segunda-feira, 25 de maio de 2009

E ele cheirou o colchão?!


Faz uns meses, eu dava aulas de "Processo Judicial Tributário" para uma turma de pós-graduação na Universidade de Fortaleza. Sua maioria era de fiscais da SEFAZ-CE. Depois de alguns dias de aula, quebrado o gelo inicial e estabelecido um bom relacionamento entre professor e alunos, um deles veio me perguntar se era verdade uma história que circulava pela SEFAZ, que teria ocorrido entre o meu pai e um auditor. Uma história de um colchão...
Eu ri, e pedi a ele que me narrasse o tal acontecimento, para que eu pudesse dizer algo a respeito.
Aproveito o ensejo para dizer que, desde então, tenho usado esse exemplo quando vou explicar aos alunos de "Tributário I", na graduação, a diferença entre isenção e não-incidência.

***

Há muito tempo, uns 20 anos no mínimo, meu pai dirigia (se bem me lembro, uma D-20 azul) em direção a Parajuru, local onde temos uma casa de praia e que fica a uns 120 km de Fortaleza. No caminho, passou por um posto fiscal, da SEFAZ, e foi parado.
O carro estava cheio, tanto de pessoas como de coisas. Era sexta-feira de carnaval, e todos iriam passar vários dias na praia.
Depois de passar os olhos pelo porta-malas do carro, o fiscal implicou com um colchão que ia amarrado em cima do carro:
F - Onde está a nota fiscal desse colchão?
HBM - Não tenho.
F - Como assim não tem? O senhor não pode transportar mercadoria desacompanhada de nota fiscal! Terei de autuá-lo, e de apreender esse colchão.

Meu pai respirou fundo, olhou para o braço do fiscal, e disse:
HBM - Onde está a nota fiscal desse seu relógio?
F - O quê? Nota fiscal? Não tenho... Mas... Mas...
HBM - "Mas mas" coisa nenhuma. É a mesma coisa do meu colchão. Não tem nenhum colega seu por ai para autuá-lo e apreender seu relógio?
F- Eh...
HBM - Na verdade, meu filho, tem-se aí uma evidentíssima hipótese de NÃO-INCIDÊNCIA, pois tanto o meu colchão como o seu relógio não são mercadorias. O colchão é para uso pessoal, e aliás já está bastante usado. Mercadoria é o que se produz para vender ou o que se compra para revender, conceito no qual não se encaixa nenhum desses dois objetos, como acontece também com seu sapato, com seus óculos, com sua camisa, e até com a sua cueca, bens dos quais o Sr. certamente também não mais possui qualquer tipo de nota fiscal.

O fiscal ficou meio errado, e tentou emendar:
F - O Sr. parece que sabe alguma coisa de Direito Tributário, e talvez até esteja certo. Vou liberá-lo, mas fique sabendo que não consta na legislação nenhuma referência expressa a tais hipóteses como sendo de "não-incidência"...

A emenda foi pior do que o soneto, e até fez com que meu pai incluísse no "Curso de Direito Tributário", em seguida, a seguinte passagem, que negritei para melhor identificação:

“A não incidência configura-se em face da própria norma de tributação, ou norma descritora da hipótese de incidência do tributo. Esta norma descreve a situação de fato que, se e quando realizada, faz nascer o dever jurídico de pagar o tributo. Tudo o que não esteja abrangido por tal descrição constitui hipótese de não incidência tributária. Em outras palavras, tudo que não é hipótese de incidência tributária é, naturalmente, hipótese de não incidência tributária. Objeto, pois, da não incidência são todos os fatos que não estejam abrangidos pela própria definição legal da hipótese de incidência.

O legislador muitas vezes trata como de não incidência casos de isenção e isto tem efetivamente ensejado dúvidas intermináveis. Assim é que alguns agentes do fisco, por absoluta ignorância, só reconhecem situações de não incidência diante de regra jurídica expressa. O equívoco é evidente. Não se há de exigir uma regra indicando casos de não incidência. Basta a existência de regra jurídica definindo a hipótese de incidência, isto é, a hipótese que, se e quando concretizada tornará devido o tributo, e tudo que como tal não esteja definido será, obviamente, hipótese de não incidência.

Existem, todavia, situações em que poderiam ser suscitadas dúvidas a propósito da configuração, ou não, da hipótese de incidência tributária. Nestas situações o legislador, espancando as dúvidas, diz expressamente que o tributo não incide. São hipóteses de não incidência juridicamente qualificada. A lei, nestes casos, exerce função simplesmente didática, preventiva de litígios. A rigor, mesmo sem a norma que afirma a não incidência, ela estaria configurada. É o caso, por exemplo, das operações das quais decorre a transferência de propriedade do estabelecimento industrial, comercial ou de outra espécie, nas quais o imposto não incide porque não existe circulação de mercadorias, mas a lei, para evitar dúvidas, explicita essa não incidência.” (Hugo de Brito Machado, Curso de Direito Tributário, 21ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 200, grifou-se)



Em edições mais recentes, atendendo ao pedido de uma ex-aluna, agente do fisco e professora de direito tributário (que dizia ser alvo de brincadeiras de seus alunos por conta da expressão negritada), ele amenizou a pena. Disse "... alguns agentes do fisco, por desconhecerem a distinção entre isenção e não incidência, ...". Mas quem tiver edições anteriores (19.ª, 20.ª...), poderá conferir.

Voltando à história, os fiscais que me lembraram dela no curso, conforme contei no início do post, perguntaram sobre a veracidade de uma série de "variações" existentes.
Em uma delas, o fiscal teria iniciado a lavratura do auto e, ao pedir os documentos do meu pai e identificá-lo, teria dito: "- Estudei pelo livro do senhor!", ao que teria ouvido como resposta: "- É mesmo? Pois não parece." Em outra variação, meu pai não teria dado essa resposta, mas o fiscal teria ido buscar dentro do posto o exemplar, para que fosse autografado. E, numa terceira, para provar que o colchão era usado, o fiscal teria sido obrigado a cheirá-lo.
Ri muito dessas variações, que confirmam que "quem conta um conto aumenta um ponto". Mas não lembro se são verdadeiras. Acho que não. Eu era criança, e estava dentro do carro, morrendo de medo de sairmos todos presos de lá. Talvez ele tenha dito ao fiscal que se duvidasse tratar-se o colchão de mero bem de uso pessoal poderia até cheirá-lo, o que terminou não sendo preciso, mas obrigá-lo a isso certamente não o fez...

9 comentários:

Pádua Marinho disse...

Prof. Hugo,
Curiosidade pessoal: por acaso esta turma de especialização (Unifor) que vc. se refere foi a que eu participei (nov-dez/2008)??

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Pádua,
Não, não foi sua turma. Foi uma anterior. Na sua havia alguns fiscais da SEFAZ, mas eram minoria.
abraço,
hugo segundo

Unknown disse...

Excelente história!

Pádua Marinho disse...

Realmente professor Hugo, os fiscais estaduais eram minoria em comparação aos federais pertencentes à turma.
Gde Abraço!

Fuad Daher de Freitas Mendes disse...

Essa história, hilária, eu conheço.

Curiosidade: Prof. Hugo, será que o Prof. Hugo de B. Machado já se encontrou com aquele fiscal alguma outra vez?

Abraços!

Otilia Chaves disse...

hahahahahaha.. a historia do Colchão e o senhor no banco traseiro.. com a revistinha no rosto dizendo.. para pai! para!!! hahahahaha... (essas suas historias professor são muito engraçadas)

Inácio Henrique disse...

Acabei de recordar e até entender o que é não incidência tributária "Tudo o que não esteja abrangido por tal descrição constitui hipótese de não incidência tributária. Em outras palavras, tudo que não é hipótese de incidência tributária é, naturalmente, hipótese de não incidência tributária." Na realidade uma aula.

Álisson disse...

O problema também atinge a Judiciário, conforme aquela recente decisão do STJ:

Roubo de mercadoria destinada à exportação anula cobrança de IPI

O roubo ou furto de mercadoria destinada à exportação anula o lançamento de IPI, porque o fato gerador do imposto não é a saída do estabelecimento industrial, mas a realização da operação de transferência da propriedade ou posse dos produtos industrializados. Esse é o novo entendimento adotado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

[...]

Mudança de entendimento

A decisão da Segunda Turma altera o entendimento até então adotado pelo colegiado, que era de manter a cobrança do imposto sobre mercadorias roubadas ou furtadas. No julgamento do REsp 734.403, relatado pelo ministro Mauro Campbell Marques, a maioria dos ministros considerou que esses acontecimentos eram risco inerente à atividade industrial e que o prejuízo não poderia ser transferido à sociedade sob a forma do não pagamento do tributo. Os ministros Castro Meira e Herman Benjamin ficaram vencidos.

Ao julgar esse novo recurso, Benjamin chegou a adotar o entendimento que havia sido firmado pela maioria da Turma, mesmo sem concordar com a tese. Porém, diante do voto-vista divergente do ministro Cesar Asfor Rocha, o relator afirmou que era uma “boa oportunidade para maior reflexão sobre a justiça de onerar o contribuinte com tributação que não corresponde com o proveito decorrente da operação”.

Os ministros Castro Meira e Humberto Martins aderiram à nova posição. Já o ministro Mauro Campbell Marques ficou vencido por considerar que não há previsão legal para a não incidência do imposto no caso julgado.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Hehehehehehehehehe!