A distinção entre princípios e regras e a questão da possibilidade de ponderação destas últimas já frequentou este
blog diversas vezes. Há mais de quatro anos (como o tempo passa rápido!), alguns
posts trataram do tema (confira clicando
aqui,
aqui e
aqui, por exemplo).
Hoje, durante os debates na aula de Teoria Geral do Direito na pós-graduação da Faculdade de Direito da UFC, o tema foi objeto de rica discussão. Alguns, inclusive, ficaram até muito depois da aula, conferindo passagens de Humberto Ávila e Virgílio Afonso da Silva, argumentando, imaginando exemplos, contra-argumentando. Depois da aula, que terminou por volta do meio-dia, passei na coordenação para resolver alguns assuntos, e quando fui embora, depois das 13:00, ainda estavam lá discutindo animadamente.
Independentemente de saber quem está com a razão (se é que ela pode ser assim apropriada por alguém), o simples fato de se estar discutindo um tema jurídico e procurando melhor compreendê-lo é digno de todos os elogios. Afinal, em uma aula, notadamente de pós-graduação, a idéia não é trazer verdades acabadas para ouvintes passivos, mas debater, dividir reflexões, aprender, e despertar o interesse para que possamos todos chegar (sozinhos?) às nossas próprias conclusões.
Bom, mas o que motiva este post é que eu, que já vinha amadurecendo uma reflexão há algum tempo, cheguei, depois das discussões, a uma conclusão que poderia ser assim sintetizada:
Ou as regras são passíveis de ponderação, ou não existem princípios.
Como toda conclusão que se pretende científica, essa é provisória. Poderá (e deverá) ser criticada, pois é naturalmente passível de revisão. Posso mudar de idéia, quem sabe, logo depois do primeiro comentário que alguém fizer a este post. Afinal, isso não é nenhum dogma religioso. Mas, por enquanto, parece-me contraditório negar que regras sejam ponderáveis (acusando quem defende isso de ignorar ou desprezar a distinção entre norma e texto), e, ao mesmo tempo, afirmar que existem princípios jurídicos "em tese", como espécie normativa, ao lado das regras.
Explico.
É que os autores que defendem a possibilidade de regras serem ponderadas fazem uma distinção entre a regra como produto de uma primeira interpretação do texto, e a norma decorrente da conclusão do processo de interpretação/aplicação, à luz de todas as particularidades de um caso concreto (all things considered). Em um primeiro momento, a leitura de certos textos legais conduziria à conclusão de que ali se veiculam regras, e não princípios. Regras que têm determinada hipótese de incidência, e sofrem determinadas exceções, operadas por outras regras, de igual hierarquia, mais específicas. Regras, enfim, que são aplicáveis às situações "normais" (daí "norma") ou "regulares" ("regra"). Mas, depois de consideradas todas as particularidades do caso ao qual a referida regra seria aplicada, poder-se-ia concluir que ela, conquanto "em tese" aplicável, não deveria sê-lo. Isso porque os princípios que inspiraram sua edição, somados àqueles que impõem o seu respeito (legalidade, separação de poderes etc.), juntos, não seriam capazes de sobrepor a outro princípio que seria amesquinhado pelo respeito incondicional da regra, em função das particularidades do caso, que o fariam diferente daquele "normal" ou "regular", para o qual a regra teria sido feita.
Quem é contrário à possibilidade de ponderação de regras afirma que o argumento, resenhado muito rudimentarmente no parágrafo anterior, confunde texto e norma. A norma seria justamente aquela obtida na conclusão do processo interpretativo, all things considered. Não seria o texto, mas o sentido dele, que só à luz do caso concreto poderia ser determinado. Assim, não é que a regra tenha sido ponderada. O que ocorreria, em casos assim, é que se vislumbrariam, na regra, exceções implícitas, que não constariam explicitamente do texto.
Bom, isso já mostra, por si, que o debate não tem assim tanto relevo prático, pois chega-se ao mesmo lugar, com o uso mais ou menos das mesmas ferramentas, apenas dando nomes diferentes a certas coisas.
Mas, seja como for, o que parece é que esse argumento, contrário à ponderação de regras, é contraditório com a própria idéia de que existem princípios jurídicos, os quais estariam, "em tese", ao lado das regras como espécie de norma.
Realmente, os princípios não são aplicados diretamente. Eles sempre dependem de regras, explícitas ou implícitas, editadas pelo legislador ou construídas pelo intérprete, para serem aplicados em determinado caso concreto. Nessa condição, all things considered, o que se aplica não é o "princípio da livre iniciativa", mas regras, que até podem ser extraídas implicitamente dele, segundo as quais na situação "X" é devido "Y", ou na situação "Z" é proibido "W"... Assim, all things considered, do mesmo modo que não se ponderam regras, não há princípios... O que se tem, sempre e apenas, são regras prontas para serem inseridas no silogismo:
Premissa maior: regra "r"
Premissa menor: fato "f"
Conclusão: relação jurídica (conduta "c" é devida por "sp" e pode ser reclamada por "sa")
Há vários problemas nessa solução.
Primeiro, o silogismo acima é de aplicação simplória. O controverso, em todas as questões jurídicas, nas disputas acadêmicas e nos questionamentos judiciais, é o estabelecimento das premissas. São elas que o juiz precisa fundamentar. É nelas que está a discussão. Estabelecidas as premissas, o raciocínio silogístico que se segue é tão natural que muitas vezes nem nos damos conta dele. E se a discussão está exatamente na fixação das premissas, a tese que coloca a identificação de regras e princípios depois de concluído todo o trabalho não é de grande ajuda para o intérprete (essa crítica é feita por Humberto Ávila), que precisa de uma teoria que o ajude a trabalhar, e não que apenas explique o que ele já obteve depois de ter feito o trabalho. Ademais, como dito, é contraditória com a classificação das "normas" (e não dos "textos") em "regras" e "princípios", pois depois de concluído o trabalho nem mais existem princípios a serem aplicados.
Segundo, porque não se pode estabelecer uma relação dual, de "tudo ou nada", entre texto e norma, como se entre um e outro houvesse apenas um salto, e não uma gradação. Essa é uma mania que se generalizou depois que as pessoas aprenderam que texto e norma não se confundem, e que a segunda é o sentido do primeiro. Como se não existisse NADA entre um texto sem sentido e uma norma prontinha para ser aplicada a determinado caso concreto. O que se ensina nas aulas do Curso de Direito, então, sobretudo naquelas de direito positivo (constitucional, administrativo, tributário, civil, comercial...)?
Na verdade, existem níveis ou graus de interpretação.
(1) Para identificar algo como texto, e não como um amontoado de letras, há interpretação. Aliás, para identificar algo como uma letra, e não uma sujeira no papel, há interpretação.
(2) Para identificar o texto como algo escrito em língua portuguesa, e não em alemão ou inglês, há interpretação.
(3) Para identificar o texto como veiculando normas, em tese, há interpretação.
(4) Para identificar essas normas como jurídicas, há interpretação.
(5) Para identificar essas normas jurídicas como vigentes, há interpretação.
(6) Para identificar possíveis modificações em seu significado inicial, em face do disposto em outras normas, assim como identificar situações em que essas normas seriam aplicáveis, e quais seriam os sentidos possíveis delas nessas situações, há interpretação.
(7) Quando o aplicador da norma, diante de um caso concreto, parte de 1 a 6 e, à luz das circunstâncias do caso, e de todas as outras normas pertinentes, chega em (7), conclui o trabalho iniciado pelo legislador de pensar uma solução para o problema, cria-se a norma para o caso concreto. All things considered.
Quem trata da distinção entre "texto" e "norma" como algo simples e dual, salta de 1 para 7, como se nada houvesse no meio do caminho que pudesse já ser chamado de "norma", de "regra" ou de "princípio".
Entretanto, se isso fosse possível, não existiriam livros sobre normas, sejam elas regras ou princípios. Afinal, só diante de um caso concreto o intérprete/aplicador construiria a norma. Um professor, em uma sala de aula, e um autor, ao escrever um livro, não poderiam fazê-lo. Estariam a trabalhar apenas com textos? Ou, pior, apenas com letras? Não teriam essas letras um significado prévio, capaz de estabelecer um mínimo consenso intersubjetivo, antes e independentemente de sua aplicação final pelo intérprete judicial?