Criou-se uma grande confusão por conta do uso, pela Folha de São Paulo, do termo "ditabranda" para designar o período de exceção vivido pelo Brasil entre 1964 e 1986.
Não pela expressão em si - que pretende instituir um "medidor" de autoritarismo, e amenizar as coisas para o lado da ditadura militar - mas pelo debate que se sucedeu.
Vários leitores escreveram para o jornal, criticando a expressão. Entre eles, Fábio Konder Comparato.
E a resposta do jornal:
A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua "indignação" é obviamente cínica e mentirosa.
Foi essa resposta que gerou toda a confusão. E, acho, não poderia ser diferente. Um bom apanhado do caso pode ser lido no Migalhas (clique aqui)
É óbvio que no Brasil se instalou, sim, uma ditadura. Tortura. Desaparecimento. Censura. Suspensão do habeas corpus. Aumento do número de Ministros do STF... Nem é preciso dizer mais. Leitura dos livros de Elio Gaspari dá excelente idéia - para quem, pela idade, não viveu o período - do que ocorreu naqueles tempos. O fato de existirem, ou de terem existido regimes piores não autoriza a requalificação do nosso, que passaria a ser uma "ditabranda".
Mas não é esse o ponto. O problema, como disse, está na resposta dada pelo jornal, que, em vez de defender o uso da tal expressão, ou de retificá-la e admitir o equívoco, partiu para o lado pessoal. Parece que o autor da nota ficou tão indignado com a crítica que "perdeu as estribeiras".
Ao fazê-lo, contudo, incorreu, precisamente, no erro que imputa aos que o criticaram. Esse comportamento, aliás, é tão lamentável quanto comum: justificar os próprios erros com os erros dos outros.
Se o Governo do PT faz coisas erradas, e alguém critica, a defesa (emocionada) é: ora, o PSDB também fazia...
Foi o que ocorreu: Comparato não poderia falar da ditadura brasileira, sendo "cínico e mentiroso" ao fazê-lo, só porque não falou da de Cuba... O que uma coisa tem a ver com a outra? Por acaso a Folha, porque pretende abrandar a ditadura brasileira, estaria proibida de denunciar os excessos e abusos praticados pela cubana, pela soviética ou pela chinesa? Por favor.
Agora, quanto ao Comparato, a crítica do editorial revela, ainda, ignorância. Não só no sentido coloquial, mas também no sentido próprio da palavra. Isso porque ele não é defensor de ditaduras de esquerda e crítico apenas das de direita. A propósito da ditadura do proletariado, ele escreveu que ela
cedo transformou-se na real e crudelíssima ditadura do secretário-geral do Partido Comunista. E o pretendido e anunciado desaparecimento do Estado cedeu lugar à montagem do mais formidável aparelho estatal de todos os tempos. (COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 383)
Na verdade, as ditaduras, todas elas, de direita ou de esquerda, tanto faz, são muito parecidas. E devem ser combatidas, todas. Não tem essa de "ditabranda", até porque, como eu já disse em post anterior, o arbítrio é igual à cabeça que não tem ombro. Começa de forma reticente, "tomando chegada", como se diz, e, quando se percebe, a coisa não tem volta. Não é por outra razão que os dois primeiros livros de Elio Gaspari, sobre a ditadura militar, intitulam-se A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada, respectivamente. É a idéia subjacente ao belo poema “No caminho com Maiakóvski”, que não é de nenhum Maiakóvski mas sim de Eduardo Alves da Costa:
“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”
Um comentário:
Nesse debate constatei que alguns interlocutores incorreram numa estrutura argumentativa baseada no maniqueísmo e na contabilidade perversa.
Maniqueísmo porque dividiram o debate entre “a nossa ditadura” e “a outra ditadura”. Indiretamente, a pretensão era transmitir a idéia que um lado não foi tão "duro" assim. Ora, não há ditaduraS, quanto menos “branda”. Há ditadura. Sendo este regime pautado pelo uso da violência no controle e no estrangulamento da ocupação da seara pública pelo cidadão. A questão negligenciada (e de propósito) é que toda ditadura possui a mesma base, a violência. Esta é instrumental, logo, não possui caráter ético, nesse sentido, não é critério de justificação de suposta "brandura" ou "dureza".
A violência é tanto a prova da ilegitimidade do regime como a razão de seu ocaso. Sem delongas, o problema do debate está na sua origem, que partiu da premissa que é possível graduar a violência e inseri-la num debate ético. De fato, o que se observou foi um discurso retórico e ideológico em detrimento da racionalidade.
Entretanto, o que mais me espantou foi a contabilidade perversa. Adotada, inclusive por articulistas de outros grandes jornais e revistas, consistia em acusar “a outra ditadura” de ter matado muito mais. A partir daí, segui-se mútuas acusações do tipo: a ditadura X matou centenas, mas a sua exterminou milhares etc. Alguns artigos chegaram ao despropósito de contabilizar mortes com base em dados per capita, linha cronológica, tipo de morte etc. Francamente, é um argumento totalmente desprovido de caráter ético. Como se um menor número de homicídios pudesse justificar alguma coisa.
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