Observação da prática do Direito Tributário talvez permita inferir a existência de um princípio sociológico, segundo o qual, quanto mais se desce na pirâmide hierárquica de normas, mais arbitrárias estas ficam, em matéria fiscal, princípio este que está ilustrado na imagem acima, gerada por IA.
Princípio sociológico, porque indica, ou ilustra, de modo genérico, e abstrato, algo que de fato ocorre. Descreve a realidade. Não se presta a normatizá-la ou prescrever nela alterações. Não estou dizendo que deve ser assim, mas que é assim. Dever, aliás, até nem deveria ser assim não. Este, inclusive, é o problema, e o fator que torna importante enunciar o princípio: identificar esse dado na realidade, para, eventualmente, corrigi-lo, ou minimizar-lhe os efeitos.
E que princípio sociológico é esse? É como disse: as normas tributárias tendem a ser progressivamente mais arbitrárias, conforme se desce a pirâmide hierárquica na qual estão escalonadas, figura usada por Bobbio para ilustrar a descrição feita por Kelsen do ordenamento (o que faz muitos aludirem à pirâmide como sendo kelseniana, mesmo tendo sido proposta por Bobbio).
A Constituição, por exemplo, é belíssima. Os princípios devem ser criados por lei, graduados conforme a capacidade contributiva, não podem ser confiscatórios...
Quando se desce ao plano das normas gerais, contidas em lei complementar, o equilíbrio e a justiça da relação permanecem semelhantes.
Na lei ordinária, veículo que em regra cria os tributos, a situação começa a mudar. Mas o arbítrio e o desequilíbrio com que as partes da relação jurídica são tratadas acentua-se mesmo quando se desce para decretos, portarias, instruções normativas... Experimente você, leitora, compará-las. Dá um ótimo exercício de pesquisa jurídica tributária, com pitadas de sociologia do direito, do estado e da tributação.
Ontem participei de audiência pública na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, a convite do Senador Vanderlan Cardoso. Uma rica oportunidade para discutir o PLP 68/2024, que tramita no Senado, já aprovado na Câmara, e que originará, se aprovado definitivamente, a lei complementar que instituirá o IBS, a CBS e o Imposto Seletivo, faltando apenas que leis ordinárias lhes definam as alíquotas.
Senadores e seus assessores, atentos, procuravam entender o motivo da controvérsia entre alguns expositores, em torno de temas sensíveis do projeto, de modo a obterem subsídio para tomarem suas decisões, políticas, sobre se e como emendar o projeto, antes de aprová-lo. Aliás, o Senado tirou o projeto do regime de urgência, deixando claro que pretende examinar o assunto e contribuir para a elaboração da lei, não se limitando, como ocorre em tantos parlamentos, a apenas chancelá-lo.
Quando critico órgãos legislativos que se limitam a carimbar projetos que lhes chegam prontos do Poder Executivo, especialmente em matéria tributária, não se trata de um ataque ao parlamento. Pelo contrário, trata-se de uma defesa dele, que deve reconhecer a própria importância e cumprir seu papel, em vez de apenas se curvar às vontades do Executivo, minimizando ou amesquinhando a própria noção subjacente ao princípio da legalidade.
Foi uma excelente oportunidade para tentar alertar os Senadores para o fato de que, tal como ocorreu com a EC 132/2023, só que em muito maior intensidade, o que se diz em discursos, e em slides, na defesa da reforma tributária, nem sempre corresponde ao que está escrito nos textos normativos. Defendem-se ideias belíssimas, com as quais todos concordam, e se pede que então aprove-se sem alteração um projeto que supostamente as implementa. O problema é que, lendo o projeto, vê-se QUE ELAS NÃO ESTÃO ALI da forma como anunciado nos discursos e nos slides.
Foi o que percebi no debate de ontem. Pessoas que defendem o PLP 68/2023, e que pediram aos senadores na ocasião para aprová-lo SEM ALTERAÇÕES "por favor", defenderam que nele se adota a não cumulatividade de modo amplo, que a única restrição constante da lei é para bens de uso e consumo pessoal, que mesmo os bens que em princípio se consideram de uso e consumo pessoal, se se demonstrar que são usados na atividade, podem gerar crédito, e que o direito de crédito não depende do pagamento em etapas anteriores, salvo nos casos de split payment e de pagamento pelo adquirente.
Cheguei a abrir meu notebook para conferir o PLP 68/2024, pois eles pareciam estar falando de um texto diferente daquele que eu tinha lido. E olhe que li bastante o PLP nos últimos meses. E então vi: de fato, o PLP não tem o conteúdo que alegam.
Quanto aos bens destinados ao uso e consumo, por exemplo, do PLP consta:
Art.
30. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição
dos seguintes bens e serviços, que serão considerados de uso e consumo pessoal,
exceto quando forem necessários à realização de operações pelo contribuinte:
I - joias, pedras e metais preciosos;
II - obras de arte e antiguidades de valor histórico ou
arqueológico;
III - bebidas alcoólicas;
IV - derivados do tabaco;
V - armas e munições; e
VI - bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.
Parágrafo
único. Considera-se
necessário para a realização de operações pelo contribuinte, para fins do
disposto no caput:
I - para os bens previstos nos incisos I a VI do caput,
quando forem comercializados ou utilizados para a fabricação de bens
comercializados;
II - para os bens previstos no inciso V, também, quando
forem utilizados por empresas de segurança; e
III - para os bens previstos no inciso VI do caput, também,
quando forem adquiridos para utilização exclusiva pelos adquirentes dos seus
bens e serviços em estabelecimento físico.
Está claro: tais bens serão sempre considerados como sendo destinados a uso ou consumo pessoal, mesmo quando não o forem. O caput parece indicar que quando forem usados na atividade, geram crédito, mas depois o parágrafo único "corta o barato" dessa interpretação que poderia salvar sua constitucionalidade, indicando quando se considera - e a lei é cheia dessas expressões: "considera-se", "considera-se", com as quais acha que pode transformar água em vinho, chumbo em ouro - necessário à atividade só o que se indica nos três incisos, que praticamente restabelecem a sistemática do crédito físico em relação aos bens que indicam. Se o parágrafo único fosse expressamente exemplificativo, não haveria problema. Mas ele não é. Fica a dúvida: um hotel, que compre quadros ou tapetes para colocar nos quartos, ou um museu, que compre obras para expor e cobrar ingressos por isso (tributados pelo IBS e pela CBS) pode tomar créditos? Equipamentos esportivos, recreativos ou estéticos, que se destinem não para utilização dos adquirentes dos serviços em seu estabelecimento, mas se destinem à locação, geram crédito? A realidade, sempre mais rica que nossa criatividade para antevê-la, pode mostrar ainda mais exemplos: clube de tiro que compra arma para alugar, mas não para revender ou para prestar serviço de segurança poderia ser outro exemplo. Gera crédito? O artigo parece dizer que não, mesmo que não haja "uso pessoal", em nenhum desses casos.
E tem muitos outros, artigos espalhados ao longo do PLP, em outras sessões, que sem mais vedam o crédito:
Art. 189. (...)
§ 4º Fica vedada a apropriação de créditos
do IBS e da CBS na aquisição dos serviços financeiros de que tratam os incisos
I a V do caput do art. 177 que não estiverem permitidos expressamente no caput
deste artigo.
Art.
220. Fica vedado o crédito de IBS e
CBS na aquisição de serviços de previdência complementar.
Art. 224. Fica vedado o crédito de IBS e CBS na aquisição de
serviços de ativos virtuais.
Art.
231. Fica vedado o crédito de IBS e
CBS para os adquirentes de planos de assistência à saúde.
Art.
239. Fica vedado o crédito de IBS e
CBS para os apostadores dos concursos de prognósticos.
Art. 274. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da
CBS pelos adquirentes de alimentação e bebidas fornecidas pelos bares e
restaurantes, inclusive lanchonetes.
Art. 281. Fica vedada a apropriação de créditos de IBS e CBS
pelo adquirente dos serviços de hotelaria, parques de diversão e parques
temáticos.
Art. 291. (...)
§ 6º Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da
CBS para os adquirentes de bens e serviços da SAF, com exceção da aquisição de
direitos desportivos de atletas, pela mesma alíquota devida sobre essas
operações, observado, no que couber, o disposto nos arts. 28 a 38.
Quanto às despesas com serviços de hotelaria, apenas para citar mais um exemplo... Para uma Companhia Aérea, não é necessário hospedar pilotos, comissários e comissárias que trabalham na prestação de serviço de transporte?
A mesma coisa - slide dizer uma coisa, artigo do PLP, outra - ocorre com a regra de que o crédito só pode ser aproveitado se houver pagamento na etapa anterior. A CF diz que assim só será se houver split payment ou pagamento pelo adquirente. E isso parece, parece, estar no art. 29 do PLP:
Art. 29. Os créditos de que trata o art. 28
poderão ser apropriados mediante o destaque dos valores dos débitos do IBS e da
CBS no documento fiscal de aquisição dos respectivos bens e serviços,
dispensando-se a exigência de pagamento desses débitos, exclusivamente, na
hipótese de não ter sido implementada nenhuma das seguintes modalidades de pagamento
dos débitos:
I - recolhimento na liquidação
financeira da operação (split payment), nos termos dos arts. 51 e 52; ou
II
- recolhimento pelo adquirente, nos termos do art. 56.
O problema é que vários outros artigos "desmentem" esse. E aí, estando todos na mesma hierarquia, qual prevalece? Vejam-se:
Art.
28. O contribuinte
sujeito ao regime regular do IBS e da CBS poderá apropriar créditos desses
tributos quando ocorrer o pagamento dos valores do IBS e da CBS incidentes
sobre as operações nas quais seja adquirente de bem ou de serviço, excetuadas
exclusivamente as operações consideradas de uso ou consumo pessoal e as demais
hipóteses previstas nesta Lei Complementar.
E há vários outros, espalhados pelo PLP:
Art. 188. (...)
§ 4º Os créditos de que trata este
artigo ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na
operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações
prestadas pelas entidades sujeitas ao regime específico desta Seção.
Art. 189. (...)
§ 1º A apropriação dos créditos de que
trata o caput fica sujeita ao reconhecimento dos créditos pelo Comitê Gestor do
IBS e pela RFB, com base nas informações fornecidas pelas entidades sujeitas ao
regime específico desta Seção.
Art. 194. (...)
§ 1º Os créditos de que
tratam o caput ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS
e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas
informações prestadas pelas entidades que realizam as operações de arrendamento
mercantil.
Art. 198. (...)
§ 1º Os créditos de que
tratam o caput ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da
CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações
prestadas pelas administradoras de consórcio.
Art.
212. Os créditos do IBS e da CBS de
que tratam o art. 210 e o § 4º do art. 211 ficam condicionados ao
reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do
IBS e pela RFB, com base nas informações prestadas pelos participantes de
arranjos de pagamento, e ficam sujeitos ao disposto nos arts. 28 a 38.
Art. 216. (...)
§ 2º Os créditos do IBS e da CBS de que
trata o § 1º ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS
na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações
prestadas pelas sociedades seguradoras e pelos resseguradores, e ficam sujeitos
ao disposto nos arts. 28 a 38.
Art. 218. (...)
§ 6º Os créditos do IBS e da CBS de que
trata o § 5º ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS
na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações
prestadas pelas entidades de capitalização, e ficam sujeitos ao disposto nos
arts. 28 a 38.
Como é possível, diante de tais artigos, dizer-se que são só os bens e serviços efetivamente destinados a uso e consumo pessoal que tem o crédito vedado no PLP? Que é só no caso de pagamento por split payment que o crédito dependerá de o Fisco reconhecer que houver pagamento do valor devido nas etapas passadas? Sem entrar no mérito da discussão em si, não se pode defender o PL dizendo que ele tem um conteúdo, quando ele não tem esse conteúdo!
Em suma, há, com isso, de saída, clara ofensa aos princípios da transparência e da cooperação, para além da quebra ao princípio da não-cumualtividade. Manda-se um projeto defendido por apresentações de powerpoint que dizem uma coisa, mas no texto - que é o que vai entrar em vigor - há várias surpresinhas que - sobretudo quando vier a regulamentação! - não poderão ser confrontadas com o slide ou com o discurso. Não vai dar para o contribuinte, depois, inconformado com tais surpresinhas, impetrar MS invocando slide usado na defesa do PLP. É preciso que todos examinem o projeto, e escrevam aos parlamentares com os quais têm contato sugerindo a correção de tais problemas, enquanto é tempo.
é bacharel (UFC, 2000), Mestre (UFC, 2005) e Doutor (Universidade de Fortaleza, 2009) em Direito. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, de cujo Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) é Coordenador. Professor do Curso de Mestrado do Centro Universitário Christus - Unichristus. Visiting Scholar da Wirtschaftsuniversität, Viena, Áustria.
Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET).