sábado, 26 de abril de 2008

Debate sobre reforma tributária

Sexta-feira passada, participei de reunião-almoço no Instituto Titan. A pauta era reforma tributária e tributação de TI (Tecnologia da Informação), mais especificamente de software.
Os produtores de software reclamam, basicamente, que tanto o Município de Fortaleza (com o ISS) como o Estado do Ceará (com o ICMS) pretendem tributar o software produzido aqui. E, para piorar tudo: com alíquotas mais elevadas que as outras entidades da federação.
Dada a mobilidade típica a esse tipo de produto, a alta tributação termina fazendo com que sejam (de fato e de direito, e não de forma apenas "fantasmagórica") vendidos através de estabelecimentos situados em outros locais (v.g., Recife), de tributação mais amena.
Pior, em todos os sentidos, para o próprio fisco local.
É a velha lei de laffer, à qual já me reportei em outro post, coincidentemente também sobre reforma tributária.
O interessante foi que participaram do debate um vereador, um deputado estadual e um deputado federal.
Independentemente do mérito das discussões, e das conclusões, só isso já é digno de nota. É a democracia funcionando, e a sociedade debatendo com seus representantes a melhor forma de tratar os problemas que são, em última análise, do interesse de todos.
Da parte do parlamentar municipal, que falou muito bem, ficou o compromisso com o diálogo a fim de reduzir a carga relativa ao ISS.
Do parlamentar estadual, um diálogo com o governador a fim de que se suprima a incidência do ICMS sobre software, para que este seja tributado, doravante, apenas pelo ISS.
E, finalmente, o parlamentar federal, relator da proposta de emenda constitucional de reforma tributária, discorreu sobre a reforma constitucional pretendida.
De sua fala, resumo, abaixo, os seguintes pontos:
- severas críticas à quem se opõe à (sua proposta de) reforma;
- severas críticas ao ICMS, que seria regressivo, passível de sonegação, injusto, complexo etc;
- algumas críticas ao Judiciário, que teria "obrigado" o parlamento a emendar a Constituição para permitir a cobrança de "contribuição de iluminação pública" e para viabilizar outras formas de incidência antes tidas por inválidas;
- necessidade de recursos por parte dos Municípios, que não receberiam o repasse das quantias arrecadadas com contribuições federais.
Como consequência dessas críticas, pregou uma reforma que:
- federaliza a legislação do ICMS;
- transforma PIS, COFINS e CIDE em um IVA-Federal;
- desconstitucionaliza diversos aspectos do sistema tributário, que passarão a ser tratados por lei.
Quando me passaram a palavra, com o propósito apenas - não era essa a idéia do encontro?! - de estimular o debate, indaguei do parlamentar o que pensava das críticas contidas no texto anexo:

Tais críticas podem ser resumidas na seguinte afirmação: a proposta de reforma é CEGA, MUDA e TÍMIDA.

CEGA porque não enxerga o principal problema da tributação (que, não obstante os seguidos recordes, é sempre insuficiente): O GASTO. O que o Congresso está pensando em fazer em relação ao gasto, principalmente - e eu frisei esse aspecto - o gasto sem qualquer qualidade social, como é o caso dos superfaturamentos, desvios, etc.?

MUDA, porque desconstitucionaliza muita coisa, afirma que muito do que está vigendo será alterado, mas não indica o que virá substituir. Ou seja, o cidadão, aceitando a PEC, trocará uma tributação que tem suas desvantagens, mas que é conhecida, por uma incógnita, que pode ser (e a história mostra que geralmente é) muito pior.

E, finalmente, TÍMIDA, porque, embora os deputados se apressem para aprovar o texto logo, com urgência, porque o Brasil não pode parar, a reforma é urgente, etc. etc. etc., o texto tem vacatio legis de aproximadamente 8 anos. Isso mesmo, OITO ANOS. Por que tanta pressa, invocando-se problemas urgentes, para aprovar emenda que só depois de OITO ANOS entrará em vigor?

Quanto às contribuições, frisei ainda que:

- pretende-se hoje desonerar a FOLHA, para estimular o emprego formal. Pois bem. Esse era o propósito da COFINS e da CSLL. Fazer a seguridade ser financiada por bases diversas da folha de pagamentos (faturamento e lucro), permitindo uma redução dos encargos sobre o salário e incentivando o emprego. O que se assistiu, contudo, foi a transformação dessas contribuições em verdadeiros impostos federais, transformação esta que a PEC OFICIALIZA.

- O pior: não vi, pelo menos na versão que examinei, qualquer referência à partilha da receita do IVA-Federal com Estados e Municípios, pelo que a extinção da COFINS, do PIS e da CIDE para transformá-los em IVA será irrelevante para os entes federativos periféricos. Pode ser até ruim, já que estes, hoje, ficam com parte dos recursos arrecadados com a CIDE-Combustíveis.

A palavra foi devolvida ao Deputado, que, parece, não gostou das minhas ponderações.

Disse que só advogados e a OAB são contra a reforma tributária, pois esta lhes tirará oportunidades de sangrar os cofres públicos com ações movidas a questionamentos em tornos de "brechas legais" que a PEC irá corrigir.

Quanto às idéias do texto, não as refutou. Disse apenas que o seu autor é de São Paulo, e que isso explica tudo: a reforma teria como propósito fazer com que o ICMS seja devido (em operações interestaduais) no destino, e não na origem, e isso seria ruim para São Paulo, razão pela qual sua academia seria contra a reforma.

Criticou muito a OAB e os "escritórios" de advocacia, que seriam todos favoráveis à sonegação, e seriam contrários à COFINS porque esta agora incide sobre as importações, sendo cobrada de pessoas como as que compram na DASLU...

Em seguida, passou a falar dos neo-liberais que venderam o Brasil, endividaram-no, e que agora criticam os gastos do Governo que apenas tenta equilibrar o orçamento em face de tantas dívidas herdadas das gestões anteriores.

Como já era tarde, e todos queriam ir embora, não pude responder a essas ponderações.

Nem sei se teria sentido ou se seria proveitoso fazê-lo, no ambiente.

Mas não posso deixar de fazê-lo aqui.

Quanto aos neo-liberais, destaco que o debate não era, ou não deveria ser, ideológico. Tenho criticado - e são criticáveis mesmo!!! - o excesso de arrecadação e, sobretudo, a má qualidade do gasto, de qualquer Governo, seja ele do PSDB, do DEM ou do PT. O fato de o Governo anterior haver contraído dívida elevada não justifica que o atual não se preocupe com os gastos. E, quando falei em gastos, não me reportava - e frisei isso - a programas sociais, educacionais e etc., mas a um maior controle na aplicação desses recursos, para evitar DESVIOS. E ninguém vai querer justificar o descontrole para com desvios usando a essencialidade da despesa para a qual o dinheiro DEVERIA TER sido utilizado. A lógica recomenda precisamente o inverso.

Quanto à forma de responder as críticas do texto, trata-se de autêntica falácia. Em vez de responder um raciocínio, apontando suas possíveis falhas, critica-se o seu autor, como bem explica Irving Copi em seu Introdução à Lógica. E não acho que a crítica tenha procedência.

Primeiro, porque se a idéia é fazer com que o ICMS nas operações interestaduais seja devido sempre NO DESTINO, e não na origem, não é preciso federalizá-lo, nem criar um outro IVA-Federal, nem baixar o princípio da não-cumulatividade para o plano legal, nem proceder a nenhuma das outras centenas de alterações pretendidas, inclusive destinadas a hipertrofiar o uso de MPs em matéria tributária. Basta alterar um pouquinho a redação de UM dispositivo do art. 155, § 2.º, da CF. Só.

Segundo, porque, muito mais que a tributação no destino, a proposta visa a acabar com a "guerra fiscal", nacionalizando a legislação do ICMS para impedir Estados pobres de concederem incentivos para atrair indústrias. E a quem interessa isso? Por acaso não é ao Estado de São Paulo, maior opositor da guerra fiscal por ser aquele onde todas as indústrias já estão instaladas e que por isso não tem interesse em incentivá-las?

Em suma, quero dizer com isso que a reforma tem aspectos que podem até ser melhores para uns Estados, e piores para outros, não se podendo dizer que seja ótima só para determinados Estados e ruim só para outros. Daí porque não se pode falar que quem se opõe é porque reside em determinado Estado, o que é mais absurdo ainda.

Aliás, em relação aos Estados, a reforma é, no geral, ruim para todos, pois a sua principal fonte de sustento - e de autonomia - ficará toda nas mãos - no que pertine à legislação - da União, que ficará extremamente poderosa em face dos cada vez mais dependentes Estados-membros.

Isso nos leva às críticas ao ICMS. Faz parte da idéia de acabar com uma coisa a de primeiro criticá-la e desvalorizá-la. Todos concordam, e então se passa para a segunda etapa: acabar com essa porcaria.

Ora, o ICMS tem as mesmas - aliás, muito menos - desvantagens do PIS e da COFINS. Estas são, do mesmo modo, regressivas, injustas, passíveis de sonegação etc. etc. Por que malhar apenas o tributo estadual? Por acaso falhas, corrupção, sonegação etc. só ocorrem no âmbito Estadual? Há algo de ontologicamente diverso na estrutura genética ou cerebral de servidores e contribuintes que atuam no plano estadual?

Quanto aos "escritórios" (o deputado parecia ter mesmo raiva de advogados, embora tenha me dito, depois, que não, eis que inclusive também o é), acho que, nesse ponto sim, o equívoco consegue ser ainda maior.

Primeiro, porque as supostas "brechas" não podem ser corrigidas retroativamente, pelo que não procede a afirmação, pelo deputado feita, de que a aprovação da PEC faria com que os contribuintes perdessem inúmeras questões pendentes no STJ e no STF. Acho que ele falava da possibilidade de se incluir o ICMS na base de cálculo da COFINS (que será IVA-Federal), arbitrariedade que, se aprovada, não deixará por isso de ser discutida, e nem convalidará o que ocorreu no passado.

Segundo, porque, com toda certeza, será a aprovação da reforma que dará, e muito, serviço aos tais "escritórios".

Não gosto disso. Não sou, decididamente, como o médico que adora a epidemia porque lhe traz mais clientela. Não. E nem gosto de advogar as "teses" que surgem quando dessas mudanças legislativas, que acabam banalizadas por colegas que copiam petições na Justiça e saem oferecendo o serviço por quantias ridículas, para receber tudo "no risco". Prefiro atuar em causas peculiares, específicas, nas quais se discute, por exemplo, a validade de um auto de infração que considera aspectos particulares de dado contribuinte. E isso não muda, para melhor ou para pior, com qualquer reforma. Mas, tenho certeza, a aprovação da reforma causará uma onda, enorme, de ações discutindo-lhe os mais diversos aspectos. Tanto constitucionais, como de toda uma legislação que terá de ser feita para regulamentá-la. Ah... Não tenham dúvida disso!

Existe, como já disse antes, o efeito didático da jurisprudência, que em matéria tributária é mitigado pela intensa alteração legislativa. Mais ou menos assim: uma lei é editada, e então o fisco lhe dá sua interpretação oficial, via ato normativo infralegal. Não raro excede os limites da lei. E os contribuintes, por sua vez, dão a sua interpretação, e pleiteiam judicialmente o direito de recolher o tributo conforme essa sua interpretação. A questão chega aos Tribunais Superiores, que firmam jurisprudência. Depois disso, a jurisprudência exerce um efeito didático sobre como deve ser entendida a lei, e os conflitos diminuem sensivelmente.

Há, hoje, toda uma jurisprudência consolidada em torno das hipóteses de incidência do ICMS, da COFINS, do PIS e, de forma ainda incipiente, da CIDE. A não-cumulatividade do ICMS, desde 1996 (LC 87/96), e, com alguma mudança, de 2001 (LC 102/2001), vem sendo objeto de decisões, que lhe delinearam o perfil constitucional e legal. Hoje praticamente não se discute a ausência de direito ao crédito decorrente de aquisição de bens de consumo, o parcelamento do crédito dos bens do ativo... Com a aprovação de reforma, toda essa jurisprudência não terá mais pertinência, e as discussões começarão todas de novo! Dizer, portanto, que escritórios são contra a reforma porque temem perder clientes é um grande equívoco. Tanto porque é uma falácia (que não responde racionalmente os argumentos dos tais escritórios), como porque, mesmo no que pertine ao ataque ao interlocutor, não procede.

Por último, dizer que os que criticam a COFINS não-cumulativa de 7,6% o fazem porque compram bens importados na DASLU, ou defendem os proprietários desta, acho, foi além da conta. O tipo do exagero que depõe contra aquele que o utiliza. Como diria o outro, ele esticou demais a baladeira...

É evidente que o ônus exagerado imposto pela COFINS e pelo PIS, inclusive nas importações, não atinge apenas quem compra na DASLU. Aliás, muitos dos consumidores daquela loja, presumo, não estão assim tão preocupados com o preço. O PIS e a COFINS incidentes na importação pesam, e muito, por exemplo, também sobre o TRIGO importado, que é usado para fazer o PÃO, que todos, de todas as classes sociais, têm que comprar. E haja regressividade, pois se trata da mesma carga, seja para o comprador (rico ou pobre) do pão, seja para o comprador de itens de luxo importados. E olhe que não estamos falando do famigerado e combatido ICMS!

Não se deve criticar o advogado, pré-julgando seu cliente e associando-o a ele. Não vou dizer que essa postura revela tendências ditatoriais para não incorrer, também, na falácia que critiquei, mas é inegável a importância e a utilidade do advogado, em um regime que pretende ser democrático. Se há escritórios que ganham ações contra o Poder Público, a culpa, certamente, é deste, que exige tributos em desconformidade com a Constituição, como afinal reconhece o Judiciário. Se se pretende retirar da Constituição certas garantias, é porque o Executivo pretende excepcioná-las e não dar ao contribuinte o direito de reclamar. Isso está claro.

É curioso como certas autoridades, quando no exercício do poder, vêem com maus olhos os que lhes tolhem as faculdades, como esses tais advogados que vão ao Judiciário reclamar disso ou daquilo. Besteiras, dizem. Mas é igualmente curioso como essas mesmas autoridades, quando na posição inversa, correm para os tais desprezíveis advogados. Tão logo têm seus assessores apanhados com dólares na cueca, lembram que advogados são importantes, e o Judiciário, então... é a última tábua de salvação do cidadão contra o poder que, nessa hora sim, é abusivo!!!

P.S - Farei, dentro de alguns dias, post sobre a tributação do software, assunto que era a pauta do dia e que terminou não sendo devidamente discutido.


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