segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Flores para Algernon

 Estou concluindo a leitura de Flores para Algernon, livro de Daniel Keyes sobre Charlie, um homem adulto que possui uma deficiência cognitiva que lhe confere QI muito abaixo da média, e é submetido a uma experiência neurocientífica inovadora capaz de torná-lo muitíssimo inteligente.

O livro é instigante e despertou meu interesse por uma série de razões:

1 - Tem um estilo peculiar, pois é composto dos "relatórios de progresso" escritos pelo próprio Charlie. Como parte da experiência, ele precisa escrever relatórios sobre o progresso de sua situação, datados, nos quais narra o que ocorre com ele, o que pensa, o que lembra. Os primeiros são escritos antes da cirurgia que se fez em seu cérebro para desenvolver sua inteligência. Os que se seguem vão espelhando o progresso cognitivo, e todas as consequências daí decorrentes, seja na forma como ele via as outras pessoas e entendia o que elas faziam com ele e por ele, seja no modo como as pessoas se relacionam com ele à medida em que passa de alguém abaixo da média para alguém muito acima da média em termos cognitivos.

2 - Permite reflexões sobre a inteligência e a cognição, e do quanto elas moldam a maneira como vemos o mundo, nele identificando problemas, ameaças, etc., conduzindo a excelentes insights no que tange ao debate "racionalismo x empirismo";

3 - Suscita reflexões sobre a forma como as pessoas se relacionam e tratam umas às outras, influenciada pela inteligência que possuem e pelo poder, pela influência e pela superioridade/inferioridade que essa inteligência lhes confere, ou parece conferir.

 


 

As causas são muitas, e este post poderia ser muito alongado com muitas delas. Resumi-las-ei apenas com a remissão ao fato de que, desde que comecei, conquanto tenha muitos compromissos, atribuições e tarefas a cumprir, quase não consigo largá-lo, pois a leitura é, antes de tudo, agradável na forma e no conteúdo. Recomendo. Não vou dizer mais, para não dar spoilers. Leiam e tirem suas próprias conclusões. Querendo, depositem aqui nos comentários.

Para quem tiver interesse, o livro pode ser comprado na Amazon: https://amzn.to/3O35VSs

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Direito e Inteligência Artificial

 Já está disponível para pré-venda meu mais recente livro, Direito e Inteligência Artificial:

LIVRO DIREITO E INTELIGENCIA ARTIFICIAL: O QUE OS ALGORITMOS TEM A ENSINAR SOBRE INTERPRETAÇAO, VALORES E JUSTIÇA - 1ªED.(2022) 

 

Veja uma prévia de sua Apresentação:

 

Apresentação

            Desde o surgimento do ser humano, ou mesmo antes, entre seus antepassados mais remotos, a cooperação necessária à sobrevivência[1] fez emergirem sentimentos morais[2]; em seguida, ainda no processo de tentativa e erro inerente à seleção natural, deu espaço, nos humanos, à aptidão para constituir realidades institucionais[3] e, com elas, a linguagem[4] e normas jurídicas capazes de, bem ou mal, implementar tais sentimentos morais, ou pelo menos tentar concorrer para os mesmos objetivos.

            A necessidade de sobreviver, e de passar adiante o próprio material genético, seleciona, em diferentes seres, a depender do ambiente e de uma série de outros fatores, muitos deles aleatórios, características distintas. Cores que camuflam, para iludir predadores, ou que chamam a atenção, para atrair fêmeas. Patas mais fortes, ou asas, ou nadadeiras. Olhos capazes de ver no escuro, ou o aguçamento de outro sentido, como o olfato, ou mesmo um sonar capaz de guiar independentemente de luz. No caso dos humanos, para tais finalidades, selecionaram-se caraterísticas que propiciam uma elevada cooperação, dentre as quais estão as já apontadas habilidades de desenvolver linguagem, sentimentos morais e criarem-se realidades institucionais, assim entendidas aquelas que existem porque se pactua a sua existência (v.g., dinheiro, regras um jogo, personagens imaginários etc.). Referido contexto criou condições para o surgimento da inteligência, da racionalidade e da cultura.

            Nos dias que ora correm, se presencia uma importante revolução, em face da qual inteligência e vida talvez estejam ingressando em uma nova fase, em que não mais necessitam de matéria orgânica para se constituir e manifestar. É um processo que pode parecer lento, se se tomar como parâmetro comparativo o tempo médio de vida de um ser humano. Mas é bastante rápido, se se pensar no tempo necessário, desde o surgimento do Universo, para que aparecessem vida e principalmente inteligência, na forma biológica que hoje se conhece. Bilhões de anos se passaram, até que o universo pudesse contemplar a si por intermédio de seres vivos e inteligentes. Os computadores, por seu turno, estão por aqui há menos de um século. Não se sabe o que se pode presenciar, relativamente a eles, em um período mais longo de tempo.

            Sendo o Direito destinado à disciplina da liberdade, da conduta humana, para protegê-la, e proteger dela bens tidos como relevantes, o advento de agentes inteligentes capazes de interferir na vida, na liberdade e na propriedade de terceiros suscita a questão de saber como se dará a disciplina de sua atividade. Se e quando adquirirem consciência, colocar-se-á, por igual, indagação relacionada à possibilidade de serem explorados, maltratados ou destruídos; vale dizer, se têm dignidade. Mas, mesmo bem antes disso, já se suscitam problemas atrelados ao uso de sistemas dotados de uma inteligência mais restrita, que já auxiliam na condução de veículos, na tomada de decisões por agentes públicos e privados, além de darem suporte a uma ampla gama de atividades exercitadas por autoridades públicas. Como fazer com que tais sistemas se comportem nos termos determinados pelo ordenamento jurídico? Quais são esses termos e quem os indicará às máquinas?

            Na programação de sistemas inteligentes, e na própria compreensão deles, pode haver rica troca de conhecimentos entre especialistas em inteligência artificial, filósofos (voltados à Hermenêutica e à Epistemologia), teóricos da argumentação, cientistas da cognição, neurologistas, psicólogos e neurocientistas. Estão todos às voltas com o fenômeno da cognição e da inteligência (natural ou artificial), com suas repercussões, aplicações e desdobramentos. O mesmo pode ser dito de teóricos e filósofos do Direito, no que tange à difícil tarefa de construir máquinas capazes de interpretar, observar e aplicar normas jurídicas, algo que envolve por igual a identificação, no mundo fenomênico, da ocorrência dos fatos sobre os quais estas incidem.

            É para introduzir o leitor ao estudo de tais temas, relevantes, atuais e fundamentais, que se destina este livro. Nele não se almeja realizar o estudo da Inteligência Artificial (IA), mas sim o do seu uso por parte de quem estuda o direito, de quem o aplica, e de quem simplesmente vive em sociedade e nessa condição está sujeito à interação com sistemas de inteligência artificial e às disposições jurídicas a eles atinentes. Não se trata de um livro de ciência da computação sobre IA, mas de um livro sobre os reflexos sobre o Direito dos problemas que ela, a IA, eventualmente pode suscitar; e, principalmente, sobre como a construção de máquinas capazes de interpretar normas, compreender fatos e tomar decisões pode ajudar seres humanos a entender melhor como eles próprios desempenham essas tarefas.

            Fortaleza, agosto de 2022,

 

            Hugo de Brito Machado Segundo

E-mail: hugo.segundo@ufc.br

Instagram: @hugo2segundo

Blog: www.direitoedemocracia.blogspot.com


 



[1] AXELROD, Robert. A evolução da cooperação. Tradução de Jusella Santos. São Paulo: Leopardo, 2010, passim; SAFINA, Carl. Para lá das palavras. O que pensam e sentem os animais. Tradução de Vasco Gato. Lisboa: Relógio D´agua, 2016, p. 182.

[2] Cf., v.g., SMITH, Adam. The theory of moral sentiments. London: A Millar, 1790; WAAL, Frans de; CHURCHLAN, P.; PIEVANI, T.; PARMIGIANI, S. (Eds.). Evolved morality. The biology and philosophy of human conscience. Boston: Brill, 2014; JOYCE, Richard. The evolution of morality. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2006.

[3] Realidades institucionais são aquelas que existem porque seres racionais e pensantes pactuam reciprocamente sua existência, a partir de regras que as constituem. É o caso de realidades como as regras de um jogo, os personagens de uma ficção, ou as regras de um ordenamento jurídico. Cf. SEARLE, John. Libertad y Neurobiología. trad. de Miguel Candel, Barcelona, Paidós, 2005, p. 103. Sobre a seleção da capacidade neurológica de criá-las, veja-se: ROVERSI, Corrado. Cognitive Science and the Nature of Law. In: BROZEK, Bartosz; HAGE, Jaap; VINCENT, Nicole A (Eds.). Law and mind: A survey of Law and the Cognitive Sciences. Cambridge University Press, Cambridge, 2021, p. 100.

[4] A pressão evolutiva em primatas, para que se tornassem mais cooperativos como condição para sobrevivência, pode ter sido a responsável pelo surgimento da linguagem que amplia consideravelmente a quantidade de mecanismos institucionais e sociais destinados a fazer valer os sentimentos morais, a começar pela fofoca. Cf. JOYCE, Richard. The evolution of morality. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2006, p. 90.

 


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terça-feira, 26 de abril de 2022

Pau que bate em Chico, bate em Francisco

Mesmo o não especialista sabe que situações, fatos e textos às vezes comportam mais de uma interpretação. Não que possam significar qualquer coisa: há aspectos em que há espaço para dúvida, e outros em que não. Isso não só no Direito. “Foi ou não pênalti?”, divergem jogadores, juízes e comentaristas de futebol, em torno de um mesmo lance. “Capitu traiu Bentinho?”, oscilam os estudiosos da obra machadiana. E assim por diante.

Não é preciso entrar nos meandros da Filosofia e da Neurociência, porém, para saber que, embora haja espaço para subjetividade, alguns limites devem ser respeitados, em nome da legitimidade da própria interpretação. Um deles é a coerência. Ainda que o árbitro tenha espaço para afirmar que uma falta, cometida por jogador do time “A” contra jogador do time “B”, é grave ao ponto de justificar um cartão vermelho, não será admissível que, minutos depois, sequer considere falta ação igual cometida por jogador do time “B” contra alguém do time “A”. Do contrário, a incoerência mostrará: (i) ausência de imparcialidade; (ii) falta de respeito às regras que deveriam estar sendo aplicadas; (iii) existência de outro critério, inconfessável, a guiar suas decisões. Afinal, como resume a sabedoria popular, “pau que bate em Chico, bate em Francisco.”

Os Tribunais brasileiros, porém, não têm dado ao assunto a seriedade que merece. Especialmente no julgamento de questões tributárias. Quando empresas pretenderam isenção de PIS e COFINS para as importações oriundas do Mercosul, e o Fisco não aceitou, o Superior Tribunal de Justiça deu razão ao Fisco, afirmando que PIS e COFINS incidentes na importação não são tributos aduaneiros, mas tributos internos, sujeitos aos critérios de tributação aplicáveis aos produtos nacionais. Afirmou a Corte que só se o produto nacional fosse desonerado do PIS e da COFINS, o oriundo do Mercosul também seria. Mas depois, quando surgiu uma desoneração de PIS e COFINS cobrados internamente de certos produtos nacionais (p.ex., milho), e os contribuintes pediram que ela fosse aplicada ao produto importado do Mercosul, o STJ afirmou que isso não seria possível pois o PIS e a COFINS cobrados na importação são tributos aduaneiros, e não internos.

Há inúmeros outros exemplos. Natureza do depósito judicial, legitimidade de matriz e filiais de uma empresa para mover ações contra a Fazenda... Uma longa lista de situações nas quais um mesmo pau bateu apenas no Chico, e nunca no Francisco, poderia ser feita aqui, sendo o Francisco, nelas, a Fazenda Pública. Tais incoerências dão a jogadores, comentaristas e torcedores a sensação de que o árbitro só apita falta contra um dos times, e de que talvez não sejam as regras do jogo que está aplicando. O problema é que o respeito às suas regras constitui o jogo, que do contrário desaparece, incluindo árbitros e bandeirinhas. Esse jogo, no caso das questões tributárias julgadas pelos Tribunais, é o Estado Democrático de Direito, que define e justifica a importância inclusive dos Tribunais. Estes deveriam, assim, ser os principais interessados em fazer o pau bater no Chico, mas no Francisco também.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Por que não pagar a dívida pública imprimindo dinheiro?


 

Quando eu era criança sempre tive essa dúvida. E é muito natural que crianças a tenham. O problema ocorre quando adultos ignoram, consciente ou inconscientemente, essa verdade...

Livro falsificado?

 Um vídeo sobre a história do post passado, lá no meu canal no Youtube. Aproveita e se inscreve lá!




domingo, 24 de abril de 2022

O Professor Hugo leu um livro falsificado!

            Na segunda metade do Século passado, notadamente entre os anos 70 e 80, havia grande controvérsia em torno da taxatividade, ou não, da lista de serviços anexa ao Decreto-lei 406/68 (hoje, Lei Complementar 116/2003). Trata-se de uma lista dos serviços passíveis de tributação pelo imposto, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, incidente sobre serviços de qualquer natureza (ISS).

            Esse foi o contexto em que, em um Seminário de Direito Tributário havido no período, debatiam, em uma mesa voltada ao tema, o Professor Geraldo Ataliba, e o Professor Hugo de Brito Machado, pai de quem escreve estas linhas. Eles defendiam posições contrárias, relativamente à apontada questão jurídica.

            Para Ataliba, a lista de serviços seria meramente exemplificativa, por uma razão clara. Os Municípios são entes federativos, cuja competência decorre diretamente do texto constitucional. Os tributos que podem, e que não podem validamente instituir, são aqueles indicados pela Constituição. Seria absurdo, nessa ordem de ideias, pretender que uma lei editada pela União (o Decreto-lei 406/68 ou, hoje, a LC 116/2003) pudesse limitar – pela omissão, ao deixar de arrolar na lista – os serviços passíveis de tributação por outros entes federativos. E se a lista indicasse apenas um serviço, como o odontológico, ou o de construção civil, omitindo-se sobre todos os outros? Estaria inviabilizada a competência dos Municípios?

            Hugo Machado pensava diferente. Para ele, conquanto os Municípios sejam entes federativos autônomos, cuja competência decorre diretamente do texto constitucional, como corretamente ensinava o Prof. Ataliba, não se pode esquecer, de outro lado, que a Constituição atribui à Lei Complementar o papel de dirimir conflitos de competência (atualmente, art. 146, I, da CF). Ou seja, as competências, que a CF atribui, correm o risco de se sobrepor, o que é factualmente verificável mas juridicamente inaceitável. Daí a necessidade de a lei complementar estabelecer critérios que dirimam tais conflitos. Ao fazê-lo, será inevitável interferir de algum modo no traçado dessas competências, que do contrário conflitariam, interferência que seria admissível constitucionalmente desde que o critério não implique favorecimento de um ente em detrimento de outro, por levar a uma compressão desproporcional de uma das competências envolvidas no conflito que se quer evitar.

            O Supremo Tribunal Federal tem diversos precedentes que autorizam essa conclusão, quanto ao referido papel da lei complementar, inclusive posteriores à Constituição de 1988, que reforçou a autonomia de entes federativos periféricos e expressamente veda a concessão de isenções heterônomas (art. 151, III). Ao apreciar leis estaduais que instituíram o Adicional Estadual do Imposto de Renda, por exemplo, o STF entendeu que a falta da lei complementar para dirimir conflitos de competência inviabilizaria a própria instituição do imposto, por lei estadual (ADI 627/PA), apesar do que consta do art. 24, §3.º, da CF/88, segundo o qual “inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.” O mesmo decidiu o STF, em matéria de ICMS incidente sobre transporte aéreo de passageiros (ADI 1.600/DF), embora, misteriosamente, o critério tenha sido outro em se tratando de transporte terrestre (ADI 2.669/DF).

            E o que isso tem a ver com o ISS e a taxatividade da lista?

            É que existe um ponto de muitos conflitos de competência entre Estados e Municípios, no que tange ao imposto sobre serviços (ISS), e ao imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços de transporte interestadual e intermunicipal, e de comunicação (ICMS). São as operações mistas, assim entendidas aquelas nas quais se presta um serviço com a utilização de mercadorias fornecidas ao tomador quando da prestação.

Basta pensar-se no cidadão que leva seu carro à oficina mecânica, para submetê-lo a um conserto em que se trocam algumas peças. Ou no dentista que, ao realizar um tratamento ortodôntico, fornece peças do aparelho correspondente ao seu paciente. Incide ISS, porque se trata de serviço? ICMS porque há fornecimento de mercadorias? Ambos?

O critério escolhido pelo legislador complementar foi o de que, se o serviço estiver descrito na lista anexa à lei complementar de normas gerais sobre ISS, incidirá apenas o ISS sobre o valor total da operação. Se ele não estiver descrito, incidirá apenas o ICMS sobre o valor total da operação. E, se ele estiver previsto, mas a lista expressamente indicar a incidência de ambos, o ISS será devido sobre a mão de obra, e o ICMS sobre as mercadorias, que deverão ser apartados para fins de cálculo (LC 116/2003, art. 1.º, § 2.º; LC 87/1996, art. 2.º, IV e V). É o que se dá, inclusive, no citado exemplo das oficinas mecânicas (item 14.01 da lista anexa à LC 116/2003): a mão de obra se sujeita ao ISS, e, as peças substituídas na manutenção, ao ICMS.

Não é preciso detalhar mais o critério apontado, que dá cumprimento ao que exige o art. 146, I, da CF/88, para entender que ele só funciona se a lista de serviços for taxativa. Entendida a lista como exemplificativa, o critério não faz sentido algum. Esse era o argumento de Hugo de Brito Machado para expor tese contrária à de seu professor e amigo, Geraldo Ataliba.

Mas o que isso tem a ver com o título deste artigo?

É que, ao defender sua posição, o Prof. Ataliba destacou que a defesa de ponto de vista contrário significaria não saber ler a Constituição, na qual estaria consagrada a autonomia dos municípios, incompatível com a definição, em lei federal, do que poderia ser por eles tributado. Quando lhe foi dada a palavra, em seguida, o Prof. Hugo defendeu os fundamentos de sua posição, acima resumidos. Sobre isso implicar não saber ler a Constituição, retrucou ao mestre que realmente poderia ser o seu caso, mas não o de Aliomar Baleeiro, em cujo livro se poderia ler a defesa da mesma ideia. Baleeiro, como se sabe, foi Constituinte em 1946, e também Ministro do STF, além de autor de obras de destaque, respeitado por todos, sobretudo pelo Professor Geraldo Ataliba, que, ao ouvir essa remissão, não se conteve. Pegou novamente o microfone e atalhou:

- Hugo, você leu um livro falsificado! Baleeiro nunca escreveu isso!

A plateia riu, surpresa com o argumento inusitado. E o Prof. Hugo, sem saber o que dizer, apenas terminou sua palestra, expondo as razões de seu ponto de vista. Insistiu que se trata de forma para dirimir conflitos de competência entre ISS e ICMS, dando cumprimento a outra norma, também da Constituição, que confere esse papel à lei complementar. Se o critério de solução do conflito escolhido pelo legislador for demasiadamente prejudicial a um ente, em favor de outro, pode ser questionada a sua validade, mas não seria esse o caso da taxatividade de uma lista bastante extensa, que procura abarcar praticamente tudo. Outras palestras se sucederam, sobre temas diversos, os professores em seguida foram confraternizar em um bom restaurante, e não se tocou mais no assunto.

Mas, terminado o evento, já no avião, de volta a Fortaleza, o Prof. Hugo não tirava aquela frase da cabeça. Livro falsificado? Logo depois, chegando à sua biblioteca, correu para folhear o exemplar no qual lembrava ter lido sobre a taxatividade da lista. Estaria enganado? Teria feito confusão quanto ao autor em que vira a afirmação?

Diante do mais novo exemplar que possuía do “Direito Tributário”, de Baleeiro, passou a palma das mãos sobre a capa e a contracapa, abriu e examinou a encadernação, com alguma incredulidade, como quem confere a autenticidade de bolsas italianas ou relógios suíços oferecidos por preços estranhamente baixos. Estava lá a posição de Baleeiro. Mas... seria falsificado o livro? Como assim?

Prosseguindo no exame do exemplar que tinha em mãos, capa, contracapa, folha de rosto... voilá! A solução para o enigma surgiu-lhe evidente: Ataliba referia-se ao fato de que o livro de Baleeiro vinha sendo reeditado com notas de atualização, feitas depois de sua morte. O professor Flávio Bauer Novelli vinha mantendo o livro de Baleeiro em dia, e também tinha posição pessoal pela taxatividade da lista. O que Ataliba havia sugerido, muito provavelmente, era que Novelli havia inserido no livro sua posição pessoal, que não seria a de Baleeiro. Teria faltado ao Prof. Hugo atenção para diferenciar a posição do autor e a do atualizador.

Hugo Machado iniciou então uma pesquisa em edições anteriores do livro, publicadas quando Baleeiro ainda vivia. E viu que nelas já constava a remissão ao fato de ser a lista taxativa. Tratava-se, em suma, do pensamento de Baleeiro, não de algo inserido posteriormente em notas de atualização. Aliás, os atualizadores da obra de Baleeiro (Novelli, Dejalma de Campos, Misabel Derzi e, por ironia do destino, mais de três décadas depois desse episódio, também o autor destas linhas, que põe em dia o Uma Introdução à Ciência das Finanças) sempre tiveram e seguem tendo o cuidado de separar as notas de atualização e o pensamento do autor.

Mas nós adultos somos – felizmente – só crianças grandes. Como escreveu Heráclito, em passagem que há uns meses transcrevi para uma pessoa muito querida que nela também se encaixa, o ser humano “só se aproxima do seu eu verdadeiro quando atinge a seriedade de uma criança que brinca.”. Tudo isso para dizer à leitora que a história não acabou aí: a partir de então, sempre que estava em um evento acadêmico, presentes vários autores de livros jurídicos, o Prof. Hugo procurava observar se o Prof. Ataliba estaria presente, com algum outro autor a conversar com ele, nos intervalos entre as palestras. Em seguida, investigava se haveria, à venda nos stands que os livreiros geralmente montam em eventos assim, obras daquele autor envolvido na conversa. Confirmada essa situação, mesmo que já possuísse o livro, adquiria novo exemplar e, pedindo licença por interromper a conversa do autor com Ataliba, dizia:

- Professor, desculpe interromper a conversa de vocês. Acabei de comprar seu livro! O Sr. poderia autenticar para mim, por favor?

- Claro, Hugo! Uma dedicatória? Com prazer! Mas... o que você disse? Autenticar? Como assim?

- É, autenticar.

- Autenticar?!

- É... Para, quando eu citar, ninguém dizer que é falsificado!!!

 

            Apesar de essa última frase ser pronunciada com o tom, o timbre e o volume próprios do professor Hugo (quem já assistiu suas aulas e palestras sabe do que se trata), Ataliba fingia não entender o que se passava, ficando só a alisar as pontas do farto bigode, bem sério, enquanto esperava seu interlocutor concluir o autógrafo para retomarem o diálogo.

Essa foi a explicação que recebi quando, ainda na graduação, questionei a presença de alguns livros repetidos na biblioteca de meu pai, inclusive das mesmas edições, vários deles autografados, relato que compartilho aqui para realçar o aspecto pitoresco, pessoal, já histórico, e mesmo lúdico, subjacente a essa importante questão de Direito Tributário. Recentemente, a propósito, seguindo a ideia da taxatividade, o legislador editou a LC 157/2016, para que na lista se passasse a fazer alusão a novas realidades como a elaboração de aplicativos para smartphones e tablets, a computação em nuvem, a colocação de piercings e o transporte intramunicipal de passageiros por aplicativos.

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Algoritmos no serviço público devem servir a quem?

Tem se disseminado, nos últimos anos, o uso de algoritmos de inteligência artificial (IA) nos mais diversos setores da vida em sociedade. Para além dos anúncios direcionados que as redes sociais exibem aos seus usuários, ou para a sugestão sob medida de filmes ou séries em plataformas de streaming, a IA subjaz a tarefas mais impactantes na vida das pessoas, como a concessão de empréstimos, a seleção de candidatos para vagas de emprego, a seleção de contribuintes a serem fiscalizados pela Receita Federal, ou mesmo a tomada de decisões por parte de autoridades policiais e julgadoras.

O Direito, porém, foi criado e moldado, tal como um organismo vivo, ao longo de séculos de evolução por tentativa e erro, para regular tais tarefas, mas tendo como parâmetro as desempenhadas apenas por humanos. E, talvez, esse regramento não seja suficiente, especialmente para a proteção do cidadão, quando se usam algoritmos.

Se o uso de tais sistemas por entidades privadas já pode ser bastante problemático, no caso do Poder Público, as questões se tornam mais sérias e profundas. No setor privado, a regra é a liberdade, e a privacidade. Uma empresa, em princípio, não é obrigada a divulgar os parâmetros ou os critérios que pautam suas decisões, mas, de outro lado, as pessoas se relacionam com ela se quiserem. Mesmo nesse caso, é verdade, há exceções, já tendo se tornado comum falar-se em “aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas”. Mas, no caso do Poder Público, a situação é diversa. Afinal, foi para proteger o cidadão de governantes arbitrários que surgiram Constituições com catálogos de direitos fundamentais. Diversamente do que se dá em suas relações com outros entes privados, o cidadão muitas vezes não pode escolher se sujeitar, ou não, às imposições do seu governo, que se devem pautar pela publicidade.

O Poder Público, porém, nem sempre divulga ao cidadão quando está a utilizar algoritmos, como os que reconhecem passageiros na chegada de voos internacionais, e secretamente selecionam aqueles que serão parados para inspeção alfandegária. Ou os que definem quais contribuintes terão suas dívidas fiscais executadas judicialmente, e quais serão sujeitos a outras formas de cobrança. Mesmo quando se reconhece, por alto, o uso dessa tecnologia, se mantêm a sete chaves os critérios usados nessa seleção.

Surgem, então, alguns questionamentos. Se se trata do Poder Público, ele pode comportar-se por parâmetros secretos? Não é a expressão “o segredo da coisa pública” uma contradição em seus próprios termos? Se os algoritmos são usados no serviço público, a quem eles devem servir? Devem auxiliar na aplicação do Direito, mesmo quando isso favoreça o cidadão, reconhecendo um erro, por exemplo, que levou ao pagamento a maior de um tributo, que deve ser restituído? Ou devem comodamente silenciar em situações assim? Para que se discutam tais questões, é preciso, de saída, dar publicidade ao uso de tais sistemas e aos critérios que os pautam. Só nesse caso se poderá tentar, ainda que minimamente, fazer com que sejam controlados e fiscalizados pela sociedade em seu uso, adequando-se ao que exigem a Constituição e as leis do país. O mesmo pode ser dito se se espera que sirvam ao público, e não que se sirvam dele.

sábado, 23 de abril de 2022

Easy things are harder

 No campo da inteligência artificial, costuma-se dizer que as coisas fáceis (para nós humanos) são as mais difíceis para as máquinas.

Vencer do campeão mundial de xadrez, para os computadores, desde o final dos anos 1990, é fácil. E isso, para os humanos, é muito difícil, ou mesmo impossível.

Já interpretar frases simples, ou dirigir um veículo, para os humanos é fácil, mas, para as máquinas, muito difícil, ou mesmo impossível.

Colham-se as seguintes frases:

1 - A bola de aço bateu na mesa de vidro e ela quebrou.

 2 - A bola de vidro bateu na mesa de aço e ela quebrou.


O pronome "ela", nas duas frases, refere-se a qual objeto? À mesa, ou à bola?

Para uma máquina, é muito difícil dizer. Posto a elas o desafio, acertam em cerca de 50% das vezes, percentual proporcional ao mero palpite, ou ao "chute", como se diz na linguagem coloquial.

Para um humano que esteja prestando atenção, não há dúvida. Na frase 1, "ela" designa a mesa. Na frase "2", designa a bola. Porque se sabe, pelo "senso comum", que quando objetos de vidro batem em objetos de aço, são os primeiros que quebram, dada sua maior fragilidade. Trata-se de um conhecimento que está para além do significado das palavras usadas nas expressões, necessário a que se investigue o sentido que, em caso de dúvida, podem ter.

O mesmo vale para as seguintes frases:

1 - Coloque a caixa de pizza sobre a mesa e abra-a.

2 - Coloque a caixa de pizza sobre a mesa e coma-a.


O pronome "a", nas duas frases, designa a caixa, no primeiro caso, pois caixas se abrem (e não se comem). No segundo caso, designa a pizza, porque pizzas se comem, mas caixas não. E, nos dois casos, mesas geralmente não se comem nem se abrem (pelo menos não depois de se ter colocado algo sobre elas).

Veja-se agora esta frase:

3 - Procure uma mesa portátil na cozinha e abra-a.

Agora, o "a" se reporta à mesa, porque mesas portáteis, sobretudo antes de serem usadas, podem estar dobradas, ou recolhidas, demandando que sejam abertas para serem usadas.

É preciso conhecimento do "senso comum" para saber que mesas portáteis se abrem, caixas se abrem, pizzas se comem, para interpretar tais frases. Ou seja, é preciso conhecer a realidade, e não só o significado de cada palavra usada na frase, para definir qual sentido atribuir a elas no contexto em que usadas.

Seres humanos fazem isso intuitivamente. Máquinas, não.

Se usam indução, pretenderão dar às palavras, no futuro, sempre o significado que tiveram, no passado. Mas o futuro pode ocorrer de modo diferente. Será preciso usarem a abdução, outra forma de raciocínio, na qual se busca "a melhor resposta" para um problema. Mas como saber que uma resposta é "a melhor"? É preciso, de novo, recorrer ao senso comum. Tal como nos exemplos das frases acima.

Quando alguém diz: "- A grama está molhada, então é possível que tenha chovido.", há abdução. Não se dá certeza de ter chovido. Apenas uma probabilidade. Trata-se da melhor resposta, ou da melhor hipótese, para a questão de estar molhada a grama. Mas, se o céu está claro, não há qualquer nuvem, e outras partes da casa estão secas, incluindo a rua e a calçada do lado de fora, talvez essa hipótese já não seja a melhor. Talvez, então, alguém tenha regado a grama, ou as crianças tenham mais cedo brincado de mangueira, deixando tudo úmido.

O grande desafio, para que máquinas compreendam a realidade, e o que dizemos a respeito dela, é que sejam capazes de realizar abduções. Mas como conseguir isso? 

Se, por raciocínio dedutivo, forem programadas para dar uma resposta pronta para qualquer problema que se coloque, só serão capazes de resolver os problemas para os quais forem programadas (e sua inteligência será tão problemática como o domínio do chinês pela pessoa trancada na sala chinesa, no experimento mental de Searle). Se, por indução, forem programadas para inferir como proceder no futuro, com base no que aprendem sobre o passado e o presente, sofrerão porque o futuro pode ser diferente, e por que a amostra que têm do presente e do passado é limitada, sendo preciso que saibam, dos fatos que examinam, o que é relevante e o que não é... Daí a necessidade de abdução. E você, já conhecia essa forma de inferência?

Um livro que introduz com clareza e objetividade esses assuntos, e cuja leitura recomendo, é o seguinte:

 

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Cada vez mais, o estudo da IA revela mais sobre o humano, sobre como pensamentos, decidimos e julgamos. Não à toa, teóricos da computação estão a aprender com filósofos, teóricos da cognição e da epistemologia, e vice-versa.

Dubiedede processo resultado

Algumas palavras sofrem da dubiedade "processo/resultado", designando uma série de atos que chegam a um resultado final, e, também, este resultado.

É o caso das seguintes:

- Julgamento;

- Pensamento;

- Raciocínio;

- Prova;

- Interpretação;

- Conhecimento...

 

Será coincidência o fato de que designam processos cognitivos, ou seja, levados a efeito pela mente humana?

Você conhece outras? Deposite nos comentários!

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Cinco conselhos para redigir boas peças jurídicas

Depois de mais de duas décadas no exercício da advocacia, tenho observado as melhores maneiras de levar o argumento até o magistrado, de modo a que ele compreenda o que se pretende, e, se possível, concorde com a procedência do que se pede. Aqui vai um pouco de experiência própria, obtida no lento - e talvez aplicável a todo artefato ou obra humana - processo de tentativa e erro. Mas há também consequências da observação de peças feitas por colegas.

Especificamente para a advocacia no campo do Direito Tributário, meu "Processo Tributário" pode servir de aprofundamento para o que se diz aqui (clique aqui), no que tange a aspectos mais técnicos. O que referir, obrigatoriamente, nesta ou naquela peça, neste ou naquele tipo de procedimento, ação ou recurso, por exemplo.

 

 

Os conselhos abaixo são diferentes. Mais simples e gerais, aplicam-se a qualquer área do Direito, além de estarem mais relacionados à forma que se deve imprimir à peça. 


Vamos a eles.

 

1. Escreva pouco

Ouvi, em certa ocasião, de um professor da Faculdade de Direito, que também era Desembargador, que, para ele, se a petição inicial do mandado de segurança tivesse mais de 10 páginas, não haveria "direito líquido e certo".

Trata-se, claro, de um argumento equivocado. A liquidez e a certeza do direito postulado por meio de mandado de segurança decorre da ausência de controvérsia sobre os FATOS dos quais o direito subjetivo reclamado decorre. Nada a ver com a quantidade de páginas em que redigida a inicial. Mas, de qualquer modo, trata-se da opinião de um integrante de um Tribunal de Justiça, que de resto é compartilhada por muitos de seus colegas. Não propriamente quanto ao conceito de direito líquido e certo, mas quanto ao preconceito com peças muito longas. Acha-se logo que, se o advogado precisa de muitas páginas para se explicar, ou para convencer, seu pleito não é bom.

Só isso já seria suficiente para embasar este conselho: escreva pouco.

Mas não é só. O argumento pode, de fato, ficar muito mais consistente, se for enunciado com brevidade, tal como uma xícara de café se torna mais forte, quando se lhe adiciona menos água. Finalmente, os julgadores, cada vez com menos tempo, e com mais trabalho, simplesmente não lerão peças muito longas, tornando inútil todo o acréscimo que lhes aumenta as páginas. Melhor escrever cinco que serão lidas, do que cinquenta que serão ignoradas.

Como saber, contudo, o que cortar? Os próximos conselhos podem ajudar nisso.

 

2. Não perca tempo com o que não é controvertido

Não é raro encontrar peças em que o advogado escreve longamente sobre assuntos ou temas que a parte adversa não questiona. Se o Fisco afirma que a empresa teve um prejuízo, mas se recusa a permitir que este seja abatido de lucros experimentados em exercícios posteriores, o advogado da empresa, em sua peça, não precisa discorrer longamente sobre o tal prejuízo, que é incontroverso. Melhor dedicar-se às razões pelas quais seria indevido não permitir o abatimento.

 

3. Não alongue a peça com transcrições desnecessárias

Este conselho pode ser considerado uma variação do anterior, mas se refere especificamente a citações doutrinárias. Há advogados que, quando afirmam que um ato é ilegal, dissertam longamente sobre a legalidade, transcrevendo os mais variados doutrinadores que já trataram desse princípio. A questão é que nem a parte adversa, nem o juiz, colocam em dúvida a necessidade de se respeitar a lei. A controvérsia reside justamente em saber se o ato impugnado no processo é, ou não, ilegal, sendo esta a questão na qual a peça deveria centrar.

O mesmo ocorre quando se pede uma tutela provisória. O advogado deve evidenciar a presença dos requisitos legais, da fumaça do bom direito e do perigo da demora, e não ficar transcrevendo longas páginas de doutrina sobre "o que é tutela provisória" ou sobre "o que é perigo da demora", em tese. Isso faz com que o leitor seja estimulado a pular para o final da peça, impaciente para saber o que será pedido, e nisso pode deixar de ler algo realmente relevante, que faria alguma diferença se fosse visto.

 

4. Evite adjetivos exagerados e agressões. Prefira a objetividade.

 Sabe aquele ditado, de que "Quando João fala mal de Pedro, isso nos revela mais sobre João do que sobre Pedro"? Pois é, a ideia aqui é mais ou menos essa. Adjetivar a parte adversa, o seu advogado, o perito, ou o prolator da decisão recorrida, não leva a nada, e pode atrair a antipatia - ou algo pior - do leitor. Melhor indicar, com objetividade e respeito, os motivos pelos quais se considera que algum ato praticado pela parte adversa, seu advogado, o perito ou o prolator da decisão recorrida é equivocado.

Em vez de afirmar que "O réu, em total má-fé, vomita mentiras ao sugerir que o responsável pelo dano teria sido o autor. Esse desatino pode ser desfeito a partir das provas constantes das fls...", pode-se simplesmente afirmar "A afirmação do réu de que o responsável pelo dano seria o autor não é verdadeira. Conforme se depreende das provas constantes das fls..."."

Também não é preciso adjetivar com elogios os autores citados, doutrinadores ou julgadores, com palavras que o advogado às vezes nem sabe bem o que significam. Pranteado, saudoso, festejado, incensado... Pode-se simplesmente citar o pensamento de Fulano, que se está sendo citado é porque é considerado como alguém relevante. Menos é mais. 

Sobriedade e elegância tornam a peça mais convincente, inclusive. Além de ser mais educado, e conferir maior urbanidade ao processo.


5. Seja claro, especialmente na narração dos fatos, e no pedido

 O Direito, as normas jurídicas, a doutrina e a jurisprudência, em regra, o juiz conhece. Pelo menos em tese. Se não conhece, pode ter acesso e conhecer, por meio de livros, da internet, de uma conversa com colegas ou com sua assessoria. Mas os fatos, e o que a parte deseja, o juiz não tem como saber, em princípio, a menos que isso seja comunicado a ele, trabalho que primordialmente cabe ao advogado. O juiz não tem como saber, ou adivinhar, como a situação conflituosa ocorreu, quem vendeu o que para quem, ou quem contratou com quem, quem empregou ou demitiu quem. Tampouco tem como saber o que a parte pretende. É preciso, portanto, dedicar maior atenção a essa parte, não à transcrição de julgados e mais julgados, ou de páginas de doutrina. Cabe ao advogado narrar os fatos, enunciar de modo sintético a tese jurídica que a partir deles conduz ao que se pede ao final, e pedir, sem floreios ou rodeios.

Deve-se usar um português claro, sem a necessidade de um termo mais rebuscado, se há um mais fácil. Sem a necessidade de uma palavra em língua estrangeira, ou mesmo em latim, se há equivalente adequado em nosso idioma. Finalmente, palavras e períodos curtos. Como dizia Churchill, das palavras, as mais simples. Das mais simples, a menor.

Nessa mesma ordem de ideias, convém não poluir a peça com excesso de negritos, itálicos, fontes em tamanho muito maior, em cores diversas e muito chamativas, e sublinhados. Aqui também, menos muitas vezes é mais.

 

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Tudo isso aumentará as chances de seu argumento ser lido, e, talvez, lido com boa vontade, o que é muito importante. Afinal, ele foi escrito para isso, não foi?

E você, teria algum conselho adicional para dar? Fique a vontade de compartilhar com a gente nos comentários! 

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Súmula 399/STJ - Algumas notas

 

Súmula n.º 399/STJ – “O ICMS incide sobre o valor da venda a prazo constante da nota fiscal.”

·          Publicada no DJe de 7/10/2009.

Comentários ———————————————————————————

            Tem-se, na súmula em comento, o resultado da consolidação da jurisprudência do STJ em torno da base de cálculo do ICMS nas vendas a prazo.

            A LC 87/96 determina, em tais hipóteses, que o valor dos juros devem compor a base de cálculo do imposto, disposição que deve ser vista com reservas. Deve ser feita distinção – que a jurisprudência do STJ fez com muita propriedade – entre a venda a prazo, na qual os juros eventualmente podem estar embutidos no preço pelo qual a mercadoria é vendida e sai do estabelecimento vendedor (preço este que é a base de cálculo do ICMS, conforme reconhece a súmula que ora se examina), e a venda financiada, na qual existem dois contratos: um de compra e venda, em função do qual a mercadoria circula, e outro de financiamento, em face do qual o comprador obtém emprestado o dinheiro necessário para comprá-la. Nesse segundo caso, os juros são a remuneração deste outro contrato, e não podem validamente integrar a base de cálculo do ICMS, como, aliás, entende a jurisprudência.

            Inicialmente, o STJ esclareceu não integrar a base de cálculo do ICMS os encargos relativos ao financiamento com cartão de crédito (Súmula n.º 237/STJ, supra). Em seguida, estabeleceu-se que os encargos de financiamento não integram a base de cálculo do ICMS mesmo quando não decorrentes de operação com cartão de crédito (Cf., v. g., EREsp 435.161/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 13/6/2005; AgRg no REsp 300.722/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 16/5/2005; e AgRg no AG 588.278/SP, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 25/10/2004).

            A incidência do ICMS sobre os “juros” eventualmente embutidos em uma venda a prazo (na qual não se concede o desconto inerente a uma venda a vista), e a distinção entre essa operação e uma venda financiada, fatores que deram origem à Súmula 395/STJ, passaram a ser diferenciados pela jurisprudência do STJ nos seguintes termos: “Os encargos relativos ao financiamento, seja este decorrente ou não de operação com cartão de crédito, não integram a base de cálculo do ICMS. Interpretação analógica do enunciado sumular n.º 237/STJ (Precedentes: EREsp 435.161/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 13/6/2005; AgRg no REsp 300.722/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 16/5/2005; e AgRg no AG 588.278/SP, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 25/10/2004). 3. Destarte, o ICMS não incide sobre os encargos da chamada ‘venda financiada’, que compreende, em verdade, dois negócios jurídicos distintos, o de compra e venda e o de financiamento. Todavia, em não se tratando de hipótese de ‘venda financiada’, mas de mera ‘venda a prazo’, integra a base de cálculo do ICMS o valor acrescido ao preço do produto. 4. A ‘venda a prazo’ revela-se modalidade de negócio jurídico único, o de compra e venda, no qual o vendedor oferece ao comprador o pagamento parcelado do produto, acrescendo-lhe o preço final, razão pela qual o valor desta operação constitui a base de cálculo do ICMS, na qual se incorpora, assim, o preço ‘normal’ da mercadoria (preço de venda a vista) e o acréscimo decorrente do parcelamento (Precedentes desta Corte e do Eg. STF: AgR no RE 228.242/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 22/10/2004; EREsp 550.382/SP, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 1/8/2005; REsp 677.870/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 28/02/05; e AgRg no REsp 195.812/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 21/10/2002). 5. In casu, a controvérsia diz respeito a acréscimos no preço de produtos decorrentes de venda a prazo, e não de financiamento, razão pela qual os referidos valores integram a base de cálculo do ICMS. 6. Embargos de divergência providos (STJ, 1.ª S., EREsp 255553/SP, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 14/12/2005, DJ de 13/2/2006, p. 654).

            O critério distintivo, como se vê, é semelhante ao utilizado no caso dos descontos. Se a operação acontece por valor “X”, e o comprador pode eventualmente ter de pagar acréscimos posteriores (à ocorrência do fato gerador), por atraso no pagamento do preço, esses acréscimos não integram a base de cálculo do ICMS, que será simplesmente de “X”, vale dizer, do valor da operação pelo qual a mercadoria saiu do estabelecimento vendedor. Nesse caso, “os valores referentes ao financiamento não se incluem na base de cálculo do ICMS, por não corresponderem ao montante da saída da mercadoria que se constitui no fato imponível” (STJ, 2.ª T., AgRg no REsp 634.112/RS, Rel. Min. Castro Meira, j. em 6/12/2005, DJ de 2/5/2006, p. 285). No mesmo sentido: “‘Sabendo-se que o ICMS incidirá sobre a saída de mercadorias de estabelecimento comercial, industrial ou produtor, e que a base de cálculo da citada exação é o valor de que decorrer a saída da mercadoria, óbvio fica a impossibilidade de que este imposto venha a incidir sobre o financiamento, até porque este é incerto quando da concretização do negócio comercial. Precedentes do STJ e do colendo STF’ (Embargos de Divergência no Agravo n. 448.298/SP, Primeira Seção, Ministro José Delgado, DJ de 2/8/2004). [...]” (STJ, REsp 762.728/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em 12/10/2005, DJ de 20/2/2006, p. 311). No Supremo Tribunal Federal: “Embora o financiamento do preço da mercadoria, ou de parte dele, seja proporcionado pela própria empresa vendedora, o ICM há de incidir sobre o preço ajustado para a venda, pois esse é que há de ser considerado como valor da mercadoria e do qual decorre a sua saída do estabelecimento vendedor. O valor que o comprador irá pagar a maior, se não quitar o preço nos 30 dias seguintes, como faculta o contrato do cartão especial Mesbla, decorre de opção sua, e o acréscimo se dá em razão do financiamento, pelo custo do dinheiro, e não pelo valor da mercadoria” (STF, 2.ª T., RE 101.103/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho, j. em 18/11/1988, DJ de 10/3/1989, p. 3.016). Entretanto, se a operação já ocorre por valor “X+1”, porque previamente se estabeleceu que o comprador teria prazo mais elástico para o pagamento, o valor da operação é “X+1”, valor este pelo qual a mercadoria saiu do estabelecimento vendedor, e que por isso mesmo deve corresponder à base de cálculo do ICMS.

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                Para comentários a outras Súmulas do STF e do STJ relevantes em matéria tributária, vale a pena conferir o meu "Direito Tributário nas Súmulas do STF e do STJ":

 

 

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