quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Cofins para advogados

Acabei de receber por e-mail. Saiu na "Consultor Jurídico", e pareceu-me interessante divulgar. Tenho interesse na tese, não só individualmente falando, por ser integrante de escritório que discute em juízo a incidência da COFINS sobre suas receitas, mas, independentemente disso, por acreditar na tese subjacente à demanda, e entender que ela tem desdobramentos e conseqüências que ultrapassam e muito os limites deste problema em particular.
Seja como for, é gratificante vê-la discutida da forma adiante apresentada, independentemente do resultado que venha a ser alcançado:

"Ministro Marco Aurélio dá esperança para a advocacia

por Márcio Chaer e Aline Pinheiro

Ao sinalizar que a isenção da Cofins para sociedades civis prestadoras de serviços em área profissional regulamentada, prevista em lei complementar, poderia ser revogada em lei ordinária, o Supremo Tribunal Federal, além da má notícia ao mercado, trouxe também uma certa confusão.
Sociedades de advogados que haviam obtido o reembolso da contribuição — e rateado os valores com sócios que já não estão na casa ou morreram — vêem-se diante de ameaçadoras ações rescisórias ajuizadas pela União. Quem não chegou a depositar, escorado em decisões judiciais ou por conta própria, faz contas arregaladas, com medo da falência. “Se o fim da isenção tiver efeito retroativo, muitas empresas podem quebrar”, alerta Antônio Corrêa Meyer, presidente do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogado). “E não há necessidade disso. O governo bate recordes de arrecadação todos os meses. Não precisa buscar essa receita.”
Já há oito votos a favor da União. Quem acreditou na Súmula 276 do Superior Tribunal de Justiça que consagrou a isenção — e ficou com o dinheiro que o governo reclama — reza para que as ações rescisórias não sejam acolhidas. Ou então que o STF volte a aplicar a modulação dos efeitos da inconstitucionalidade apenas a partir da data da decisão. Fonte do governo, autoridade na área jurídica, considera razoável que o Supremo dê efeito prospectivo ao fim da isenção.
Meyer explica que é grande a expectativa para que, mantido o entendimento a favor do fim da isenção, o Supremo declare que as sociedades têm de pagar Cofins só daqui para a frente. “Existia uma Súmula do STJ sobre o assunto. Era jurisprudência pacífica. Se tiver uma mudança, é como se criássemos uma nova norma no sistema jurídico brasileiro e não é da tradição do Direito admitir efeito retroativo nesses casos.”
Para alguns talvez menos esperançosos, o STF terá de avaliar se considera válido período de vigência de Súmula de outro tribunal, sobre assunto que ele hoje considera ser de sua competência. “Acredito que o STF vá privilegiar a proteção do contribuinte, que não tinha como saber ou por que suspeitar da incompetência do STJ para dar a última palavra sobre a matéria. A existência de uma Súmula dá ao cidadão confiança e tranqüilidade que não podem ser ignoradas pela suprema corte”, considera Igor Mauler Santiago, advogado tributarista do Sacha Calmon — Misabel Derzi Consultores e Advogados.
Aposta na reviravolta
À parte os discursos já conformados da advocacia, há, ainda, uma chance de a isenção ser mantida: o voto-vista do ministro Marco Aurélio. “Há pontos no processo que ainda não foram devidamente enfrentados pelo Supremo, como a natureza específica da Lei Complementar”, acredita Vladimir Rossi Lourenço, vice-presidente nacional da OAB.
Não é comum a reversão de votos já dados. É tão raro quanto gol feito por goleiro, no time adversário, no último minuto de jogo. Contudo, o pensamento do ministro Marco Aurélio projeta um raciocínio tão cristalino que justifica alguma esperança.
O ministro quer reabrir a discussão a bordo de uma tese com potencial para derrubar a coluna mestra que sustentou a decisão: a de que lei ordinária pode alterar regra estabelecida por lei complementar. “Estabelecido esse princípio, leis ordinárias poderão revogar dispositivos constitucionais, igualmente entendidos como matéria legal”, cogita o ministro. Marco Aurélio estuda o assunto debruçado sobre escritos do tributarista Hugo de Brito Machado, reconhecido doutrinador nesse campo. A tese de Brito Machado é a de que não importa se o conteúdo da lei complementar é de competência de lei ordinária. Uma vez que o Congresso achou por bem aprovar a matéria de acordo com os critérios necessários para aprovar lei complementar (maioria absoluta dos congressistas), não pode vir uma lei ordinária (aprovada pela maioria simples) modificá-la.
“Atribuirmos ao legislador a tarefa de escolher as matérias que elevará à categoria de lei complementar é bem mais seguro do que deixar a todos os intérpretes da Constituição a tarefa de definir o âmbito das matérias reservadas a essa espécie normativa”, defende o tributarista. Ele lembra que não há nada na Constituição Federal que limite o campo de atuação da lei complementar.
A Constituição indica as matérias que só podem ser tratadas por lei complementar em nome da segurança jurídica, mas não impede que ela seja usada para regulamentar outras questões, diz. “Não existe na Constituição nenhum limite à utilização da lei complementar.”
Brito Machado acredita que o uso da lei complementar favorece a segurança jurídica no país, “evitando-se que as normas sobre tais matérias venham a ser alteradas por eventuais maiorias parlamentares que podem aprovar uma lei ordinária embora não alcancem o quorum necessário para aprovação de lei complementar”.
A tese de Hugo de Brito Machado vai ser usada pelo ministro Marco Aurélio, na retomada do julgamento, sem data prevista ainda. Ele entende que permitir que lei ordinária altere lei complementar com conteúdo de ordinária abre precedente para que lei ordinária altere conteúdo ordinário da Constituição Federal. Como exemplo de matéria tipicamente de lei, mas hoje inscrita na Constituição, o ministro cita o caso da prescrição na área trabalhista, cuja residência sempre foi a CLT — mas recentemente foi inscrita na Constituição.
Outra crença de Marco Aurélio é que a tese de que lei ordinária altera conteúdo ordinário de lei complementar, manifestada pela primeira vez pelo ministro aposentado José Carlos Moreira Alves, não chegou a ser abraçada pelo colegiado, como se pretendeu na votação do caso Cofins. “Ainda estou pesquisando, mas até onde cheguei, essa idéia foi apresentada apenas como uma opinião, não como voto, como razão de decidir”, sustenta Marco Aurélio.
O voto-vista pode até virar votos dados, mas não o do ex-advogado-geral da União, ministro Gilmar Mendes, que tem um entendimento ancestral e cristalizado a respeito do assunto. Para ele, a lei complementar não se diferencia da lei ordinária por questão de hierarquia, mas pela temática que aborda. Assim, não haveria uma invasão entre patamares, apenas uma discussão sobre competência.
Do mesmo entendimento compartilha o ministro Celso de Mello. Ele defende que matéria de lei ordinária continua tendo eficácia de lei ordinária, ainda que inserido em lei complementar. Ele afirma encontrar reforços maiores para essa tese: “há bons autores que sustentam o mesmo”.

Revista Consultor Jurídico, 11 de fevereiro de 2008

6 comentários:

Fernando Favacho disse...

Professor, ainda que seu argumento seja bastante democrático, não vejo nele uma posição realmente jurídica. A lei complementar é o que é por seu aspecto formal e material. Nada mais que o princípio da legalidade em sentido amplo. Aonde não for materialmente complementar, é apenas formalmente, podendo ser regido por lei ordinária. Não existe hierarquia entre essas espécies, e sim competência exclusiva no caso da lei complementar - repita-se, material e formalmente.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Respeito seu ponto de vista, Fernando (faltou um "n" em sua identificação acima, ou estou enganado?). Até porque se trata do posicionamento majoritário da doutrina constitucionalista, que você reproduziu em síntese. Mas a pergunta é: onde na Constituição o fundamento para isso?
As normas não têm, todas, a hierarquia definida pelo procedimento de feitura (e não pelo conteúdo)??
Uma EC deixa de ser EC se tratar de matéria que poderia ser tratada em lei?
Uma lei deixa de ser lei se tratar de matéria que poderia ser veiculada em decreto?
Por que só no caso da lei complementar a resposta seria diferente?
Ademais, como delimitar com clareza o "âmbito de competência" do art. 146, III, da CF/88, por exemplo? E o do art. 146-A, pela própria CF "misturado" ao ordinário?!
O que não pode haver é invasão do legislador complementar nacional no âmbito das competências ordinárias ESTADUAIS E MUNICIPAIS (origem da tese em discussão, aqui questionada), mas isso é uma outra história...
Seja como for, o propósito do post não foi o de discutir o tema, mas o de divulgar o fato de que ele está sendo discutido no STF, o que mostra que o fato de "todo mundo" dizer uma coisa, inclusive o próprio STF, não deve desanimar aqueles que, por uma razão ou por outra, pensem de outra forma e estejam dispostos a fundamentar seus pontos de vista.

Alexandre Ramos disse...

Prezado Professor, peço vênia para exprimir uma opinião sobre o assunto que ainda não vi sendo defendida. Porque não aceitar a derrogação de dispositivos complementares por lei ordinária apenas nos casos em que isso traga benefício ao contribuinte, ao cidadão, aos direitos e garantias individuais? Com efeito, o antagonismo das teses da rigidez e da flexibilidade da lei complementar se rende a um ponto em comum: a defesa da ordem jurídica. Pois, se de um lado a rigidez absoluta bradada por Machado de Brito visa impedir que se altere deliberadamente matérias complementares em detrimento do ordenamento constitucional, da segurança jurídica, do interesse social, a inexistência de hierarquia entre LC e LO impede que o Congresso "substitua pela sua a vontade do constituinte originário, tornando necessária lei complementar para regulamentar matérias para as quais o constituinte somente exigiu lei ordinária" (Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino). Portanto, entre uma tese e outra, fico com as duas, no sentido de se admitir a tal modificação se for tão-somente em benefício daqueles a quem a LC se aplica, e desde que a matéria derrogada não tenha sido reservada à LC pelo texto constitucional. É um tema bom pra monografia de nossa Pós em Tributário da LFG? Ou a pendência da matéria pode dificultar? Falando em pendência, pensei também em escrever sobre a base de cálculo das taxas, em face da nova súmula vinculante n. 29 do STF, com a qual o Sr. concorda, mas ressalva que a amplitude da redação enseja confusão. Vou continuar contando com seus textos e opiniões na escolha de um tema. Obrigado.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro Alexandre,
Obrigado, mais uma vez, pela sua participação.
Veja, sua alternativa é interessante, embora transfira o problema, gerando, talvez, ainda mais insegurança. Afinal, quando um dispositivo é "mais benéfico para o contribuinte"? Fazer a aplicação de uma multa depender desse juízo, em cada caso concreto, é fácil (CTN, art. 106 e 112), mas fazer a validade de uma lei, em tese, depender disso é mais difícil.
A alteração do regime jurídico relativo a um tributo pode ser boa para um setor de contribuintes, e ruim para outro. A revogação seria possível para uns e não para outros?
Quanto à tese que você citou, acho respeitável, mas, com a devida vênia, equivocada.
O Constituinte não "OBRIGA" que certos assuntos sejam tratados por lei ordinária ou complementar. Ele exige PELO MENOS lei ordinária, ou lei complementar, conforme o caso.
Se ele - o constituinte - exige pelo menos lei ordinária, nada impede que o assunto seja tratado em lei ordinária, em lei complementar, ou mesmo em emenda constitucional (uma EC seria "mera lei ordinária" se tratasse de matéria "não reservada" à EC ou "reservada" à lei ordinária?). O que não pode é ser tratado por decreto, portaria, instrução...

Alexandre disse...

Dr. Hugo, desta vez peço licença não para replicar, mas para ir ao encontro do seu posicionamento. Pesquisando um pouco sobre o tema, acabei por me convencer de que, realmente, a lei complementar é hierarquicamente superior à lei ordinária, e seus dispositivos só podem ser alterados por uma norma de status igual ou superior ao seu. Realmente, o conteúdo da LC não deve ser examinado para sua modificação, por vários motivos: primeiro porque, conforme expôs acima, a CF não faz essa separação do que NÃO pode ser tratado em Lei Complementar. Logo, não é porque não lhe foi expressamente reservado o trato de certas matérias que a LC não poderá fazê-lo, sem que venham a questionar a natureza destas. Ademais, no Brasil, em quase todo o sistema normativo o aspecto formal é levado em conta em detrimento do conteúdo. Por exemplo, quanto ao conceito de Administração Pública, adotamos o critério formal (ou subjetivo), considerando não as atividades exercidas (o "conteúdo"), mas o conjunto de órgãos e pessoas jurídicas que a compõem. Igualmente, adotamos o critério formal para classificar nossa Constituição, sendo que a distinção entre norma formalmente e materialmente constitucional não possui maior relevância jurídica, eis que todas as normas que integram a CF possuem o mesmo valor, independentemente da natureza da sua matéria. Ou seja, a chamada supremacia formal da Constituição, que decorre de sua rigidez, isto é, da existência de um processo legislativo mais laborioso para sua elaboração, há de ser estendida, "mutatis mutandis", às leis complementares, em relação aos atos normativos menos rígidos do que elas. Portanto, percebe-se irrelevante o aspecto material para se distinguir o que é uma norma constitucional, o que é uma norma complementar, o que faz parte da Administração Pública, entre outros diferentes exemplos. A conceituação formal dá estabilidade ao nosso sistema. De fato, se a norma integra o texto de lei complementar, seja qual for seu conteúdo, não poderá ser desobedecida pelo legislador ordinário, sob pena de inconstitucionalidade. Além disso, é difícil vislumbrar quaisquer prejuízos à sociedade num regramento mais rígido, por lei complementar, de matérias que não foram reservadas pelo Constituinte a nenhum ato infraconstitucional em específico. Já os danos que uma permissão para que o legislador ordinário vulnere normas de leis complementares poderá trazer são mais visíveis. Obrigado por esta reflexão, Professor.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

A idéia é exatamente essa, Alexandre. Entretanto, embora eu a considere irrespondível no plano acadêmico e teórico, não podemos esquecer que, por enquanto, ela não é endossada pelo STF, o qual, calcado no argumento de autoridade e no "porque sim", acolheu a tese contrária.
att.