Ademar Mota da Silva, médico, prestou serviços para o Hospital Santa Felicidade durante os anos de 2004 e 2005. Não recebeu, contudo, os honorários que havia acordado, o que motivou a propositura de ação judicial.
Seus pedidos foram julgados procedentes, e, em 2007, Ademar Mota recebeu do Hospital os honorários devidos. O imposto de renda foi descontado na fonte, e, além disso, Ademar incluiu esses rendimentos em sua declaração de ajuste relativa àquele ano-base.
Qual não foi sua surpresa, contudo, quando, meses depois, recebeu auto de infração, lavrado por auditor fiscal da receita federal, no qual se lhe exigiam os acréscimos moratórios (juros SELIC) e a multa por descumprimento de obrigação acessória. O Hospital sofreu auto de infração análogo, relativamente ao imposto de renda retido na fonte.
A fundamentação, em suma, era a seguinte: como reconhecido na sentença proferida na ação movida por Ademar Mota, os rendimentos deveriam ter sido pagos em 2004 e 2005, pelo que tanto Ademar Mota como o Hospital deveriam tê-los incluído na declaração de imposto de renda referente a esses anos, submetendo-os à tributação desde então. Não poderiam tê-los incluído apenas na declaração relativa ao ano do efetivo pagamento.
É claro que um auto de infração assim, de tão disparatado, nem é lavrado por auditores fiscais. E, se fosse, seria facilmente desconstituído na via administrativa mesmo, ou, quando muito, judicialmente, em sede de embargos à execução fiscal. Afinal, o fato gerador do imposto de renda é o recebimento dos rendimentos, ocorrendo na data em que estes são creditados ou por qualquer meio postos à disposição do contribuinte. Antes disso, não se poderia exigir dele, nem da fonte, que tributassem ou declarassem o que quer que fosse. O mesmo pode ser dito do ICMS, que é devido a partir de quanto a mercadoria efetivamente sai do estabelecimento comercial, e não a partir de quando se celebra contrato segundo o qual ela deveria ser remetida.
O problema, em relação às contribuições previdenciárias, é que a lei - inconstitucionalissimamente - determina o contrário. E, para completar, a constituição do crédito tributário e sua execução acontecem, não raro, de forma... digamos... pouco ortodoxa, o que torna mais difícil o controle de sua validade.
***
Esse post já estava pronto, apenas com o conteúdo que se segue abaixo, quando resolvi fazer a introdução que o leitor acaba de ler. Acredito que ela torna mais claro o que pretendo demonstrar aqui.
***
Nem vou aqui comentar a execução de contribuições previdenciárias no âmbito da Justiça do Trabalho, algo que me parece fruto de desprezo às lições de Locke e Montesquieu. Afinal, como se sabe, em tais circunstâncias o Juiz do Trabalho declara que o fato gerador ocorreu, lança a contribuição previdenciária correspondente, executa a quantia por ele lançada e julga os embargos eventualmente opostos pelo executado. Embora a violação à separação de poderes pareça clara, não vou comentá-la aqui. Pretendo examinar apenas algumas anomalias constantes de uma recente Medida Provisória (MP 449/2008), que procura sedimentar orientação que já vinha sendo seguida mesmo antes dela.
Trata-se do art. 43 da Lei 8.212/91, que passou a dispor:
"Art. 43. (...)
§ 1.º Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados em que não figurarem, discriminadamente, as parcelas legais relativas às contribuições sociais, estas incidirão sobre o valor total apurado em liquidação de sentença ou sobre o valor do acordo homologado.
§ 2.º Considera-se ocorrido o fato gerador das contribuições sociais na data da prestação do serviço.
§ 3.º As contribuições sociais serão apuradas mês a mês, com referência ao período da prestação de serviços, mediante a aplicação de alíquotas, limites máximos do salário-de-contribuição e acréscimos legais moratórios vigentes relativamente a cada uma das competências abrangidas, devendo o recolhimento das importâncias devidas ser efetuado até o dia dez do mês seguinte ao da liquidação da sentença ou da homologação do acordo.
(...)
§ 5.º O acordo celebrado após ter sido proferida decisão de mérito não prejudicará ou de qualquer forma afetará o valor e a execução das contribuições dela decorrentes."
Destaco, sobretudo, os parágrafos segundo e quinto.
Não é possível determinar que o "fato gerador" das contribuições previdenciárias "considera-se ocorrido" na data da prestação do serviço, quando a remuneração, evidentemente, não ocorreu nessa data (tanto que motivou a propositura da reclamação trabalhista).
Na verdade, a disposição destina-se a que a contagem dos juros retroaja à data da prestação do serviço, em vez de ter como início a data do pagamento da remuneração correspondente. Assim, se o empregado recebe, hoje, em face de decisão da Justiça do Trabalho, R$ 10.000,00, as contribuições incidentes sobre esse valor serão calculadas como se o pagamento ao empregado tivesse ocorrido anos antes, quando da prestação do serviço correspondente.
Tal disposição, porém, além de contrariar a lógica, impacta a Constituição, cujo artigo 195 é claro ao determinar que o âmbito constitucional de incidência de tais contribuições é o PAGAMENTO. Tanto que, se não há pagamento (v.g., serviço voluntário), não há contribuição. Se o fato gerador é o pagamento, é evidente que ele só pode ser considerado ocorrido na data em que esse pagamento acontece.
A exigência da contribuição, no caso aqui comentado, seria tão absurda quanto exigir de uma empresa, condenada no plano cível a remeter algumas mercadorias a um de seus clientes (v.g., em virtude de ação que discute cláusulas do contrato de fornecimento de produtos), a recolher o ICMS calculado sobre essa remessa como se ela tivesse ocorrido na data reclamada pelo autor, anos antes da propositura da ação. A rigor, a remessa ocorreu somente agora, pelo que o imposto tambem somente agora é devido; a data da efetiva remessa (e não aquela na qual ela deveria ter ocorrido) é o termo inicial dos juros - e de qualquer outro encargo moratório.
A outra contradição, do parágrafo quinto, está ligada à primeira: de acordo com ele, se o empregado ganha em primeira instância, mas faz acordo antes do julgamento do recurso, as contribuições devem ser calculadas sobre o valor determinado na sentença, e não sobre o valor efetivamente recebido pelo empregado em face do acordo. O fato gerador, contraditoriamente, agora passa a ser a "condenação judicial", e não o serviço e nem o pagamento da remuneração. Não parece haver coerência.
Ora, o fato gerador da obrigação de recolher as contribuições previdenciárias é o pagamento. É só a partir dele que a contribuição se faz devida. E se ele ocorre em valor menor, em face de acordo, é sobre esse valor menor que ela deve ser calculada. Afinal, como diria o Prof. Geraldo Ataliba, a base de cálculo nada mais é do que o “aspecto dimensível” da hipótese de incidência tributária. Se esta é o pagamento, a base de cálculo não pode ser nada diverso do valor deste.