, do que decorre não faltar matéria-prima a impedir a atividade econômica.
Ponderação dos princípios constitucionais: demonstração de que a importação de pneus usados ou remoldados afronta os preceitos constitucionais de saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado (arts. 170, inc. I e VI e seu parágrafo único, 196 e 225 da Constituição do Brasil).
9. Decisões judiciais com trânsito em julgado, cujo conteúdo já tenha sido executado e exaurido o seu objeto não são desfeitas: efeitos acabados. Efeitos cessados de decisões judiciais pretéritas, com indeterminação temporal quanto à autorização concedida para importação de pneus: proibição  a partir deste julgamento por submissão ao que decidido nesta arguição.
10. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental julgada parcialmente procedente.


Ao lado de (interessantíssimas) questões ligadas ao Direito Ambiental e ao Direito Internacional, chamou-me a atenção a consideração feita em torno da coisa julgada, aspecto que tem suscitado diversas dúvidas entre os que se ocupam do Direito Processual Civil.
Pondo um freio na tese de que a decisão passada em julgada, se for "inconstitucional", poderá sempre ser rediscutida (independentemente de rescisória), o STF deixa claro que:
a) nas relações instantâneas, já exauridas no passado, a decisão passada em julgado não deve ser alterada, mesmo contrária ao entendimento firmado na ADPF;
b) nas relações continuativas, os efeitos futuros de decisão declaratória cessam apenas a partir do julgamento da ADPF, sendo preservados em relação ao passado. Concilia-se, com isso, a segurança necessária àqueles que já praticaram atos albergados por decisões passadas em julgado, e a isonomia em relação ao período futuro, em que todos estarão proibidos de realizar atos semelhantes.

Embora em relação ao processo tributário, foi exatamente isso que defendemos, a Professora Raquel Cavalcanti Ramos Machado e eu, no texto que escrevemos para a coletânea publicada pelo ICET e pela editora Dialética dedicada à coisa julgada em matéria tributária:
"Caso a sentença transitada em julgado tenha resolvido situação ocorrida no passado, e cujos efeitos se exauriram no passado, a alteração jurisprudencial nenhuma repercussão terá. Aliás, nem mesmo por ação rescisória tal decisão poderá ser revista, em princípio, salvo, é claro, se estiverem nela presentes outros vícios que não a mera divergência com um posicionamento jurisprudencial que lhe é posterior. Aliás, segundo entendemos a pergunta, ela nem mesmo diz respeito a situações dessa natureza.
Entretanto, caso a sentença cuide de uma relação continuativa (v.g. eximindo uma sociedade comercial do pagamento da CSLL), e a alteração jurisprudência ocorra posteriormente para afirmar o contrário do que constou da sentença (no caso, que a CSLL é devida), o cidadão beneficiado pela decisão passada em julgado pode ter de voltar a pagar a CSLL. E a questão é: a partir de quando?
Caso se trate de decisão proferida no âmbito do controle concentrado, produzindo efeitos erga omnes, o termo inicial do “restabelecimento” da situação afastada pela decisão passada em julgado é a publicação do acórdão do STF, que, nesse caso, não pode retroagir para alcançar o passado, mas desde logo faz cessar a eficácia da decisão passada em julgado. Exemplificando, se o STF houvesse afirmado a constitucionalidade da exigência da CSLL numa ADIn, a partir da publicação do acórdão as empresas que não pagavam CSLL amparadas em decisões judiciais proferidas no âmbito do controle difuso não estariam mais abrangidas pelos efeitos de tais sentenças. Por conseguinte, o lucro auferido a partir de então voltaria a ser “fato gerador” da CSLL, e o não pagamento da contribuição em seus respectivos vencimentos já poderia ensejar a incidência de encargos moratórios, autuações etc. O período passado, contudo, estaria resguardado, não podendo o acórdão retroagir para prejudicar a coisa julgada. Só através de uma rescisória, em tese, tal revolvimento do período passado seria possível, e, mesmo assim, apenas em casos excepcionais, não simplesmente pela mudança na jurisprudência.
O mesmo que foi dito em relação às ações de controle concentrado de constitucionalidade vale para a declaração no controle difuso, quando acompanhada da edição, pelo Senado Federal, suspendendo a execução da lei declarada inconstitucional.
Mas se a mudança na orientação jurisprudencial tiver ocorrido no campo do controle difuso, e não for editada, ou não for o caso de se editar resolução do Senado Federal, parece-nos absurdo pretender que, a partir da decisão, automaticamente, já esteja o contribuinte em mora. O mesmo vale para a modificação na jurisprudência do STJ, nas questões relativas à legalidade. Ainda que admitamos, como admitimos, a possível cessação dos efeitos futuros da decisão passada em julgado, em face de relações continuativas, subsiste indispensável que se prestigie também os princípios da boa-fé, e da cientificação. Afinal, o cidadão amparado pela decisão transitada em julgado não há de ficar acompanhando, pelo Diário Oficial, o desfecho de todas as questões semelhantes à sua, para, diante de qualquer alteração na jurisprudência, já voltar a pagar a exação.
Assim, caso a ulterior mudança na jurisprudência tenha ocorrido no campo do controle difuso de constitucionalidade, ou no plano da legalidade, pelo Superior Tribunal de Justiça, a subsistência dos efeitos futuros da coisa julgada deve ser submetida à apreciação do Poder Judiciário, por meio de ação de revisão da coisa julgada, nos termos do art. 471, I, do CPC. Só depois disso é que se poderá cogitar de mora do contribuinte, se for o caso, a qual deverá ser determinada pela decisão que apreciar a ação revisional, mas que não poderá ter como termo inicial data anterior à propositura da mesma."

Pelo menos no que tange às situações em que o novo posicionamento jurisprudencial é firmado de modo "erga omnes", o STF parece ter adotado justamente essa ideia, o que é salutar, pois com isso se conciliam os princípios da segurança jurídica e da isonomia. Diante de tantas restrições ao cabimento de um RE (necessidade de pré-questionamento da questão constitucional, que não pode ser "reflexa", repercussão geral, interposição em 15 dias etc.), instrumento por meio do qual se pode corrigir uma decisão inconstitucional QUE AINDA NÃO TRANSITOU EM JULGADO, seria um contrassenso permitir, depois do trânsito em julgado, ampla (re)discussão do tema, tudo porque (se diz que) a Constituição teria sido violada. Afinal, a garantia da coisa julgada também consta do Texto Constitucional, que há de ser entendido em conjunto, harmonicamente...