quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Aplicação "ex officio" de lei mais benéfica ao cidadão e "interesse público"

A legislação tributária do Estado do Ceará sofreu alteração recente, que implicou a redução de inúmeras penalidades pecuniárias, sobretudo daquelas aplicáveis a infrações meramente formais, não acompanhadas da falta de pagamento do tributo. Com isso, tem-se colocado a questão de saber se ela pode ser aplicada, de ofício, a casos "ainda não definitivamente julgados".
A questão, note-se, permite que se recordem alguns conceitos elementares de Direito Tributário, mas, mais que isso, ela remete a uma reflexão, mais ampla, sobre o visão que as autoridades devem ter sobre o papel que desempenham.
Isso porque há alguma resistência de certas autoridades fazendárias, no Estado do Ceará, à aplicação da referida legislação mais benéfica, em matéria de penalidades. Há mesmo aquelas que dizem: "- o contribuinte que peça a redução, com amparo na aplicação retroativa da lei que estabelece multas mais baixas. Fazer isso de ofício seria 'contra o interesse público'!".
Ora, essa afirmação revela, desconhecimento da legislação e da jurisprudência pertinentes, em especial do art. 106, II, do CTN, que dispõe:

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;
II - tratando-se de ato não definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como infração;
b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.

A aplicação da lei a fato pretérito, quando mais benéfica em matéria de penalidades, é determinada, de maneira expressa, pelo próprio Código Tributário Nacional. Fazê-lo de ofício, portanto, para todos, é um dever da autoridade administrativa, decorrente de sua vinculação à lei, à igualdade e à impessoalidade.
Não há "interesse público" em manter uma exigência em desconformidade com a lei, e muito menos em manter uma exigência que se sabe não poder ser levada adiante, deixando-se para invalidá-la apenas "se o contribuinte pedir". Esse prática revela uma deslealdade, uma contrariedade aos princípios da boa-fé e da confiança, que apenas prejudicam a legitimação da relação tributária, corroendo a própria ideia de direito como realidade institucional.

Outro óbice que vem sendo colocado à aplicação do art. 106, II, do CTN, além da "necessidade de esperar que peçam" essa aplicação, é a remissão que ele faz a "atos não definitivamente julgados". Se o órgão de julgamento já manteve a cobrança da multa, diz-se, não seria mais possível reduzi-la com a aplicação retroativa de uma lei mais benéfica, que estabelece penalidades mais reduzidas. Trata-se, porém, uma vez mais, de um grande equívoco.

Peço licença ao leitor para transcrever, aqui, o que comentei no "Código Tributário Nacional", não tanto pelas minhas próprias palavras, mas pela jurisprudência, do Superior Tribunal de Justiça, pacífica e reiterada, que lá se acha trancrita. Veja-se, em especial, a nota 6 ao art. 106, II, do CTN: mesmo que o contribuinte tenha sido executado, embargado e perdido, com trânsito em julgado dos embargos, a posterior publicação de uma lei que reduza as penalidades ali exigidas deve ser objeto de aplicação retroativa de ofício, o que permite concluir que só o efetivo pagamento da multa impede sua posterior redução ex officio por lei posterior mais benéfica:


5. Aplicação retroativa de lei punitiva mais benéfica e julgamento definitivo O “julgamento definitivo” a que se reporta o art. 106, II, do CTN, não será necessariamente um julgamento administrativo. Assim, enquanto não proferido julgamento definitivo pelo Poder Judiciário, a aplicação retroativa poderá ocorrer. Nesse sentido: “O referido artigo não especifica a esfera de incidência da retroatividade da lei mais benigna, o que enseja a aplicação do mesmo, tanto no âmbito administrativo como no judicial” (STJ, 2a T., REsp 295.762/RS, Rel. Min. Franciulli Netto, j. em 5/8/2004, DJ de 25/10/2004, p. 271).
6. Julgamento definitivo e execução fiscal – Para fins de interpretação dessa condição (de ato não definitivamente julgado), somente se considera definitivamente julgada a execução fiscal “após a arrematação, adjudicação e remição, sendo irrelevante a existência ou não de Embargos à Execução, procedentes ou não” (STJ, 1a T., REsp 200.781/RS, Rel. Min Milton Luiz Pereira, j. em 12/6/2001, DJ de 13/5/2002, p. 154). Desse modo, estando o débito ainda em fase de execução, a lei mais benéfica pode ser aplicada retroa­tivamente, sendo “irrelevante se já houve ou não a apresentação dos embargos do devedor ou se estes já foram ou não julgados” (STJ, 1a S., EREsp 184.642/SP, Rel. Min. Garcia Vieira, j. em 26/5/1999, DJ de 16/8/1999, p. 41).
7. Aplicação retroativa da lei mais benéfica. Possibilidade de ser feita de ofício “O advento da lei mais benéfica é fato novo, superveniente ao ajuizamento da ação, que incumbe ao juiz tomar em conta mesmo de ofício, nos termos do art. 462 do CPC” (STJ, 1a T., REsp 488.326/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. em 3/2/2005, DJ de 28/2/2005, p. 191).
 
Em atenção ao respeito que a Administração Pública deve não apenas ao Código Tributário Nacional, mas à interpretação que lhe dá o Superior Tribunal de Justiça, e até para poupar o Estado de custos com honorários de sucumbência fixados nos termos do art. 85 do CPC/2015, dispositivo que não permite o aviltamento que antes era levado a efeito nessa verba pelo Judiciário com suposto amparo no art. 20, § 4.º do CPC/1973, espera-se que tais penalidades sejam, de fato, reduzidas, com amparo na nova legislação, de ofício e independentemente da fase em que se encontrar o processo administrativo.




segunda-feira, 24 de abril de 2017

CPC/2015 e o Processo Tributário



Todos os anos, sob a coordenação do Prof. Hugo de Brito Machado, o ICET organiza uma coletânea em torno de assunto relevante e atual, convidando pesquisadores de diversos centros e com visões diferentes para enfrentar perguntas formuladas, de maneira não exaustiva, em torno de seus aspectos mais polêmicos.
Como resultado, tem-se livro que, embora seja uma coletânea, não é assistemático, mera reunião de textos soltos e desconexos, tendo, ao contrário, conteúdo monográfico. Diversos especialistas, com visões distintas, debruçando-se em torno do mesmo assunto. Material de pesquisa indispensável a quem se propõe, depois, como pesquisador, ou operador do direito, a enfrentar os mesmos temas.

Não à toa, essas coletâneas já apareceram na jurisprudência de Tribunais Superiores por diversas vezes. Foi o caso da dedicada ao regime jurídico das indenizações (REsp 1.152.764/CE, em sede de "recursos repetitivos"), ao lançamento tributário e à decadência (REsp 1.421.734/RS), e às sanções administrativas tributárias (REsp 850423/SP), só para citar alguns exemplos. 

A mais recente delas, trazida ao público pela editora Malheiros nestes dias, dedica-se às repercussões do CPC/2015 sobre o Processo Tributário, e gira em torno das seguintes questões:



1. Processo Administrativo Fiscal
1.1. Em razão do disposto no art. 15 do CPC/2015, pode-se dizer que suas disposições aplicam-se aos processos administrativos tributários? O que significa supletivo, no contexto do artigo? O mesmo que subsidiário? Nesse caso, qual o sentido de se usarem as duas palavras, uma ao lado da outra?
1.2. É invocável no processo administrativo, para esclarecer quando não se considera fundamentada uma decisão administrativa, o disposto no art. 489, § 1.º, do NCPC?
1.3. No que tange ao chamado “direito dos precedentes”, os art. 926 e 927 do NCPC aplicam-se ao processo administrativo tributário?
1.4. À míngua de previsão legal específica, no âmbito da legislação específica de determinado Estado-membro ou Município, seria possível à parte manejar o recurso de embargos de declaração, diante de decisão administrativa contraditória ou omissa?
1.5. O art. 174 do NCPC autorizaria a instituição de câmaras de mediação ou de conciliação no âmbito do processo tributário? Caso positivo, como conciliá-las com o caráter vinculado da atividade de cobrança de tributos, e a natureza ex lege da obrigação correspondente?
1.6. Há alguma outra disposição do novo CPC cuja aplicação seria pertinente no âmbito do processo administrativo tributário, de forma inédita àquelas já invocáveis à luz do CPC de 1973?

2. Aspectos Gerais do Processo Judicial
2.1. As alterações introduzidas pelo novo CPC quanto aos prazos concedidos à Fazenda Pública aplicam-se às ações regidas por leis especiais como o mandado de segurança, a execução fiscal e a cautelar fiscal?
2.2. Em face do Código de Processo Civil de 1973 era comum a condenação da Fazenda Pública ao pagamento de honorários da sucumbência em quantia irrisória. Haveria alguma justificação para essa prática?
2.3. O que se pode dizer da inovação introduzida pelo Código de Processo Civil de 2015 quanto à condenação da Fazenda Pública ao pagamento de honorários da sucumbência? O art. 85, § 3.º, do CPC/2015 aplica-se a condenações havidas após o início de sua vigência, ou apenas a processos iniciados depois dessa data? E o art. 85, § 11, aplica-se a recursos julgados a partir do início da vigência do novo CPC, mesmo que decisão recorrida tenha sido anterior?

3. Processo de Execução Fiscal
3.1. Qual a natureza do “encargo legal” previsto no Decreto-lei 1.025/1969? Caso ele tenha natureza de honorários, como sugere a Súmula 168 do extinto Tribunal Federal de Recursos, como conciliar sua aplicação, nos dias de hoje, com o art. 85, § 3.º, do CPC de 2015? E com o art. 827, § 1.º, do mesmo Código?
3.2. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 133 do Código de Processo Civil de 2015, aplica-se às execuções fiscais? Apenas nas hipóteses de o nome dos corresponsáveis não constar previamente na Certidão de Dívida Ativa, ou em qualquer hipótese? Ou em nenhuma hipótese, sendo a regra inaplicável à Fazenda Pública exeqüente?
3.3. Caso aplicável às execuções fiscais, ele pode ser instaurado naquelas que já estavam em curso quando teve início a vigência do CPC de 2015, ou somente àquelas iniciadas depois de 18 de março de 2016?
3.4. Em razão do disposto nos artigos 240 e 802 do CPC de 2015, nos casos em que a demora na citação do executado não seja imputável exclusivamente ao Judiciário, mas à Fazenda exequente, pode-se dizer que a data da efetiva citação do executado passa a ser relevante para determinar a consumação, ou não, do prazo prescricional, independentemente de a inicial ter sido protocolada dentro deste prazo? Subsiste o entendimento firmado pelo STJ no REsp 1.120.295/SP?
3.5. Pode ser exemplo de demora não imputável ao Judiciário, mas à Fazenda, aquela decorrente de ter ela fornecido endereço errado ou desatualizado para a citação do executado?
3.6. O art. 803, parágrafo único, do novo Código de Processo Civil, conteria um reconhecimento explícito do cabimento das chamadas “exceções de pré-executividade”? Seria essa admissão aplicável, também, às execuções fiscais, em face da supletividade referida no art. 15 do novo CPC, e do disposto no art. 1.º da própria Lei 6.830/80?
3.7. Teria o CPC de 2015 revogado a Lei nº 6.830/80, como se pode ver de seus artigos 779, inciso VI, e 784, inciso IX ?  Ou, em face do disposto em seu art. 1046, § 2º, a dizer que “permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código”, podemos entender que a lei de execuções fiscais permanece em vigor?

4. Mandado de Segurança
4.1. Aplica-se ao mandado de segurança a figura da “tutela de evidência” (art. 311 do NCPC)?
4.2. As liminares deferidas em sede de mandado de segurança submetem-se ao instituto da “estabilização” da tutela provisória previsto no art. 304 do NCPC?

5. Coisa julgada
5.1. Em face do art. 525, §§ 12 e 15, quais devem ser os efeitos de uma ação rescisória movida em razão da alteração da jurisprudência do STF sobre determinada questão tributária? É possível atribuir efeitos ex tunc à rescisão do julgado?
5.2. Quais os efeitos da decisão rescisória sobre o lapso decadencial? Imaginando-se um contribuinte que há mais de cinco anos não recolhe um tributo por conta de decisão judicial passada em julgado, que o declarou inconstitucional, a posterior mudança no entendimento do STF sobre a validade de tal tributo poderia legitimar a propositura e a procedência de ação rescisória, com a posterior autuação do contribuinte relativamente a todo o período?
6. O pagamento do ITCMD e Outras Questões
6.1. Em face do disposto no parágrafo único, do art. 654, do Novo Código de Processo Civil, é permitida a conclusão do processo de inventário e execução da partilha, antes de julgada a validade da cobrança do respectivo ITCMD?

6.2. Existem outras questões relativas ao processo tributário, decorrentes do advento do Código de Processo Civil de 2015? Quais?


Espera-se que ela tenha a utilidade das anteriores, ou até maior, dada a relevância e a atualidade do tema. Para quem tiver interesse, já está disponível no site da editora, e nas melhores livrarias (clique aqui).