terça-feira, 31 de março de 2009

Contribuições previdenciárias na Justiça do Trabalho

Ademar Mota da Silva, médico, prestou serviços para o Hospital Santa Felicidade durante os anos de 2004 e 2005. Não recebeu, contudo, os honorários que havia acordado, o que motivou a propositura de ação judicial.

Seus pedidos foram julgados procedentes, e, em 2007, Ademar Mota recebeu do Hospital os honorários devidos. O imposto de renda foi descontado na fonte, e, além disso, Ademar incluiu esses rendimentos em sua declaração de ajuste relativa àquele ano-base.

Qual não foi sua surpresa, contudo, quando, meses depois, recebeu auto de infração, lavrado por auditor fiscal da receita federal, no qual se lhe exigiam os acréscimos moratórios (juros SELIC) e a multa por descumprimento de obrigação acessória. O Hospital sofreu auto de infração análogo, relativamente ao imposto de renda retido na fonte.

A fundamentação, em suma, era a seguinte: como reconhecido na sentença proferida na ação movida por Ademar Mota, os rendimentos deveriam ter sido pagos em 2004 e 2005, pelo que tanto Ademar Mota como o Hospital deveriam tê-los incluído na declaração de imposto de renda referente a esses anos, submetendo-os à tributação desde então. Não poderiam tê-los incluído apenas na declaração relativa ao ano do efetivo pagamento.

É claro que um auto de infração assim, de tão disparatado, nem é lavrado por auditores fiscais. E, se fosse, seria facilmente desconstituído na via administrativa mesmo, ou, quando muito, judicialmente, em sede de embargos à execução fiscal. Afinal, o fato gerador do imposto de renda é o recebimento dos rendimentos, ocorrendo na data em que estes são creditados ou por qualquer meio postos à disposição do contribuinte. Antes disso, não se poderia exigir dele, nem da fonte, que tributassem ou declarassem o que quer que fosse. O mesmo pode ser dito do ICMS, que é devido a partir de quanto a mercadoria efetivamente sai do estabelecimento comercial, e não a partir de quando se celebra contrato segundo o qual ela deveria ser remetida.

O problema, em relação às contribuições previdenciárias, é que a lei - inconstitucionalissimamente - determina o contrário. E, para completar, a constituição do crédito tributário e sua execução acontecem, não raro, de forma... digamos... pouco ortodoxa, o que torna mais difícil o controle de sua validade.

***

Esse post já estava pronto, apenas com o conteúdo que se segue abaixo, quando resolvi fazer a introdução que o leitor acaba de ler. Acredito que ela torna mais claro o que pretendo demonstrar aqui.

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Nem vou aqui comentar a execução de contribuições previdenciárias no âmbito da Justiça do Trabalho, algo que me parece fruto de desprezo às lições de Locke e Montesquieu. Afinal, como se sabe, em tais circunstâncias o Juiz do Trabalho declara que o fato gerador ocorreu, lança a contribuição previdenciária correspondente, executa a quantia por ele lançada e julga os embargos eventualmente opostos pelo executado. Embora a violação à separação de poderes pareça clara, não vou comentá-la aqui. Pretendo examinar apenas algumas anomalias constantes de uma recente Medida Provisória (MP 449/2008), que procura sedimentar orientação que já vinha sendo seguida mesmo antes dela.

Trata-se do art. 43 da Lei 8.212/91, que passou a dispor:

"Art. 43. (...)

§ 1.º Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados em que não figurarem, discriminadamente, as parcelas legais relativas às contribuições sociais, estas incidirão sobre o valor total apurado em liquidação de sentença ou sobre o valor do acordo homologado. 

§ 2.º Considera-se ocorrido o fato gerador das contribuições sociais na data da prestação do serviço. 

§ 3.º As contribuições sociais serão apuradas mês a mês, com referência ao período da prestação de serviços, mediante a aplicação de alíquotas, limites máximos do salário-de-contribuição e acréscimos legais moratórios vigentes relativamente a cada uma das competências abrangidas, devendo o recolhimento das importâncias devidas ser efetuado até o dia dez do mês seguinte ao da liquidação da sentença ou da homologação do acordo. 

(...)

§ 5.º O acordo celebrado após ter sido proferida decisão de mérito não prejudicará ou de qualquer forma afetará o valor e a execução das contribuições dela decorrentes."


Destaco, sobretudo, os parágrafos segundo e quinto.

Não é possível determinar que o "fato gerador" das contribuições previdenciárias "considera-se ocorrido" na data da prestação do serviço, quando a remuneração, evidentemente, não ocorreu nessa data (tanto que motivou a propositura da reclamação trabalhista).

Na verdade, a disposição destina-se a que a contagem dos juros retroaja à data da prestação do serviço, em vez de ter como início a data do pagamento da remuneração correspondente. Assim, se o empregado recebe, hoje, em face de decisão da Justiça do Trabalho, R$ 10.000,00, as contribuições incidentes sobre esse valor serão calculadas como se o pagamento ao empregado tivesse ocorrido anos antes, quando da prestação do serviço correspondente.

Tal disposição, porém, além de contrariar a lógica, impacta a Constituição, cujo artigo 195 é claro ao determinar que o âmbito constitucional de incidência de tais contribuições é o PAGAMENTO. Tanto que, se não há pagamento (v.g., serviço voluntário), não há contribuição. Se o fato gerador é o pagamento, é evidente que ele só pode ser considerado ocorrido na data em que esse pagamento acontece.

A exigência da contribuição, no caso aqui comentado, seria tão absurda quanto exigir de uma empresa, condenada no plano cível a remeter algumas mercadorias a um de seus clientes (v.g., em virtude de ação que discute cláusulas do contrato de fornecimento de produtos), a recolher o ICMS calculado sobre essa remessa como se ela tivesse ocorrido na data reclamada pelo autor, anos antes da propositura da ação. A rigor, a remessa ocorreu somente agora, pelo que o imposto tambem somente agora é devido; a data da efetiva remessa (e não aquela na qual ela deveria ter ocorrido) é o termo inicial dos juros - e de qualquer outro encargo moratório.

A outra contradição, do parágrafo quinto, está ligada à primeira: de acordo com ele, se o empregado ganha em primeira instância, mas faz acordo antes do julgamento do recurso, as contribuições devem ser calculadas sobre o valor determinado na sentença, e não sobre o valor efetivamente recebido pelo empregado em face do acordo. O fato gerador, contraditoriamente, agora passa a ser a "condenação judicial", e não o serviço e nem o pagamento da remuneração. Não parece haver coerência.

Ora, o fato gerador da obrigação de recolher as contribuições previdenciárias é o pagamento. É só a partir dele que a contribuição se faz devida. E se ele ocorre em valor menor, em face de acordo, é sobre esse valor menor que ela deve ser calculada. Afinal, como diria o Prof. Geraldo Ataliba, a base de cálculo nada mais é do que o “aspecto dimensível” da hipótese de incidência tributária. Se esta é o pagamento, a base de cálculo não pode ser nada diverso do valor deste.

segunda-feira, 30 de março de 2009

STF e a Contribuição de Iluminação Pública



Julgando o RE 573.675, o STF considerou válida a cobrança, por parte de um Município, da "Contribuição de Iluminação Pública" prevista no art. 149-A da CF/88.
Fico a pensar na força do nome "contribuição".
Ouvi certa vez que as palavras têm força, cor, gosto, cheiro... Umas se sobressaem, outras são débeis.
Depois de ler Steven Pinker, sobretudo "De que é feito o pensamento", comecei a me convencer disso. E as contribuições dão um bom exemplo, que me reforça a convicção.
Não é à toa que chamam de babá, pelo menos aqui em Fortaleza, aquela pessoa, geralmente do sexo feminino, que tem por função auxiliar nos cuidados a serem dispensados a bebês e crianças até uma certa idade. Recebem por mês, algo em torno de um salário mínimo ou pouco mais. E chamam de "babysitter" aquela que faz a mesma coisa mas recebe por hora. Fico a pensar por qual razão a "mais importante" e que invariavalmente recebe muito mais tem nome em inglês.
Bom, deixa para lá. Estávamos falando de contribuições, e não da babás.
Vejam só o que ocorre com a palavra imposto. É logo associada a algo contrário à vontade de quem a ele se submete, não raro de forma arbitrária, excessiva... Taxa, por sua vez, é ligada - embora indevidamente - a uma restrição, a uma punição. Não raro alta e injustificada.
Já a palavra contribuição, não. É doce, e tem algo de solidário envolvido em seu âmbito.
Não estou falando ainda do direito tributário, ou mesmo do direito positivo, mas da etimologia. Contribuir é algo que se faz por dever de solidariedade, cuja recusa é associada ao egoísmo injustificado.
Isso parece ter influência sobre julgadores.
Basta ver que o IPMF foi considerado inconstitucional, mas a CPMF não.
Agora, com a Taxa de Iluminação Pública, deu-se o mesmo. Mudando-se-lhe o nome para contribuição tudo foi resolvido.
Mas criam-se também problemas, e é preciso ser coerente.
Contribuições incidem, não raro, sobre fatos geradores próprios de impostos (veja-se, por exemplo, CSLL x IPRJ; CIDE-Combustíveis x ICMS; PIS e COFINS x ICMS, IPI e ISS). Instituir-se uma verdadeira farra no âmbito das contribuições perturba e tumultua a divisão de rendas tributárias, antes precisa e delimitada (vejam-se os arts. 154, I e 157, II da CF), divisão sobre a qual repousa a própria forma federativa de Estado. Desse tema cuidei, sob a orientação do Prof. Paulo Bonavides, no mestrado, e o resultado foi o "Contribuições e Federalismo", publicado pela Dialética e aqui já referido anteriormente.
Bom, mas há outro problema. É o da destinação dos recursos.
É que o nome "contribuição" cobra um preço pela sua doçura. Consiste na necessidade de os recursos arrecadados serem aplicados na finalidade que justifica a exação, não se lhe aplicando o art. 4.º do CTN.
Esse preço o STF já disse, em relação à União, que ela não precisa pagar, relativamente às contribuições de seguridade, quando fez letra morta do art 165, § 5.º, I e III, da CF/88.
Resta saber o que será feito em relação aos Municípios.
Sim, porque já existem aqueles, como o de Fortaleza, que estão a aprovar leis permitindo o uso do valor arrecadado com contribuições em outras despesas, diversas da iluminação pública.
Argumentam, não raro, que os recursos não podem ser "previamente vinculados" pela legislação, sob pena de "engessarem" o Executivo. É verdade. Mas a solução, é claro, seria INSTITUIR IMPOSTOS EM VEZ DE CONTRIBUIÇÕES, e não usar a parte boa destas últimas, esquecendo-lhes o elemento essencial - justificador de tanta complacência judicial - logo em seguida.
Se o volume arrecadado com a CIP está "sobrando", a solução não é desvincular sua destinação, mas REDUZIR a contribuição.
Há outros problemas ainda: prestação de contas por parte da empresa encarregada da iluminação; cobrança casada com a fatura de energia (a CF autoriza a cobrança na fatura, mas não de forma "casada" que não permite o pagamento separado de uma ou de outra); e até mesmo a questão de Municípios como o de Fortaleza, que se limitaram a editar lei com três artigos, dizendo instituir a CIP, a ser regida pela Lei de 1980 que cuidava da TIP, revogando as disposições em contrário e entrando em vigor na data da publicação...

sexta-feira, 27 de março de 2009

Quem só concorda comigo não me ajuda a crescer

Mais um post do "lado Caras do mundo jurídico".
Lembrei do assunto a propósito da 30.ª edição do Curso de Direito Tributário, cuja "quota do autor" acabou de chegar aqui no escritório. Meu pai está bastante satisfeito. É uma edição histórica. 30 edições em 30 anos, pois a primeira é justamente de março de 1979. E as últimas tiragens giraram em torno de 17.000 exemplares.
Lembramos, a propósito dela, do professor Ives Gandra da Silva Martins, que fez a apresentação da primeira edição do livro e desde então (aliás, desde antes) mantém sincera amizade com meu pai.
Fiquei sabendo, faz algum tempo, como se deu o início dessa amizade.
Lá pelos idos da década de 70, eu nem pensava em nascer (sou de 1978), meu pai viu texto do Prof. Ives, com o qual não concordou, e escreveu outro refutando as suas idéias. Citava expressamente o texto do Prof. Ives, e apontava os pontos nos quais ele estaria, em sua opinião, equivocado. Foi publicado na mesma revista.
Até então, acho, eles não se conheciam. Meu pai ensinava Direito Tributário na Unifor, mas não era muito conhecido fora do Ceará. Tinha um livro sobre o ICM, lançado em 1971, mas que não havia circulado satisfatoriamente fora do Estado.
Pois bem. Algum tempo depois, o Prof. Ives, tomando conhecimento daquele autor do Ceará que escrevia sobre Direito Tributário, convidou-o para participar de Simpósio que organizava em São Paulo. E, ao final do evento, convidou-o, e a alguns outros participantes, para um jantar em sua casa.
Depois do jantar, e de muitas conversas agradáveis, meu pai tomou coragem e perguntou: - Ives, a que te devo tanta gentileza? Tudo o que fiz foi escrever texto discordando do seu...
Ao que o prof. Ives respondeu:
- Hugo, os que só concordam comigo não me ajudam a crescer.

A lição contida na frase, embora notável, e verdadeira, não costuma ser lembrada por muita gente. Aliás, no meio jurídico, e especialmente tributário, que tanto se queixa de ser "científico", não são poucos os professores que tomam uma divergência como uma ofensa séria, motivo para passar muito tempo, ou até a vida toda, sem falar direito, ou sem falar de jeito nenhum, com o opositor. Alguns passam a uma espécie de index librorum prohibitorum e são até proibidos nas bibliografias dos orientandos dos criticados/melindrados, que se não quiserem problemas sérios não devem inventar de citá-los.
Procurei pensar muito nisso na última quarta-feira à noite, na banca de qualificação de minha tese, na qual levei algumas lapadas leves. Gostei muito, mas muito mesmo das críticas que fizeram. Mostrou que leram com atenção o trabalho, entenderam o que tentei dizer nele, e até gostaram. Mas, se não tivessem criticado, não teriam me ajudado a melhorar, para a defesa, o que é justamente a finalidade de exame de qualificação. Assim, vão permitir que eu corrija aqueles pontos nos quais reconheço a procedência da crítica, bem como reforçar ou esclarecer aqueles em relação aos quais penso que a crítica não é consistente. Depois comento o assunto em post específico.

Eu quero é aula!!!

No doutorado, cursei disciplina sobre didática do ensino jurídico. Quando vi que tinha de me matricular, achei que seria um saco, mas, como era obrigatória, inscrevi-me.
Ao cursá-la, porém, me surpreendi. Primeiro porque o professor, Rosendo Amorim, é muito legal. Depois porque aprendi muita coisa útil ao meu ofício de professor.
Uma coisa que aprendi na teoria, e na prática, foi a importância e a utilidade de diversificar os métodos de aula. A aula discursiva, ou expositiva, é muito importante, e ainda acho que deva, principalmente na graduação, ser o carro-chefe. Mas não deve ser a única.
Quem um dia não já sentou em uma cadeira, na sala de aula, e viajou longamente enquanto o professor falava por horas a fio? Até que o professor então pergunta: - Não é, fulano?
Um "Ãhn?", beeem longo e anasalado, é a resposta mais comum de quem nesse momento é puxado à terra firme, de volta ao mundo físico.
É legal, por isso, alternar a aula expositiva com outros métodos. Vídeos, estudos de caso, debates, resoluções de provas de concurso ou da OAB...
Pois bem.
Embora reconheça isso, nunca tive muita disposição para tal. O máximo que já tinha feito era um "julgamento simulado" de um processo administrativo tributário, na disciplina de "Processo Tributário" que ministro na Faculdade Farias Brito. Dividi a turma - que não era muito numerosa - entre os "conselheiros", o "procurador" e o "advogado", dei uma cópia do processo para cada um com antecedência, para que elaborassem seus argumentos em casa, e foi bem proveitoso.
Não faço isso com frequência não porque não valorize tais métodos, mas porque a matéria que ensino, "Tributário I", é muito extensa, e nem sempre sobra tempo. Mas tenho me esforçado.
Outro dia, depois de tratar de determinado assunto, levei para a turma uma prova de direito tributário da OAB, aplicada a quem escolheu essa matéria para a segunda fase.
Tive o cuidado de selecionar justamente as questões que cuidavam da matéria dada, imprimi no próprio formulário da OAB, e pedi aos alunos que fizessem como se estivessem se submetendo ao tal exame "de verdade".
Esclareci, ainda, que poderiam consultar livros, mas não o colega. Tal como na prova "de verdade" mesmo.
Disse, por fim, que uns vinte minutos antes de terminar a aula eu discutiria com a turma as questões. Debateríamos as respostas dadas por cada um, eu diria minha opinião etc.
Uma aluna, então, aproximou-se, com a fisionomia bastante contraída (isso para não dizer que estava revoltada) dizendo:
- Eu não acordei cedo e nem peguei a maior chuva no caminho para, chegando aqui, não ter aula!

Tentei explicar para ela que aquilo era "ter aula", e que talvez ela aprendesse mais ali, tentando resolver a prova e depois discutindo as respostas, do que se eu estivesse só falando coisas (que estão nos livros, por sinal) para ela copiar e decorar acriticamente, mas acho que não convenci. Ela saiu e disse que voltaria quando eu fosse explicar as questões. Não tentaria resolvê-las antes.
Os que ficaram, eu acho, gostaram.
Mas o pior é que, nas avaliações que os alunos fazem dos professores, embora eu receba notas bem altas em quase todos os quesitos, os alunos geralmente reclamam que eu não uso muito "métodos didáticos alternativos". Vai entender....

quinta-feira, 26 de março de 2009

Twitter


Sempre fui entusiasta da informática e da eletrônica. Lembro de um TK-90X no qual aprendi a programar em BASIC (é o novo!), ainda em 1987. Depois veio um MSX. Depois um 8088, um 286, 386, 486, Pentium... Bom, os seguintes já devem ser conhecidos da maioria dos leitores. No colégio, no final do ensino médio ("no meu tempo - 1995" era "segundo grau"), eu estava em dúvida entre engenharia eletrônica, mecatrônica, informática ou direito (quem vê até pensa: - tudo a ver!)
Escolhi Direito e não me arrependo. Depois explico as relações que estabeleci entre ele e esses outros ramos do conhecimento, e que explicam o meu gosto por Teoria Geral do Direito.
Mas o que importa é que, com o tempo, fui passando de programador para mero entusiasta, e, depois, para usuário avançado e, em seguida, mero usuário mesmo. Até o dia em que minha filha, que na época tinha uns 6 anos, começou a usar o MSN, e me olhou meio atravessado quando eu disse que sabia o que era mas nunca tinha tentado aprender a usar.
Caiu a ficha quando eu comecei a lembrar da dificuldade que foi para o meu pai passar da máquina de escrever para um PC-XT com DOS e Word, em 1988... Algum tempo depois, ensinar a mesma coisa ao Professor Arnaldo Vasconcelos foi dezenas de vezes pior. E comecei a ver que, se eu não tomasse cuidado, ficaria do mesmo jeito. Já estava resistindo a mudar para o Windows Vista, só para não ter que aprender a usar um novo sistema... Comecei a ver que estava me fossilizando. Isso foi o estalo, há uns dois ou três anos, para eu voltar a procurar me manter em dia com as novidades da informática.
Bom, toda essa história terminou saindo, meio sem querer, quando eu me propus a fazer um pequeno post apenas para dizer que estou usando o Twitter. A idéia parece interessante, conquanto eu ainda me sinta, nele, meio como um "cachorro embarcado".
Quem quiser conferir, estou em: http://twitter.com/hugosegundo

terça-feira, 24 de março de 2009

Às vezes a galera abusa...

Sempre gostei de conversar sobre Direito. Por conseguinte, sempre gostei, também, de ajudar colegas de turma e, depois alunos e ex-alunos, e colegas de profissão, a resolver problemas e a solucionar dúvidas em torno de questões jurídicas.
Aliás, pelo que lembro, gosto disso desde o tempo do colégio, quando às vezes ajudava colegas a estudar certas matérias. Gostava sobretudo de física, na época.
Este blog é demonstração mais do que suficiente disso que estou dizendo.
Não raro recebo, também, e-mails de pessoas dos mais variados lugares, perguntando algo relacionado ao Direito.
E sempre os respondo, com satisfação. Por questão de tempo, algumas respostas são curtas, mas sempre as dou.
Às vezes, contudo, as pessoas forçam um pouco a barra.
Uma coisa é o aluno que envia e-mail dizendo que tem uma dúvida sobre prescrição em matéria tributária, na situação tal ou tal, narrando então caso bem específico e justificando a razão de sua dúvida. Uns até transcrevem trechos de livros nos quais pesquisaram, na tentativa de mostrar que neles não encontraram a resposta. Respondo com o maior prazer.
Mas outra coisa é o aluno que dispara: 
"Prezado Hugo,
Estudo Direito na Faculdade XXXX, e meu professor de Direito Tributário passou trabalho sobre imunidades. Por favor, mande o que tiver sobre o assunto para o meu e-mail: fulano@caradepau.com.br.
Ah, tenho urgência, pois devo entregar o trabalho depois de amanhã!
Valeu,
fulano de tal".

Putz. É muita cara de pau.
E eu ainda respondo. Não "mandando por email o material", mas dizendo à pessoa, educadamente, que o propósito do professor dela é que ELA FAÇA A PESQUISA, e que ela pode começar pelos livros tais, tais e tais, que têm muitas informações relevantes sobre o assunto.
Mas o pior é o colega advogado.
Não estou falando daquele que é seu amigo em outras circunstâncias, que ligaria para pedir a indicação de um pediatra para o filho, ou para perguntar o que você está achando do carro novo, cujo modelo ele pensa em comprar também. É claro que esse pode ligar para perguntar o que quiser. Também não falo daquele que liga para ouvi-lo sobre questão tormentosa, para a qual os livros não têm resposta, e tampouco você, mas ele apenas quer dividir suas incertezas e angústias, sem descer nos detalhes do caso ou da situação concreta, levando-lhe apenas um problema, em tese, e sem pressa. Também esse fala com você em outras circunstâncias.
Refiro-me, aqui, àquele que liga, geralmente na hora do almoço, e que faz uns dois anos que você nem via e que nem falava com você, mas que já vai metralhando, cobrando a resposta pronta e célere:
"Oi! Sabe, estou com um cliente aqui, uma empresa grande, com uma execução de XX milhões. Ela nos procurou porque sabe que há muitos anos atuamos nessa área, e temos bom relacionamento no judiciário...
Pois bem. Queremos embargar a execução, pois a dívida é descabida, mas os bens do executado talvez não sejam suficientes. E agora? Só poderia indicá-los se fossem suficientes, não é? Se não forem, não dá para fazer nada, não é? O que "vocês" têm feito em casos assim? Indicam títulos da dívida pública? Acho que vou sugerir isso para eles..."

Não sei por que há advogados que adoram dizer que têm como clientes "empresas grandes" e "questões de milhões". Acham que atraem para si a suposta importância do cliente, ou então que todos vão pensar que seus honorários serão por acaso proporcionais aos tais milhões. A auto-referência no plural, na conversa falada, e ainda por cima vindo de alguém que não tem um pingo da modéstia que quer parecer ter, também é dose. E isso para não referir o tal "bom relacionamento"...
Tudo isso eu pensava enquanto ouvia, calado. Engoli seco, olhei para meu prato de comida sobre a mesa, meu almoço interrompido por aquela ligação supinamente inoportuna, respirei fundo, e disse:
- Faz muito tempo que o STJ pacificou seu entendimento no sentido de que a penhora não precisa ser suficiente para que o executado possa opor embargos à execução fiscal... Você pode indicar bens à penhora, embargar a execução, e posteriormente proceder ao reforço, se for o caso.

A pessoa do outro lado da linha ficou um tempo em silêncio. A impressão que tive foi de que estava anotando alguma coisa, enquanto dizia: "O STJ decide assim, é? Hum... Penhora não precisa ser integral... Sei... Reforçar depois... Ahn...", e em seguida disse: "- Valeu, tchau!", e desligou.

É de lascar, a pessoa que "pega" execuções de "milhões" contra uma "empresa grande" e que atua "há anos" em processos de execução fiscal não saber do entendimento do STJ sobre o assunto, firmado pela Primeira Seção faz uns quatro anos. Mais de lascar ainda é me ligar na hora do almoço para perguntar isso sem nem ter se dado ao trabalho de olhar no meu livro, ou mesmo de dar uma pesquisada no Google, coisa que até os mais preguiçosos fazem.
Mas isso me deu uma boa idéia. Da próxima vez, quando estivesse sem tempo para responder (almoçando, por exemplo), e quando percebesse o excesso, digamos, de madeira na face de quem me estivesse dirigindo a pergunta, eu diria simplesmente que no meu livro tal, página tal, a pessoa acharia a resposta. Talvez seja meio boçal, sei lá, mas às vezes diante de um doido, só um doido e meio. Diante de um cara de pau, então...
Bom.
Eis que recebo, dias depois, a ligação de outro colega.
Situação semelhante, embora o aspecto jurídico fosse outro.
Disse que não poderia responder no momento, mas que tudo o que eu poderia dizer ao telefone estava escrito no item tal, página tal, da terceira edição do meu "Processo Tributário". E estava mesmo. Eu havia acabado de revisar a terceira - vai sair em breve a quarta - para enviar os arquivos eletrônicos à Atlas, e sabia até onde estava o assunto que ele perguntava. Disse isso a ele, que então não perdeu tempo:
- Não dá para me mandar, por e-mail, só o trecho que você está mencionando, já que você tem em meio eletrônico? E tem que ser logo, porque meu prazo acaba segunda-feira (isso era em um sábado), e não vai dar tempo para mim fazer a pesquisa no fim de semana...
Desconversei e não mandei. Mas, da próxima vez, mandarei e-mail com o seguinte anexo:


Certidão negativa e recuperação judicial

Tem sido noticiado que diversos tribunais do país têm dispensado a apresentação de certidões negativas de débito como condição para a homologação de planos de recuperação judicial (clique aqui).
É mesmo absurda a exigência de certidão. O tema, aliás, comporta interessante discussão a respeito da racionalidade que se espera das disposições normativas. Há postulado, implícito no ordenamento, de que o legislador emita prescrições racionais?!
Parece-me que sim. E esse postulado é malferido pela exigência de certidões de que se cuida, que se acha no art. 57 da Lei de Falência e de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005 - clique aqui), e no art. 191-A do CTN.

Sobre o art. 191-A do CTN, aliás, eu tive a oportunidade de anotar, no meu "Código Anotado" (clique aqui): 

Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos,  observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei . (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)
------- Anotações:------
IRRACIONALIDADE E CONTRADITORIEDADE DA DISPOSIÇÃO DO ART. 191-A – Parece-nos inteiramente contraditório, e por isso mesmo irrazoável, exigir a apresentação da certidão de quitação de todos os tributos como condição para a concessão de recuperação judicial. Isso porque uma das coisas que o requerente de uma recuperação judicial tem maior dificuldade em obter é precisamente a prova de quitação de todos os tributos, tanto que um dos efeitos da concessão de uma recuperação judicial é a “dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça as suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios...” (Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, art. 52, inciso II). Ora, como se concebe que a concessão da recuperação judicial tenha como efeito liberar o contribuinte da apresentação de certidões, mas a apresentação destas seja condição sine qua non para a concessão da recuperação? Um verdadeiro nonsense, algo como o diretor de um lar de desabrigados afirmar que um prato de comida será fornecido gratuitamente apenas aos mendigos que já estiverem alimentados, ou o diretor do posto de saúde condicionar a liberação de medicamentos à comprovação, por parte de quem os irá tomar, de que não padece da doença a ser remediada.
Pode-se entender, porém, sobretudo em função da referência ao disposto no art. 151 do CTN, que o Juiz, para conceder a recuperação, poderá determinar primeiro a suspensão da exigibilidade de eventual crédito tributário que esteja a impedir o fornecimento da certidão de quitação. Para Sacha Calmon Navarro Coelho, o juiz terá de deferir, antes, o parcelamento de que cuida o art. 155-A, §§ 3.º e 4.º do CTN, pois “se para concessão da recuperação judicial será necessária a apresentação de certidão com efeitos negativos, o parcelamento deverá anteceder o deferimento da concessão; do contrário, um impedirá o outro.” (Curso de Direito Tributário Brasileiro, 9.ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 867). No mesmo sentido: Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, São Paulo: Atlas, 2005, v.3, p. 730

***
Para quem tiver interesse no debate, o tema foi aprofundado no livro "Certidões Negativas e Direitos Fundamentais do Contribuinte", editado pela Dialética sob a coordenação de Hugo de Brito Machado (clique aqui e aqui):


Na verdade, deveria ter sido aprovada, junto com a Lei 11.101/2005, uma outra, instituindo um "parcelamento especial" para os contribuintes em processo de recuperação judicial. Assim, o contribuinte pediria a recuperação, em seu processamento o juiz dispensaria a apresentação de todas as certidões (art. 52, II), deferiria também o parcelamento especial (com o qua a empresa conseguiria todas as certidões, com amparo nos arts. 151, VI e 206 do CTN), sendo assim viável a posterior concessão da recuperação, nos termos do art. 191-A do CTN, e a homologação do plano de recuperação, nos termos do art. 57 da Lei 11.101/2005. O problema é que essa lei com o referido parcelamento não foi elaborada.
E, mesmo assim, não se pode negar o quão contraditório é dar ao processamento da recuperação o efeito de dispensar a apresentação de certidões, mas, ao mesmo tempo, exigi-las para a sua concessão. Parecem acertadas, portanto, as decisões dos TJs mencionados nas notícias que têm circulado na internet. Afinal de contas, beneficiam a própria Fazenda, pois da empresa falida seria ainda mais difícil cobrar o passivo tributário. Melhor é que se recupere mesmo. Aliás, esse é o espírito da nova legislação falimentar, que considera a função social da empresa, que deve ser preservada. O Fisco não pode matar a galinha dos ovos de ouro, ou, como se diz, derrubar a árvore para colher os frutos. Ainda mais em tempos turbulentos como os que vivemos.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Autenticar o livro?

No blog "O Jardim" (clique aqui), o Prof. Raul Nepomuceno, meu colega na Faculdade Farias Brito, trata de assuntos ligados à filosofia, de maneira leve e descontraída, sem prejuízo da seriedade. E criou, no blog, uma seção "Nos bastidores da filosofia (ou momento Nelson Rubens)", na qual cuida de detalhes da vida pessoal dos filósofos.
Além de divertidos, tais detalhes nos ajudam a perceber que eles, os filósofos, são gente como a gente. Às vezes mais esforçados. Às vezes com umas idiossincrasias a mais. Mas, mesmo assim, gente como a gente.
Eu já tinha ouvido afirmação parecida, em torno de discussões dessa natureza, do Prof. Marcelo Lima Guerra. Ele as chamava de "momento caras do mundo jurídico." Dá no mesmo.
Bom. Sob essa inspiração, resolvi contar, aqui, uma história engraçada.
Calma, Juraci, que dessa vez não é nenhuma vivida por você. Ih... Terminei dizendo quem era o Robin. Bom, deixa prá lá. O que importa é que o autor da teoria da malemolência continua ignorado.
Essa história que vou contar agora aconteceu faz muito tempo.

***

Lá pelos idos da década de 80, meu pai participava de um simpósio, juntamente com outros professores de Direito Tributário. Entre eles, o saudoso mestre Geraldo Ataliba.
Constitucionalista e tributarista de nomeada, Ataliba formou escola. A pós-graduação em Direito Tributário da PUC/SP, e mestres que lá ensinam, como Roque Carrazza, Ayres Barreto e Paulo de Barros Carvalho, por exemplo.
No Simpósio, Ataliba defendia a natureza não-taxativa da lista de serviços anexa ao DL 406/68. Ou seja, defendia que os Municípios poderiam tributar, desde que com amparo em lei municipal, qualquer serviço, por meio do ISS, e não apenas aqueles previstos na lista anexa ao tal Decreto-lei.
Meu pai defendia a tese oposta, que, por sinal, foi a que prevaleceu na jurisprudência.
Ataliba sustentava argumentos muito consistentes. Dizia que a autonomia municipal, assegurada pela Constituição, dependia da competência para instituir tributos, a qual não poderia ficar à mercê de decreto-lei - ou, hoje, de Lei Complementar, a exemplo da LC 116/2003 - da União.
Mas os argumentos da tese oposta - que não era "do meu pai", mas defendida por outros autores antes dele - eram igualmente consistentes. Fundavam-se no fato de que a própria Constituição - à qual cabe "desenhar" a federação e os limites da autonomia dos entes periféricos - havia adotado a taxatividade da lista como critério para resolver conflitos de competência entre Estados-membros e Municípios. Serviços previstos na lista, ainda quando prestados com o fornecimento de mercadorias, seriam, em regra, tributados só pelo ISS. Se não estivessem na lista, seriam tributados, quando prestados juntamente com o fornecimento de mercadorias, só com o ICMS. Essa forma de resolver o conflito entre ISS e ICMS (na época, ICM) só seria possível, obviamente, se a lista fosse taxativa.
Os debates foram acalorados, pois o Prof. Geraldo Ataliba tinha um temperamento muito forte e defendia com convicção suas opiniões. Quem conhece meu pai sabe que ele não é diferente. Mesmo assim, nutrindo um respeito reverencial por Ataliba, de quem era amigo e a quem muito admirava, meu pai não ousou discordar dele sozinho. Disse ser apenas um aluno que não tinha ainda estudos suficientes para refutar as idéias do mestre, mas que apenas suscitava a dúvida, com amparo nas lições de Aliomar Baleeiro, este sim autor respeitável e defensor da taxatividade da lista.
O Prof. Ataliba, então, apressou-se em dizer, enfaticamente:

- O Prof. Hugo leu um livro FALSIFICADO!!! F A L S I F I C A D O ! ! ! Aliomar Baleeiro nunca disse uma coisa dessas!!!

Na hora, meu pai não entendeu direito, achou que fosse brincadeira. Desconversou, e disse, dirigindo-se ao auditório, que as duas teses estavam ali bem colocadas, e que todos eram inteligentes para pensar por conta própria: independentemente do nome de quem as estivesse defendendo, poderiam tirar suas próprias conclusões, e era isso o que importava.
Acho que foi uma boa saída. Científica e diplomática.
Mas o fato é que, depois, ruminando o ocorrido, ele entendeu o sentido do "livro falsificado".
É que na época, fazia relativamente pouco tempo que Baleeiro havia morrido, e seu livro vinha sendo atualizado por outra pessoa. O Prof. Ataliba havia sugerido, portanto, que a tese defendida pelo meu pai não era adotada pelo próprio Baleeiro, mas sim que fora inserida no livro pelo atualizador. (Que coisa esse destino. Hoje sou eu, filho dele, que corro o risco de ser considerado o próprio falsário. Tenho o máximo de cuidado, por isso, para separar, do trabalho original, as minhas notas de atualização.)

Conferindo edições mais antigas, publicadas antes da morte do autor, meu pai pôde perceber que a acusação não era verdadeira. Era do próprio Baleeiro a idéia.  Seja como for, depois do ocorrido, como adultos somos só crianças grandes, meu pai não perdia uma oportunidade. Quando estava em um simpósio, nos quais geralmente há livros à venda em pequenas bancas colocadas na entrada, procurava localizar professores presentes que fossem também autores de livros colocados à venda. E procurava justamente aqueles que estavam conversando com o Prof. Ataliba, durante os intervalos. Quando os encontrava, comprava o livro correspondente (mesmo que já o tivesse, pois não poderia perder a oportunidade), interrompia o papo que mantinham com o Prof. Ataliba e lhes pedia um autógrafo, dizendo: - O Professor pode autenticar o livro pra mim, por favor?
- Autenticar, Hugo?! - Era a indagação do autor, curioso: - Autenticar por quê? Como assim "autenticar"?!
Ao que ele respondia, alto, e rindo, para que o Prof. Ataliba ouvisse: - Para depois, quando eu citar, ninguém dizer que é falsificado!

quarta-feira, 18 de março de 2009

Extrafiscalidade e escravidão

Estudar a História pode ser muito interessante. Ajuda a entender o presente com muito mais clareza. E fornece instrumentos que permitem, dentro de certos limites, prever o futuro, e alterá-lo.
No âmbito da tributação não é diferente. Muitos dos problemas enfrentados pelos que lidam com o Direito Tributário, hoje, vêm de longa data.
Só para citar um, a sonegação, sabe-se que no Brasil colonial os tributos eram pesadíssimos, e fixados sem nenhuma racionalidade ou atenção às possibilidades dos contribuintes. O parâmetro era definido pelas necessidades da Colônia.
Para que o comércio fosse tributado, criaram-se "caminhos" obrigatórios, que os navios mercantes deveriam seguir, caminhos estes nos quais havia autoridade encarregada da cobrança respectiva. Isso para que os contribuintes não tivessem de ir - durante o ciclo do ouro - às casas de fundição, distantes e cujo caminho, conhecido como "caminho do ouro", era por razões óbvias preferido pelos bandidos.
Para não pagar tais tributos, altíssimos e sem qualquer retorno, os contribuintes passavam a usar rotas alternativas. Ou outros caminhos. Daí a expressão 'descaminho'...
Outro detalhe interessante reside na extrafiscalidade.
Não é de hoje - contrariamente ao que se diz - que o Estado usa o tributo com função extrafiscal, vale dizer, com a finalidade precípua não de arrecadar, mas de estimular ou desestimular comportamentos. Não se trata de criação de um Estado intervencionista supostamente surgido apenas no Século XX.  Em 1799, havia na Bahia um imposto apenas sobre escravos de luxo, assim entendidos aqueles que trabalhavam nas casas, executando tarefas domésticas. A idéia era estimular o uso dos escravos na agricultura, onde seriam efetivamente úteis à economia, e não apenas símbolo de ostentação e instrumento de conforto para os mais ricos...

Esses - e diversos outros - detalhes da História da Tributação podem ser encontrados, por exemplo, no "Uma Introdução à Ciência das Finanças", de Aliomar Baleeiro, e ainda em diversos textos constantes do livro "Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas" coordenado por Eurico Marcos Diniz de Santi. Este último, aliás, adota forma bem diferente para expor o conteúdo, a partir de estudos de casos. Muito bom.

terça-feira, 17 de março de 2009

Código Tributário Nacional Anotado - 2.ª ed


Esgotada a primeira edição de meu "CTN anotado", lançado em 2007, acaba de ser lançada a segunda edição (clique aqui).
Antes de tratar dessa segunda edição, contudo, devo aqui esclarecer o possível leitor de que não se trata, propriamente, de um CTN anotado.
Primeiro, porque algumas notas são até longas, e têm conteúdo que não se limita a meras remissões à jurisprudência ou à doutrina. Poderia tê-las chamado de "comentários", mas preferi, para não gerar no leitor expectativas que talvez não fossem correspondidas, chamá-las "anotações".
Segundo, porque, de uma forma ou de outra, são anotações ao sistema constitucional tributário - arts. 145-156, 177 e 195 da CF/88, ao CTN e às LCs 87/96 e 116/2003. Vale dizer, notas às normas gerais de direito tributário contidas na Constituição e na legislação complementar nacional.

Agora, especificamente quanto à nova edição, nela não há grandes modificações. Não houve, como se sabe, alteração nos dispositivos do CTN, de 2007 até 2009. Entretanto, atualizei, em alguns pontos, o posicionamento da jurisprudência, que mudou (v.g., em relação à posição hierárquica dos tratados internacionais em matéria tributária - CTN, art. 98). Aproveitei ainda para inserir (e anotar) o Decreto-lei 195/1967, que trata da contribuição de melhoria, e para aprimorar alguns aspectos formais do livro destinados a facilitar a consulta (índices, cabeçalhos das páginas com o número dos artigos nelas anotados etc.)
Eu ia incluir, nesta segunda edição, também o Decreto 70.235/72, e a Lei de Execuções Fiscais, para abranger tanto a parte de direito material tributário como também, dentro do possível, algo de direito processual tributário, administrativo e judicial. Entretanto, a primeira edição acabou antes que eu pudesse terminar as anotações às tais normas. Além disso, a MP 449 alterou a composição do Conselho de Contribuintes, e ainda não foi apreciada pelo Congresso, sendo certo que se discutem ainda alterações na Lei de Execuções Fiscais. Por esses motivos todos, talvez essa parte processual fique para uma terceira edição, se houver. Ou então, quem sabe, dependendo de sua extensão, torne-se outro livro.

segunda-feira, 16 de março de 2009

MP 449/2008 debatida no âmbito da PFN/CE

Será iniciado amanhã à tarde, a partir das 14:30, um ciclo de debates sobre a MP 449/2008. Será, então, discutido o primeiro tema; os demais serão marcados para datas a serem oportunamente divulgadas.
Aproveito o espaço do blog para divulgá-lo. Estão todos convidados. O tema é relevante, e a discussão poderá render, como fruto, sugestões que poderão ser levadas em consideração pela Fazenda Nacional no diálogo mantido com o Congresso em torno da mencionada medida provisória.
Os dados do evento são os seguintes:

  CICLO DE DEBATES TRIBUTÁRIOS DA PROCURADORIA DA

 FAZENDA NACIONAL NO CEARÁ

 

 

Coordenação: Procuradoria da Fazenda Nacional no Ceará – (Luiz Dias Martins Filho- PFN-CE)

Apoio: SRFB-3ª Região Fiscal – Superintendência da Receita Federal do Brasil da 3ª Região Fiscal (Superintendente ARFB Luís Gonzaga Nóbrega)

OAB/CE – Comissão de Estudos Tributários (Erinaldo Dantas Filho e Hugo de Brito Machado Segundo)

            CRC – CE Conselho Regional de Contabilidade – CE (Osório Cavalcante Araújo- Pres. CRC-CE)

  

TEMA 1: Remissão de débitos –  Novos Parcelamentos –- Créditos inscritos em Dívida Ativa da União e créditos inscritos de natureza previdenciária – créditos ainda não inscritos em fase de cobrança na RFB. Migração de parcelamentos (art. 3º da MPv 449 de 2008) – Reconhecimento de Prescrição de ofício (art. 48 MPv nº 449/2008) – Aplicação das novas normas aos casos pendentes (art. 54 da MPv nº 449/2008).

 

1. Presidente: Dartanhan V. de Araújo e Rocha (Juiz Federal - 9ª Vara JF/CE)

2. Expositor/Mediador: Luiz Dias Martins Filho (PFN/CE)

3. Expositor/Debatedor: Hugo de Brito Machado Segundo (OAB/CE)

4. Expositor/Debatedor: Osório Cavalcante Araújo (Pres. CRC-CE)

5. Expositor/Debatedor: Maria Liduína Coelho Ribeiro (RFB-CE)

6. Expositor/Debatedor: Caubi Castelo Branco (RFB-CE)

 

[ Esse primeiro tema insere-se no contexto do “Dia Nacional da Justiça Fiscal” celebrado em Brasília-DF por meio de seminários e debates no dia 17.03.2009] 

 

LOCAL E DATA: Dia 17 de março de 2009, das 14:30 às 17:30 h, no auditório do Edifício Sede do Ministério da Fazenda em Fortaleza, situado à rua Barão de Aracati, 909, térreo. (Aberto ao Público)

 

INSCRIÇÃO: Gratuita (um quilo de alimento não-perecível - facultativo). Inscrição realizada no dia do evento, por ordem de chegada. num total de 225 vagas, O auditório será aberto a partir das 13:40 h. e no hall haverá material disponível para efetivação da inscrição. Após a participação em quatro debates será fornecido certificado.

 

Mais informações: PFN/CE, tel.: (85) 3878-3323

 

quinta-feira, 12 de março de 2009

Origem dos limites ao poder de tributar

Eu sempre creditei à Magna Carta do Rei João Sem Terra a qualificação de "o primeiro documento" que representaria o germe das Constituições atuais e, com elas, dos limites jurídicos estabelecidos ao exercício do poder de tributar.
Mas a História parece não ser mesmo formada de mudanças bruscas. Nós imaginamos essas mudanças bruscas, para melhor compreender a realidade. É o mesmo que ocorre com a Biologia, cuja suposta divisão estanque entre aves e mamíferos é problematizada pelo ornitorrinco, ou com qualquer outra parcela da realidade. As classificações são feitas pelo homem, na tentativa de simplificar a realidade e viabilizar-lhe a compreensão. Mas invariavelmente a realidade é mais complexa que as classificações, e sempre aparecem os ornitorrincos para mostrar isso.
Bom, mas esse assunto - dos ornitorrincos e das classificações - eu deixo para outro post, no qual vou tratar de imunidades tributárias. Por ora, quero falar de João Sem Terra.
 

Bem, João Sem-Terra teria assinado a Magna Carta em 1215.
Encontrei, contudo, em Aliomar Baleeiro - sim, depositei minha tese de doutorado para qualificação, e voltei, no tempo que a advocacia e a docência deixam livre, a atualizar o "Uma Introdução à Ciência das Finanças" - a seguinte referência:

Em um documento de 31.03.1091, já Afonso VI notifica a cobrança de um tributo extraordinário e alude ao consentimento dos que vão pagá-lo. (1) Mas escritores fixam nas Cortes de Leão, de 1188, o início do solene reconhecimento de que os impostos deveriam ser votados pelos delegados dos contribuintes.



(1) F. Sainz de Bujanda, Hacienda y Derecho, Madrid, Ins. Est. Polit., 1955, p. 233 e nota 105, reproduz o trecho expressivo: “Hoc autem feci cum consensu vestre voluntatis, sicut vobis bene complacuit etc.”. Ver essa obra, desde a p. 192, sobre as cortes espanholas.


Mais de cem anos antes, portanto, já havia a fixação de limites à instituição de tributos, por "delegados dos contribuintes", em Portugal, e, um pouco depois, na Espanha, ou nos reinos que deram origem ao que hoje se conhece por esses nomes. Por que será, então, que sempre se diz que o no taxation without representation de 1215 seria o ponto inicial dos modernos Estados de Direito e da limitação jurídica ao poder de tributar? Será, também aí, a mania de achar que o que vem de longe e fala inglês é melhor do que o que nos origina e fala português ou espanhol?

quarta-feira, 11 de março de 2009

Parabéns para você, nesta data querida...

Vejam a petição à qual conduz o link abaixo, e o despacho que a motivou:





Confesso que já tive vontade de fazer o mesmo. Em tom mais respeitoso, evidentemente, e em processo cuja demora ultrapassava os DEZ anos, e não apenas um, como no caso. Mas ficou só na vontade mesmo.
O interessante, contudo, é ver que a petição levou o juiz - não obstante assoberbado de trabalho - a prolatar longo, inédito e fundamentado despacho, só para puxar as orelhas do advogado. E o andamento do feito, este continuou na mesma. A parte final do despacho, "conclusos novamente", parece um "agora você vai ver, vou demorar só porque posso...." Ou não?

terça-feira, 10 de março de 2009

Ditabranda?

Criou-se uma grande confusão por conta do uso, pela Folha de São Paulo, do termo "ditabranda" para designar o período de exceção vivido pelo Brasil entre 1964 e 1986.
Não pela expressão em si - que pretende instituir um "medidor" de autoritarismo, e amenizar as coisas para o lado da ditadura militar - mas pelo debate que se sucedeu.
Vários leitores escreveram para o jornal, criticando a expressão. Entre eles, Fábio Konder Comparato.
E a resposta do jornal:
A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua "indignação" é obviamente cínica e mentirosa.
Foi essa resposta que gerou toda a confusão. E, acho, não poderia ser diferente. Um bom apanhado do caso pode ser lido no Migalhas (clique aqui)
É óbvio que no Brasil se instalou, sim, uma ditadura. Tortura. Desaparecimento. Censura. Suspensão do habeas corpus. Aumento do número de Ministros do STF... Nem é preciso dizer mais. Leitura dos livros de Elio Gaspari dá excelente idéia - para quem, pela idade, não viveu o período - do que ocorreu naqueles tempos. O fato de existirem, ou de terem existido regimes piores não autoriza a requalificação do nosso, que passaria a ser uma "ditabranda".
Mas não é esse o ponto. O problema, como disse, está na resposta dada pelo jornal, que, em vez de defender o uso da tal expressão, ou de retificá-la e admitir o equívoco, partiu para o lado pessoal. Parece que o autor da nota ficou tão indignado com a crítica que "perdeu as estribeiras".
Ao fazê-lo, contudo, incorreu, precisamente, no erro que imputa aos que o criticaram. Esse comportamento, aliás, é tão lamentável quanto comum: justificar os próprios erros com os erros dos outros.
Se o Governo do PT faz coisas erradas, e alguém critica, a defesa (emocionada) é: ora, o PSDB também fazia...
Foi o que ocorreu: Comparato não poderia falar da ditadura brasileira, sendo "cínico e mentiroso" ao fazê-lo, só porque não falou da de Cuba... O que uma coisa tem a ver com a outra? Por acaso a Folha, porque pretende abrandar a ditadura brasileira, estaria proibida de denunciar os excessos e abusos praticados pela cubana, pela soviética ou pela chinesa? Por favor.
Agora, quanto ao Comparato, a crítica do editorial revela, ainda, ignorância. Não só no sentido coloquial, mas também no sentido próprio da palavra. Isso porque ele não é defensor de ditaduras de esquerda e crítico apenas das de direita. A propósito da ditadura do proletariado, ele escreveu que ela
cedo transformou-se na real e crudelíssima ditadura do secretário-geral do Partido Comunista. E o pretendido e anunciado desaparecimento do Estado cedeu lugar à montagem do mais formidável aparelho estatal de todos os tempos. (COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 383)

Na verdade, as ditaduras, todas elas, de direita ou de esquerda, tanto faz, são muito parecidas. E devem ser combatidas, todas. Não tem essa de "ditabranda", até porque, como eu já disse em post anterior, o arbítrio é igual à cabeça que não tem ombro. Começa de forma reticente, "tomando chegada", como se diz, e, quando se percebe, a coisa não tem volta. Não é por outra razão que os dois primeiros livros de Elio Gaspari, sobre a ditadura militar, intitulam-se A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada, respectivamente. É a idéia subjacente ao belo poema “No caminho com Maiakóvski”, que não é de nenhum Maiakóvski mas sim de Eduardo Alves da Costa:
“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”

segunda-feira, 9 de março de 2009

Sim senhor, Desembargador...



Achei curiosa essa decisão do CNJ:


Concurso de promoção, remoção e permuta de magistrados. Qualidade de sentença. – “Ao se adotar, na análise da qualidade da sentença, parâmetros que se vinculam à sua confirmação, reforma parcial ou total, ou, ainda, anulação pelo Tribunal, estar-se-á privilegiando magistrados cujas sentenças tiveram reforma em menor número. Além disso, poderá compelir o magistrado de primeiro grau, que tem interesse na movimentação funcional, a seguir o entendimento adotado pelo Tribunal, no caso concreto, desrespeitando, por conseguinte, a garantia do exercício da função com liberdade e o princípio do livre convencimento motivado. Procedimento de Controle Administrativo de que se conhece e a que se julga parcialmente procedente” (CNJ – PCA 200810000017996 – Rel. Cons. Altino Pedrozo dos Santos – 76ª Sessão – j. 16.12.2008 – DJU 30.01.2009).


Pode parecer, em um primeiro momento, que um juiz que só profere decisões nulas, com cerceamento de direito de defesa, ou contrárias à jurisprudência dominante das cortes superiores, não tem o mesmo "merecimento" de um outro cujas sentenças, porque perfeitas, não são jamais anuladas ou reformadas.
Mas o remédio, aqui, pode ser pior do que a doença que pretende curar. Ou, dito de forma mais clara: o meio é visivelmente desproporcional ao fim visado, que é a (saudável, mas dificílima) aferição do merecimento. Isso porque a situação ideal que narrei dificilmente aconteceria na prática, sendo, além disso, complicado eleger a corte de apelação como tribunal supremo da correção das sentenças, para fins de promoção. A vinculação do juiz ao tribunal é administrativa, e não relativa ao mérito de suas decisões.
Um bom critério talvez seja o número de sentenças, ou de decisões. A quantidade de processos conclusos. Ou ainda o "fluxo" da vara, se positivo ou negativo, vale dizer, se a vara recebe mais processos que julga, ou julga mais processos que recebe (desde que todos os juízes de cujo merecimento se cogita tenham recebido em média os mesmos números).
Deve-se reconhecer que todo critério pode levar a resultados indesejáveis. A questão é ponderar qual é o menos propenso a isso.
Adotar o número de decisões proferidas como critério, sem exame do conteúdo destas, não raro leva a juízes que insistem em extinguir cautelares sem julgamento de mérito (proferindo assim "sentenças"), por entenderem que o instrumento certo seria "ordinária com antecipação de tutela". Ou em extinguir MS afirmando cabível ação de conhecimento de rito ordinário. Afinal, com pouco trabalho, elabora-se mais uma sentença, que entra para a estatística, o que não aconteceria se o juiz proferisse despacho determinando a emenda da inicial ou simplesmente relevasse alguma irregularidade formal irrelevante e adentrasse no (mais trabalhoso) mérito. Leva ainda o juiz a privilegiar processos simplórios, e a colocar embaixo da pilha aqueles mais complicados. Afinal, a sentença que exigiu meia hora de atenção contará o mesmo número de pontos daquela que levou uma semana para ficar pronta.
Mas, apesar disso, adotar como critério o número de decisões confirmadas parece ser pior, pois isso induz o juiz a seguir cegamente a orientação do tribunal. Afinal, ele também é humano. Não está preocupado só em ajudar os outros, mas também com a própria carreira. Uns têm mais a primeira preocupação. Outros, a segunda. E em diferentes graus, como em uma grayscale. Há os pretos, os vários tons de cinza, e os brancos. Mas todos as têm. E não seria razoável exigir que não tivessem, pelo menos um pouquinho.
Não que o juiz deva ser rebelde à Corte de Apelação. Ele deve, em verdade, seguir seu convencimento, e é claro que a existência de jurisprudência (como de doutrina, como de disposições legais) é um ponto a ser considerado. Às vezes as "independências" de alguns juízes só servem para dar às partes o trabalho (e o custo, e o tempo) de recorrer. Umas soam mais como cabeça dura mesmo. Mas em muitos outros casos não. E o preço a pagar pela correção de um ou outro cabeça dura - que quando é cabeça dura mesmo manda o tribunal às favas e não se importa com promoção - terminaria saindo muito alto, muito mais do que aguentá-los todos.
Aliás, não se pode esquecer que, não raras vezes, as Cortes de Apelação não seguem a jurisprudência das Cortes Superiores. São cabeças-dura também. TRFs ou TJs que conhecem a orientação do STJ e do STF, mas simplesmente não a seguem. Nesse caso, é ainda mais irrazoável impor ao juiz a subserviência ao tribunal...
Por tudo isso, a decisão do CNJ, que abriu este post, pareceu-me não só um estímulo para pensar em tão delicado tema, mas, além disso, uma forma acertada de tratá-lo.

sexta-feira, 6 de março de 2009

IRPF e dedução de gastos com educação

A imprensa local noticiou que o MPF ajuizou ação na qual discutia a constitucionalidade dos limites legalmente impostos à dedução de despesas com educação, na apuração do imposto de renda devido por pessoas físicas. O pedido foi julgado procedente, e transitou em julgado. A polêmica, agora, gira em torno do cumprimento da sentença pela Receita Federal.
Fui procurado - pelo telefone - e dei alguns esclarecimentos que foram usados em matéria publicada hoje sobre o assunto (clique aqui). Dentro do possível, considerando que se tratou de um rápido contato telefônico, a matéria está fiel ao que eu disse, embora, aqui e ali, tenha trocado alguns termos técnicos. Mas, lendo-a, não a considerei inteiramente fiel ao que eu penso. Não por culpa do jornalista, mas, talvez, por conta de aspectos que talvez não tenham sido suficientemente enfatizados por mim.
Parece que sou contra o direito postulado pelo MP, no mérito, o que não é o caso.
Na verdade, parece-me que a jurisprudência do STF não reconhece legitimidade ao MP para discutir a validade da cobrança de tributos, e os aspectos desta cobrança. Além disso, realmente, não é possível, em face do art. 151, I, da CF, os contribuintes do IR somente no Estado do Ceará terem tratamento diverso daquele conferido à generalidade dos brasileiros. Mudar o domicílio para cá será um excelente planejamento tributário...
Além disso, esse é o dado mais importante, a reportagem era dedicada ao público leigo em geral, para o qual dizer que a sentença proferida em favor do MPF "está valendo" poderia trazer grande confusão. Afinal, como fazer então a declaração, já que o programa automaticamente aplica os tais limites? Minha sugestão - que não constou da matéria - foi no sentiddo de que o contribuinte declarasse todos os gastos, se submetesse ao limite, e em seguida, a depender de como as coisas se resolvam, postule restituição ou proceda a retificação da DIRPF.
Mas, repito, tudo isso não quer dizer que, no mérito, eu discorde do MP. Não discordo. Realmente, é inválido o limite para a dedução de gastos com educação, sobretudo quando fixado em patamar tão baixo, como é o caso. Só que esse seria um assunto a ser resolvido pelo STF, em ADI...

terça-feira, 3 de março de 2009

Exame de Ordem, IPVA e veículos importados

A segunda fase do exame de Ordem da OAB/SP, para quem escolheu Direito Tributário, trazia a seguinte questão:

"Sônia, domiciliada em Limeira – SP, adquiriu, em meados de 2007, um veículo automotor importado. No início de 2008, foi notificada a efetuar o pagamento do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) à alíquota de 6% sobre o valor venal do bem. Entretanto, ao consultar a legislação aplicável, Sônia constatou que as alíquotas do imposto variavam da seguinte forma: I – 1% para veículos de carga com lotação acima de 2.000 kg, caminhões-tratores, micro-ônibus, ônibus e tratores de esteira, de rodas ou mistos; II – 2% para ciclomotores, motocicletas, motonetas, quadriciclos e triciclos; III – 3% para automóveis, caminhonetes, caminhonetas e utilitários; e IV – 6% para os veículos relacionados no inciso anterior, de fabricação estrangeira. Assim, por considerar indevida a cobrança, Sônia requereu à autoridade fazendária — delegado tributário da receita estadual — a aplicação da alíquota de 3%. Em setembro de 2008, foi proferida decisão que indeferiu o pedido de Sônia, sob o argumento de que a aplicação da alíquota de 6% está em consonância com o princípio da capacidade contributiva".

Fiquei satisfeito por ver que, quem tivesse levado meus livros, teria feito uma boa prova.

No "CTN Anotado", por exemplo, consta, em nota ao art. 150, II, da CF/88:

ISONOMIA E A TRIBUTAÇÃO DOS VEÍCULOS IMPORTADOS – Contribuintes proprietários de dois veículos equivalentes (finalidade, categoria, potência etc.), não podem ser discriminados por meio de alíquotas diferenciadas de IPVA apenas porque um dos veículos é nacional, enquanto o outro é importado (STF, AI 340.688/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 20/3/2002, DJ de 2/5/2002, p. 32). A discriminação entre nacionais e importados há de ser feita, se for o caso, pelo imposto de importação (CF/88, art. 153, I). Ver nota ao art. 152 da CF.

E, em nota ao art. 152:

1. IPVA E TRIBUTAÇÃO MAIS GRAVOSA PARA VEÍCULOS PROCEDENTES DO EXTERIOR – “Se o artigo 152 da Constituição Federal estabelece a isonomia tributária, impedindo tratamento diferenciado dos contribuintes em razão da procedência e destino de bens e serviços, vinculando Estados e Municípios, não se pode conceber que a alíquota do IPVA seja uma para os veículos de procedência nacional e outra, maior, para os importados. Na verdade, o tratamento desigual apenas significa uma nova tributação pelo fato gerador do imposto de importação, já que nenhuma diferença se pode admitir em relação aos atos de conservação de vias entre veículos de nacionalidades distintas.” (STF, Agravo 203.845, Rel. Min. Néri da Silveira, decisão monocrática publicada no DJ de 07/12/1998, mantida por acórdão publicado no DJ de 03/12/1999). No mesmo sentido: STF, AI 340.688/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 2/5/2002; RE 293.957/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 27/6/2003, p. 85).

No "Direito Tributário e Financeiro", por sua vez, consta, no capítulo dedicado às limitações constitucionais ao poder de tributar:

Encerrando a seção das limitações ao poder de tributar, o art. 152, dirigido especificamente a Estados, Distrito Federal e Municípios, assevera ser-lhes vedado estabelecer diferença tribuária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino. O objetivo da proibição é o de evitar que estes estabeleçam, dentro do território nacional, pequenas “aduanas” ou “alfândegas”, dando tratamento mais gravoso a produtos que tenham origem x, e menos gravoso àqueles que tenham origem y. Essa diferenciação, quando cabível, somente pode ser feita pela União.
Com base nessa disposição, o STF já considerou inválidas leis estaduais que estabelecem alíquotas de IPVA mais elevadas para veículos importados. “Se o artigo 152 da Constituição Federal estabelece a isonomia tributária, impedindo tratamento diferenciado dos contribuintes em razão da procedência e destino de bens e serviços, vinculando Estados e Municípios, não se pode conceber que a alíquota do IPVA seja uma para os veículos de procedência nacional e outra, maior, para os importados. Na verdade, o tratamento desigual apenas significa uma nova tributação pelo fato gerador do imposto de importação, já que nenhuma diferença se pode admitir em relação aos atos de conservação de vias entre veículos de nacionalidades distintas.” (STF, Agravo 203.845, Rel. Min. Néri da Silveira, decisão monocrática publicada no DJ de 07/12/1998, mantida por acórdão publicado no DJ de 03/12/1999). No mesmo sentido: STF, AI 340.688/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 2/5/2002; RE 293.957/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 27/6/2003, p. 85).
Se o Estado pretende exigir IPVA mais elevado de veículos luxuosos, de preço também mais alto, essa é uma outra questão. Está, evidentemente, autorizado a fazê-lo, mas de modo uniforme para veículos importados e nacionais, até porque entre estes, convém não esquecer, também há os caros e luxuosos, assim como existem importados de preço mais baixo e proposta popular. O que não podem, de acordo com o STF, é estabelecer a origem – importado ou nacional – como o elemento diferenciador, distintivo, em face do qual se exige imposto mais alto. Do contrário, como observou o STF, tem-se verdadeiro “adicional” do imposto de importação, que os Estados não têm competência para instituir.


E, no capítulo dedicado ao IPVA:

Note-se que a diferenciação na fixação das alíquotas deve tomar como parâmetro o tipo de veículo ou sua finalidade (alíquotas mais baixas para ambulâncias, táxis, ônibus escolares etc., e alíquotas mais elevadas para carros esportivos, ou luxuosos, por exemplo), e não a sua origem ou procedência (nacionais ou importados). O STF considera inválida, por desrespeito ao art. 152 da CF/88, a lei estadual que discrimine veículos importados e nacionais, para fins de incidência do IPVA. O papel de discriminar nacionais e importados é do imposto de importação. Cabe ao Senado Federal estabelecer alíquotas mínimas a serem adotadas pelos Estados (CF/88, art. 155, § 6o, I).


Quanto ao direito material, portanto, a fundamentação da peça está toda aí.

Quanto à peça, parece-me que a questão "pedia" um MS, pois indica a autoridade coatora, a questão é meramente de direito (não há controvérsia fática) e a parte deseja celeridade.
Não se há que falar em prazo para a impetração, no caso, porque a lesão ao direito da impetrante é "continuada", vale dizer, renova-se a cada ato material de cobrança. Aliás, considerando-se que os atos materiais de cobrança, no caso da questão, só terão início depois do julgamento da impugnação que ela apresentou, pode-se mesmo entender que o MS seria preventivo em relação a estes. Diante da decisão administrativa, a impetrante está em vias de sofrer a cobrança do imposto calculado pela alíquota inconstitucional.
Quanto a esse ponto, no "Processo Tributário" explico:

"Caso o mandado de segurança destine-se a impugnar o ato de lançamento, ou a decisão final do processo administrativo de controle de legalidade que o manteve, a autoridade impetrada será aquela competente para determinar a cobrança do crédito tributário respectivo. A Súmula 59 do extinto TFR, a propósito, dispõe: “a autoridade fiscal de primeiro grau que expede a notificação para pagamento do tributo está legitimada passivamente para a ação de segurança, ainda que sobre a controvérsia haja decisão, em grau de recurso, de Conselho de Contribuintes”.

Na minha opinião, contudo, os candidatos que fizeram ação anulatória, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, não podem ser considerados "errados". Sempre que cabe MS, cabe também anulatória. Um pode ser mais adequado, por ser mais célere (embora, na prática, os que já advogam sabem, essa maior celeridade nem sempre ocorra), mas isso não significa que o outro seja "errado". Tanto não é errado que, se se tratasse de situação real, a parte que ajuizasse anulatória com pedido de antecipação de tutela teria o mesmo êxito daquela que escolhesse o MS, e talvez até mesmo no mesmo tempo (dependendo dos juízes para os quais fossem distribuídas, talvez até antes)... No processo tributário, a respeito, escrevi:

"Exatamente porque comporta ampla dilação probatória, a ação de conhecimento, de rito ordinário, é instrumento mais amplo que o mandado de segurança para a discussão da validade do crédito tributário. Na ação anulatória, portanto, podem ser discutidos os mesmos lançamentos que seriam judicialmente impugnáveis em sede de mandado de segurança, além de outros que demandem dilação probatória, ou se tenham consumado há mais de 120 dias. Como há condenação do vencido no pagamento de honorários advocatícios de sucumbência, e pagamento de custas mais elevadas (especialmente nas Justiças dos Estados-membros), a ação anulatória pode tornar mais onerosa a discussão judicial do crédito tributário, ponto que também deve ser levado em consideração quando de sua escolha pelo contribuinte."

Crise, ajuda governamental e demissões

Tem sido noticiada a crítica do Presidente da OAB às empresas que procederam a demissões mesmo depois de terem recebido ajuda do Poder Público (clique aqui). A esse respeito, a Raquel já havia publicado pequeno texto sobre o assunto, no Diário do Nordeste de 19/1/2009 (clique aqui).
Os empresários defendem-se dizendo que não é razoável manter um corpo de funcionários necessários para uma produção que atenda a demanda de X, quando essa demanda está reduzida a X/2, por exemplo. Seriam obrigados a manter funcionários ociosos.
É verdade. Não é razoável obrigá-los a manter empregados ociosos.
Mas qual seria a razão, então, para o Governo os ajudar? Usando o mesmo argumento, é razoável que o Governo use recursos públicos para socorrer empreendimentos privados, se a única conseqüência desse socorro é evitar que seus detentores tenham perdas?

É preciso lembrar que vivemos em uma sociedade capitalista, que privilegia a livre iniciativa, e que por isso mesmo todos temos o direito de exercer uma atividade econômica, arcando com os riscos a ela inerentes e ficando, em contrapartida, com o lucro eventualmente obtido. Tal como Churchill disse a respeito da democracia, pode-se dizer também da liberdade de iniciativa que ela até pode ser ruim, mas seguramente é melhor que a alternativa. Quem duvidar que leia 1984, de Orwell, ou, caso pense que se trata de mera ficção, que veja o relato "Escolhi a liberdade", de Victor Kravchenko (3.ed. Tradução de Maria Helena Amoroso Lima Senise. Rio de Janeiro: Editora A Noite).

Amartya Sen, de forma notável, destaca que ser
"genericamente contra os mercados seria quase tão estapafúrdio quanto ser genericamente contra a conversa entre pessoas (ainda que certas conversas sejam claramente infames e causem problemas a terceiros – ou até mesmo aos próprios interlocutores). A liberdade de trocar palavras, bens ou presentes não necessita de justificação defensiva com relação a seus efeitos favoráveis mais distantes; essas trocas fazem parte do modo como os seres humanos vivem e interagem na sociedade (a menos que sejam impedidos por regulamentação ou decreto). (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 21.)

Confirmando a observação de Sen, os livros que referi, de Orwell e Kravchenko, narram situações bastante ilustrativas da relação entre proibir trocas e proibir também conversas, e do quanto isso pode ser estapafúrdio. Por isso, o Estado não deve intervir na economia, em regra, senão para garantir a própria livre iniciativa (ao maior número de pessoas possível, e não apenas aos "grandes"), e para manter o equilíbrio entre a preservação da livre iniciativa e a promoção de outros valores igualmente caros, como a proteção do meio ambiente, a valorização do trabalho etc. É o que consta do art. 170 de nossa Constituição.

Se a economia vai bem, e os agentes econômicos lucram, ótimo. Pagam tributos por isso, mantendo o Estado ao qual cabe, pelo menos em tese, organizar uma estrutura que garanta às pessoas igualdade de oportunidades no âmbito dessa livre competição (v.g., oferecendo-lhes saúde, educação etc.).

Se a economia vai mal, e os agentes econômicos têm prejuízos, isso é ruim. Não só para eles, que devem estar preparados para o risco (o qual envolve não apenas a possibilidade de ganhos, mas também de perdas), mas para os empregados e para a sociedade em geral.

Nesse contexto, a principal razão para o Poder Público oferecer ajuda - com dinheiro público! - a empresas em dificuldades é mitigar ou minimizar os males PARA A SOCIEDADE que a ruina do empreendimento poderia trazer: as demissões, o desemprego etc.

Se o empresário recebe a ajuda do governo, e ainda assim demite seus empregados, a ajuda não estará sendo usada para evitar os efeitos maléficos do insucesso do empreendimento para a sociedade, mas para garantir que o empresário não sofra os efeitos desse insucesso, que, de resto, é inerente ao risco da atividade que exerce. Não tem, em suma, o menor sentido.