quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Wikileaks e o grande irmão




Na parte final de minha tese de doutorado, em item bastante modesto, fiz alusão ao fato de que a internet mudará (já está mudando!), radicalmente, a forma como se exerce a democracia. Não se trata de grande novidade, nem a idéia é originalmente minha. Muitos já haviam dito algo parecido antes, quando isso era até menos evidente do que é hoje (ou em 2009, quando a escrevi).


Acontecimentos dos últimos meses parecem confirmar isso, de maneira às vezes assustadora.
Comentarei outros depois. Por enquanto, interessa-me o wikileaks, a recente prisão do fundador do site e as consequências daí decorrentes.
Como se sabe, wikileaks é um site dedicado a divulgar notícias relacionadas a grandes centros de poder (governos, grandes corporações etc.), preservando a identidade de suas fontes. O site diz não buscar ou procurar tais notícias, mas estar aberto àqueles que o queiram utilizar como veículo para fazê-las chegar ao mundo.
Embora fundado há alguns anos, o site despertou a atenção mundial quando passou a divulgar, em momento mais recente, documentos sigilosos do governo norte-americano. A partir de então, políticos republicanos nos Estados Unidos chegaram a pugnar pela aplicação de "pena de morte" ao responsável pelo site, Julian Assange. Servidores americanos deixaram de hospedá-lo e de permitir acesso a ele. Assange, além disso, passou à lista dos "mais procurados" pela interpol, e terminou preso, acusado de "estupro".
Em razão do tal 'estupro', diversas instituições financeiras, como bancos e administradoras de cartão de crédito deixaram de realizar transações que destinassem dinheiro à manutenção do site.
Quando comecei a ver essas notícias, não podia acreditar. Parecia estar vivendo no mundo de 1984, de George Orwell.

Primeiro, porque a liberdade de expressão, nos EUA tão apregoada e defendida, dá ao apontado site, ou aos seus responsáveis, o direito de divulgar as informações que chegarem ao seu conhecimento. Se são sigilosas, devem ser punidos aqueles que as levaram ao site, e não o próprio, que, aliás, não é obrigado a revelar sua fonte. Trata-se de princípio básico de direito constitucional, que, por exemplo, se refletiu no inciso XIV do art. 5.º de nossa Constituição. A liberdade de imprensa é indispensável para a democracia, não podendo ser sufocada porque contraria os interesses deste ou daquele governo.

Segundo, porque a própria acusação de estupro está muito mal explicada. Segundo as próprias "vítimas", o sexo teria sido consensual, mas ele teria se recusado a usar preservativo em um caso, e em outro este teria estourado. Em outra situação, ele teria "pressionado seu corpo" contra o da mulher de uma forma por ela não desejada. Reconheça-se que são acusações que, conquanto possam ter a sua gravidade, dependendo de como as coisas realmente tenham acontecido, não justificam, de forma nenhuma, que ele passe à lista dos mais procurados da interpol por causa disso, ou, pior, que tenha os pagamentos ao seu site bloqueados pela VISA, pelo paypal e por outras instituições congêneres. Seria curioso se tais instituições financeiras realmente resolvessem bloquear as transações com TODAS as empresas cujos sócios ou fundadores tivessem contra si acusações de gravidade igual ou maior que as feitas contra Assange. Por que só contra ele?

Parece claro que a acusação, a prisão e os bloqueios nada têm a ver com a conduta sexual do mencionado fundador do site, por mais reprovável que ela possa ser. Tais atos parecem muito mais relacionados à pretensão, já publicamente revelada por políticos americanos, de aplicar-lhe a pena de morte. Triste realidade, reveladora de que, na cabeça de muitos, os Direitos Humanos só devem ser respeitados pelos outros.

Mas a internet, também nesse ponto, mostra-se surpreendentemente flexível e talvez até incontrolável, a demonstrar que realmente estamos ingressando em uma nova era. Fechado o site nos EUA, surgiram mais de 100 "espelhos" ou "clones" dele. No twitter, por igual, a discussão está bastante acesa, formando-se resistência e troca de informações, sendo possível, ainda, ler comentários lúcidos como:
- Fosse na China, Assange seria chamado de dissidente e teria sido laureado com o Prêmio Nobel pelo Ocidente...
- Assange está sendo acusado de estupro? Só se for porque ele f*deu os EUA...

Isso confirma outra coisa que também tratei na tese, amparado, basicamente, nas idéias de Amartya Sen: não existem "valores asiáticos" oponíveis aos "ocidentais", os primeiros "tendentes ao autoritarismo" e os segundos "naturalmente democráticos". Absolutamente não. Há tendências autoritárias em todos os lugares, sendo também possível observar a luta pelo respeito às liberdades democráticas em todos os lugares. Tanto que os EUA (ou, sem generalizar, muitas pessoas que compõem o seu governo), no episódio em questão, se estão mostrando bem semelhantes ao governo chinês. Bloquearam o acesso ao site e às suas finanças, determinando a morte de seu responsável. O que mais falta?

Ah... E por falar em Orwell, cuja leitura é sempre recomendada, não poderia ter sido mais feliz a citação feita no início do vídeo a seguir, que, conquanto chocante, merece ser assistido, estando entre uma das revelações propiciadas pelo wikileaks: http://www.collateralmurder.com/




Parece que eles do wikileaks conhecem a notável obra de Orwell, que, conquanto escrita tendo em vista o comunismo, reflete com perfeição qualquer regime totalitário e controlador (e, nesse ponto, extrema esquerda e extrema direita estão muito mais próximas do que se pensa). A mensagem que colocaram no seguinte wallpaper, e a imagem retratada, revelam bem isso, além de evidenciarem que a internet realmente pode se prestar à pulverização do poder, pelo menos no que diz respeito à informação. If the big brother is waching, dizem eles, so are we...



*****

ATUALIZAÇÃO:

Recebi o email abaixo, e o repasso:

Caros amigos,

A campanha de intimidação massiva contra o WikiLeaks está assustando defensores da mídia livre do mundo todo.

Advogados peritos estão dizendo que o WikiLeaks provavelmente não violou nenhuma lei. Mas mesmo assim políticos dos EUA de alto escalão estão chamando o site de grupo terrorista e comentaristas estão pedindo o assassinato de sua equipe. O site vem sofrendo ataques fortes de países e empresas, porém o WikiLeaks só publica informações passadas por delatores. Eles trabalham com os principais jornais (NY Times, Guardian, Spiegel) para cuidadosamente selecionar as informações que eles publicam.

A intimidação extra judicial é um ataque à democracia. Nós precisamos de uma manifestação publica pela liberdade de expressão e de imprensa. Assine a petição pelo fim dos ataques e depois encaminhe este email para todo mundo – vamos conseguir 1 milhão de vozes e publicar anúncios de página inteira em jornais dos EUA esta semana!


O WikiLeaks não age sozinho – eles trabalham em parceria com os principais jornais do mundo (NY Times, Guardian, Der Spiegel, etc) para cuidadosamente revisar 250.000 telegramas (cabos) diplomáticos dos EUA, removendo qualquer informação que seja irresponsável publicar. Somente 800 cabos foram publicados até agora. No passado, a WikiLeaks expôs tortura, assassinato de civis inocentes no Iraque e Afeganistão pelo governo, e corrupção corporativa.

O governo dos EUA está usando todas as vias legais para impedir novas publicações de documentos, porém leis democráticas protegem a liberdade de imprensa. Os EUA e outros governos podem não gostar das leis que protegem a nossa liberdade de expressão, mas é justamente por isso que elas são importantes e porque somente um processo democrático pode alterá-las.

Algumas pessoas podem discordar se o WikiLeaks e seus grandes jornais parceiros estão publicando mais informações que o público deveria ver, se ele compromete a confidencialidade diplomática, ou se o seu fundador Julian Assange é um herói ou vilão. Porém nada disso justifica uma campanha agressiva de governos e empresas para silenciar um canal midiático legal. Clique abaixo para se juntar ao chamado contra a perseguição:


Você já se perguntou porque a mídia raramente publica as histórias completas do que acontece nos bastidores? Por que quando o fazem, governos reagem de forma agressiva, Nestas horas, depende do público defender os direitos democráticos de liberdade de imprensa e de expressão. Nunca houve um momento tão necessário de agirmos como agora.

Com esperança,

Ricken, Emma, Alex, Alice, Maria Paz e toda a equipe da Avaaz

Fontes:

Fundador do site WikiLeaks é preso em Londres:


Hackers lançam ataques em resposta a bloqueio de dinheiro do Wikileaks:

Conheça o homem por trás do site que revelou documentos secretos americanos:

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Responsabilidade tributária de sócios e a Lei 8.620/93

Como se sabe, a Lei 8.620/93, em seu art. 13, estabelece que TODOS os sócios de uma sociedade limitada respondem SEMPRE, de forma SOLIDÁRIA, pelos débitos desta relativos a contribuições previdenciárias. Não importa se exerciam ou não a gerência. Não importa sua participação no capital social (0,1% ou 99%).

Sobre essa disposição, consta do meu "CTN anotado", na nota 4 ao art. 124:



4. Responsabilidade solidária de sócios de sociedades limitadas por débitos previdenciários - Em função do disposto no art. 13 da Lei no 8.620/93, que responsabiliza solidariamente todos os sócios de uma sociedade limitada pelos débitos previdenciários desta, o INSS defendeu a possibilidade de “redirecionar” execuções fiscais contra integrantes de pessoas jurídicas, independentemente de haverem exercido a gerência ou de terem praticado atos com excesso de poderes.

O STJ chegou a admitir tal “responsabilização” de todos os sócios, com suposto amparo no art. 124, II, do CTN: “[...] 1. Há que distinguir, para efeito de determinação da responsabilidade do sócio por dívidas tributárias contraídas pela sociedade, os débitos para com a Seguridade Social, decorrentes do descumprimento de obrigações previdenciárias 2. Por esses débitos, dispõe o art. 13 da Lei no 8.620/93 que ‘os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais’. Trata-se de responsabilidade fundada no art. 124, II, do CTN, não havendo cogitar, por essa razão, da necessidade de comprovação, pelo credor exeqüente, de que o não-recolhimento da exação decorreu de ato praticado com violação à lei, ou de que o sócio deteve a qualidade de dirigente da sociedade devedora. 3. Cumpre salientar que o prosseguimento da execução contra o sócio-cotista, incluído no rol dos responsáveis tributários, fica limitado aos débitos da sociedade no período posterior à Lei no 8.620/93...” (STJ, 1a T., REsp 652.750/RS, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 6/9/2004, p. 181). O equívoco desse entendimento, que despreza o princípio da capacidade contributiva e interpreta o art. 124, II, do CTN isoladamente de seus arts. 128, 134 e 135, é muito bem demonstrado por Raquel Cavalcanti Ramos Machado, em “Responsabilidade do sócio por créditos tributários lançados contra a pessoa jurídica – os arts. 124, II, 134 e 135 do CTN, o art. 13 da Lei no 8.620/93 e a razoabilidade”, em Revista Dialética de Direito Tributário no 114, p. 84.

Mais recentemente, a Primeira Seção do STJ rejeitou, expressamente, a possibilidade de responsabilização irrestrita de que cuida o art. 13 da Lei no 8.620/93: “[...] 4. A solidariedade prevista no art. 124, II, do CTN, é denominada de direito. Ela só tem validade e eficácia quando a lei que a estabelece for interpretada de acordo com os propósitos da Constituição Federal e do próprio Código Tributário Nacional. 5. Inteiramente desprovidas de validade são as disposições da Lei no 8.620/93, ou de qualquer outra lei ordinária, que indevidamente pretenderam alargar a responsabilidade dos sócios e dirigentes das pessoas jurídicas. O art. 146, inciso III, b, da Constituição Federal, estabelece que as normas sobre responsabilidade tributária deverão se revestir obrigatoriamente de lei complementar. 6. O CTN, art. 135, III, estabelece que os sócios só respondem por dívidas tributárias quando exercerem gerência da sociedade ou qualquer outro ato de gestão vinculado ao fato gerador. O art. 13 da Lei no 8.620/93, portanto, só pode ser aplicado quando presentes as condições do art. 135, III, do CTN, não podendo ser interpretado, exclusivamente, em combinação com o art. 124, II, do CTN. 7. O teor do art. 1.016 do Código Civil de 2002 é extensivo às Sociedades Limitadas por força do prescrito no art. 1.053, expressando hipótese em que os administradores respondem solidariamente somente por culpa quando no desempenho de suas funções, o que reforça o consignado no art. 135, III, do CTN. 8. A Lei no 8.620/93, art. 13, também não se aplica às Sociedades Limitadas por encontrar-se esse tipo societário regulado pelo novo Código Civil, lei posterior, de igual hierarquia, que estabelece direito oposto ao nela estabelecido. 9. Não há como se aplicar à questão de tamanha complexidade e repercussão patrimonial, empresarial, fiscal e econômica, interpretação literal e dissociada do contexto legal no qual se insere o direito em debate. Deve-se, ao revés, buscar amparo em interpretações sistemática e teleológica, adicionando-se os comandos da Constituição Federal, do Código Tributário Nacional e do Código Civil para, por fim, alcançar-se uma resultante legal que, de forma coerente e juridicamente adequada, não desnature as Sociedades Limitadas e, mais ainda, que a bem do consumidor e da própria livre iniciativa privada (princípio constitucional) preserve os fundamentos e a natureza desse tipo societário. [...]” (STJ, 1a S., REsp 757.065/SC, Rel. Min. José Delgado, j. em 28/9/2005, DJ de 1o/2/2006, p. 424). No mesmo sentido: “A 1a Seção do STJ, no julgamento do REsp 717.717/SP, Min. José Delgado, sessão de 28.9.2005, consagrou o entendimento de que, mesmo em se tratando de débitos para com a Seguridade Social, a responsabilidade pessoal dos sócios das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, prevista no art. 13 da Lei no 8.620/93, só existe quando presentes as condições estabelecidas no art. 135, III do CTN. [...]” (STJ, 1a S., AgRg nos EREsp 624.842/SC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. em 26/10/2005, DJ de 21/11/2005, p. 117).

Procede a afirmação de que o art. 13 da Lei no 8.620/93, além de ser inconstitucional, foi revogado pelo novo Código Civil, fundamento que, a nosso ver, serviu ainda para evitar que a questão tivesse de ser apreciada pela Corte Especial do STJ, o que seria necessário no caso de declaração de inconstitucionalidade do dispositivo.

Estava-se diante da situação perfeita para, caso viesse a apreciar a matéria, o STF julgar... sim, o leitor já adivinhou: de forma contrária à posição firmada pelo STJ!

Mas eis que não foi isso o que se deu. O site do STF, com efeito, noticiou:

Lei que obriga quitação de dívidas de seguridade social com bens pessoais de sócios é inconstitucional


O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, negou provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 562276, na sessão desta quarta-feira (3), e manteve decisão que considerou inconstitucional a responsabilização, perante a Seguridade Social, dos gerentes de empresas, ou o redirecionamento de execução fiscal, quando ausentes os elementos que caracterizem a atuação dolosa dos sócios. O recurso foi interposto pela União, questionando decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que considerou inconstitucional a aplicação do artigo 13 da Lei nº 8.620/93.

Para a União, “o artigo 13 da Lei nº 8.620/93, ao estabelecer a responsabilidade solidária dos sócios das empresas por quotas de responsabilidade limitadas pelas dívidas junto à Seguridade Social, não está invadindo área reservada a lei complementar, mas apenas e tão-somente integrando o que dispõe o artigo 124, II, do Código Tributário Nacional, que tem força de lei complementar”.

A ministra Ellen Gracie, relatora do caso, analisou a responsabilidade tributária em relação às normas gerais, salientando que, de acordo com o artigo 146, inciso III, alínea 'b' da Constituição Federal, o responsável pela contribuição tributária não pode ser qualquer pessoa - “exige-se que ele guarde relação com o fato gerador ou com o contribuinte”.

Em relação à responsabilidade dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado pelos créditos correspondentes às obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, a ministra observou que a jurisprudência tem-se firmado no sentido de que ilícitos praticados por esses gestores, ou sócios com poderes de gestão, não se confundem com o simples inadimplemento de tributos por força do risco do negócio, ou seja, com atraso no pagamento dos tributos, “incapaz este de fazer com que os gerentes, diretores ou representantes respondam, com o seu próprio patrimônio, por dívidas da sociedade. O que se exige para essa qualificação é um ilícito qualificado, do qual decorra a obrigação ou o seu inadimplemento, como no caso da apropriação indébita”.

“O artigo 13 da Lei nº 8.620/93, ao vincular a simples condição de sócio à obrigação de responder solidariamente, estabeleceu uma exceção desautorizada à norma geral de Direito Tributário, que está consubstanciada no artigo 135, inciso III do CTN, o que evidencia a invasão da esfera reservada a lei complementar pelo artigo 146, inciso III, alínea 'b' da Constituição”, disse a ministra, negando provimento ao recurso da União.

A relatora ressaltou que o caso possui repercussão geral (art. 543-B do Código de Processo Civil), conforme entendimento do Plenário expresso em novembro de 2007. Assim, a decisão do Plenário na sessão de hoje repercutirá nos demais processos, com tema idêntico, na Justiça do país.

Algo raro: o STF não modificou, ao apreciar a questão, o entendimento já assentado no STJ sobre ela. Talvez - talvez - pelo fato de o recurso apreciado não ter sido oriundo do STJ, mas do TRF da 4.ª Região.

Seja como for, em face da decisão do STF, tive de acrescentar o seguinte trecho ao comentário constante do livro, que será inserido em sua 3.ª edição, no qual aproveito para fazer observação importante:

Registre-se que o STF, julgando a mesma questão (em face da declaração de inconstitucionalidade do art. 13 da Lei 8.620/93 pelo TRF da 4.ª Região), decidiu pela inconstitucionalidade da responsabilidade nele prevista. Entendeu-se que a disposição extrapola (e contraria) o disposto no art. 135, III, do CTN, invadindo campo reservado pelo art. 146, III, “b” da CF/88 à lei complementar (STF, Pleno, RE 562.276, Rel. Min. Ellen Gracie).

Por esse fundamento, adotado no julgamento do RE 562.276, pode parecer que, tivesse sido veiculada em lei complementar, a disposição do art. 13 da Lei 8.620/93 seria constitucional. Mas, na verdade, é uma decorrência do princípio da capacidade contributiva a exigência de que o responsável tenha algum vínculo com a situação que configura o fato gerador da exação, como didaticamente explicita o art. 128 do CTN. Como o fato gerador é manifestação de capacidade contributiva revelada pelo contribuinte, o terceiro, para ser validamente definido como sujeito passivo (responsável), há de ter vinculação com esse fato, vinculação que o permite reter, descontar ou reaver do contribuinte o quantum representado pelo tributo correspondente. Afinal, se foi o contribuinte quem deu causa ao surgimento do débito tributário, revelando capacidade contributiva a ser com ele alcançada, é ele, contribuinte, quem deve suportar o ônus correspondente. É por isso que a lei – seja ela complementar ou ordinária – não pode eleger como sujeito passivo alguém sem nenhum vínculo com a situação que configura o fato gerador da obrigação, como é o caso de sócios que não participam da administração ou da gerência de uma sociedade limitada.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Restituição de tributo prescrito

Na última quarta-feira estive em São Paulo para ministrar aula na Pós em Direito Tributário da rede LFG. Como sempre, fui muito bem recebido e bem tratado por toda a equipe da rede e do Prof. Eduardo Sabbag, aos quais sou extremamente grato.
Ao final da aula, recebemos, como de costume, diversas perguntas de alunos de todo o Brasil. E uma delas indagava:
"Gostaria de saber se há o direito à restituição de tributo prescrito e por quê."

A pergunta, a rigor, pode ser entendida de duas formas.
Eu entendi, de início, que ela indagava a respeito da possibilidade de pleitear a restituição de tributo pago indevidamente, sendo o pedido de restituição feito depois de consumado o prazo de prescrição do direito à restituição. Respondi, nesse contexto, que não. Se prescrito o direito do contribuinte à restituição, ela não pode ser pleiteada. Em relação à compensação ainda se poderia discutir, eis que ele não envolve a propositura de ação judicial (tese exposta no "Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário", editado pela Dialética e pelo ICET), mas em relação à restituição em dinheiro a resposta seria, sem questionamentos, não.
Ao final da aula, contudo, algumas presentes indagaram:
- Será que a pergunta não pretendeu dizer respeito, quanto se reportou à restituição de tributo prescrito, à restituição, requerida pouco depois do pagamento, de tributo pago depois de consumado o prazo de prescrição do direito da Fazenda de exigi-lo?
Por outras palavras, por "tributo prescrito" a aluna poderia estar fazendo alusão não à prescrição do direito à restituição, mas à prescrição do direito da Fazenda de exigir o tributo.
Nesse sentido, a resposta é positiva, sim, há direito à restituição, e aproveito o espaço no blog para esclarecê-la.
No âmbito tributário, a prescrição é causa extintiva do próprio crédito tributário (CTN, art. 156). Não extingue apenas a "pretensão", pelo que não se pode aplicar a lógica do direito privado segundo a qual a dívida prescrita subsiste enquanto obrigação natural e uma vez paga não pode ser restituída. Em matéria fiscal, prescrito o direito da Fazenda de exigir um tributo, caso o contribuinte ainda assim o pague, poderá, sim, pleitear a restituição.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Crianças e Teoria do Conhecimento

Quando nasceu minha primeira filha, pude observar mais de perto o desenvolvimento de uma criança. Não só sob o aspecto sentimental, como um pai bastante presente (cheguei a usar com frequência o Falcon que tinha guardado desde a infância para brincar de barbie e susy com ela), mas também como alguém curioso no estudo da mente humana e de seu funcionamento. Já tinha convivido com crianças antes, naturalmente, meus primos e sobrinhos, mas sem interesse (nem conhecimento) em filosofia ou epistemologia, pelo que não pude observar o que depois vi em meus próprios filhos. Já aí percebi - uma coisa é ler, teoricamente, outra é perceber, concretamente - a verdade da lição hermenêutica segundo a qual o que se vê depende de quem vê.
Enfim, é muito interessante observar a formação da linguagem, dos primeiros raciocínios mais elaborados... Até já comentei isso aqui no blog algumas vezes (clique aqui).
É curioso notar, por exemplo, a forma como usamos idéias já conhecidas para construir definições para coisas novas. Tentamos entender o desconhecido a partir do conhecido. E o exemplo que vi disso é bem pitoresco: enquanto, na década de 1980, meu pai descrevia o computador para seus colegas como uma "máquina de escrever com uma infinidade de recursos", para meus filhos menores uma máquina de escrever (que foi de meu sogro e com a qual brincam eventualmente) é "aquele computador tosco do vovô que só imprime":


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Interpretação literal



Acabo de receber o novo livro do ICET, coordenado pelo Prof. Hugo de Brito Machado, mais um volume da coleção na qual, anualmente, se estudam temas específicos do Direito Tributário. Desta vez examinou-se o tema "Interpretação e a Aplicação da Lei Tributária", como, aliás, já mencionei antes aqui no blog.

O fato é que, tendo recebido o livro, recordei-me do art. 111 do CTN, segundo o qual a lei tributária, nas hipóteses que indica, deve ser interpretada "literalmente". Lembrei, ainda, das dificuldades que cercam a interpretação desse artigo, pois o texto não tem um significado "em si"; é o intérprete quem lho dá, à luz das circunstâncias (e isso para não referir a pré-compreensão do intérprete). Como escrevemos, a Raquel (que pesquisa o tema no doutorado na USP) e eu, no texto que consta do volume,

É impossível interpretar uma lei apenas com o uso do método literal, porque as palavras, mesmo literalmente, têm invariavelmente mais de um sentido. O que se deve entender por banco? Manga? Fundo? Flor? Dente? Batida? Frango? Galinha? Gato? Dependendo do contexto em que empregadas, essas palavras podem ter significado literal completamente diferente. Aliás, mesmo quando isso não ocorre, a literalidade não é suficiente para determinar o sentido do texto, bastando para demonstrá-lo que o leitor recorde do exemplo usado na resposta à pergunta 1.2., supra, relativo a uma mesma placa que passa a veicular normas com conteúdo praticamente oposto quando fixada na entrada de um shopping center ou em uma praia de nudismo.
Por isso, o sentido que deve ser dado às disposições do art. 111 do CTN é o de preconizar que, relativamente à legislação que trate das situações ali mencionadas (todas especiais, ou excepcionais, a configurar exceções a normas mais gerais), se dê maior atenção aos significados prévios que as expressões utilizadas podem ter, como limite à atividade do intérprete.
Em verdade, o texto – o sentido que as palavras nele utilizadas ordinariamente têm – é um limite à atividade do exegeta. Afinal, o intérprete deve (re)construir o sentido dos textos normativos, atividade que, conquanto guarde certa dose de criação, não é arbitrária nem ilimitada, sendo um dos limites a serem observados justamente o espectro de sentidos possíveis do texto utilizado. Se a cada palavra cada sujeito pudesse dar o significado que bem entendesse, o próprio entendimento intersubjetivo, obtido através do uso da linguagem (e que, aliás, possibilita o próprio surgimento da linguagem), seria inviabilizado.
Assim, o que o art. 111 do CTN determina, simplesmente, é que, nas matérias ali mencionadas, o intérprete não se valha de significados que extrapolem os limites do texto empregado, ou o faça na menor medida possível, não utilizando métodos de integração ou mesmo métodos extensivos de interpretação.

Bom, deixando os aspectos filosóficos e hermenêuticos de lado, um exemplo pode ilustrar a dificuldade de dar uma interpretação sempre "literal" aos textos, sejam eles normativos ou não.

Imagine-se que o marido chega em casa e, indagado pela esposa a respeito das novidades na faculdade onde ele ensina, comenta:

- Hoje apareceram várias gatinhas na faculdade...

Indignada, a mulher pergunta: - O quê?! Gatinhas?!

- Sim, gatinhas! Veja a foto delas, que tirei com meu celular:




Vendo a foto, a mulher responde aliviada: - Ah, sim...

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A arte de complicar as coisas simples

Enunciado 1: O menino comeu uma bolacha.

Enunciado 2: O menino pegou uma bolacha que estava sobre a mesa, segurou-a com os dedos, levou-a até a boca e comeu-a.

Enunciado 3: Um ser humano ainda em fase de desenvolvimento visualizou produto compacto e salgado da industrialização do trigo que estava sobre um móvel destinado a que sejam servidas as refeições, comprimiu-o entre os dedos, moveu o braço (correspondente à mão cujos dedos comprimiram o produto compacto e salgado da industrialização do trigo) até a cavidade bucal e nela introduziu o produto que segurava, a fim de extrair-lhe os nutrientes e sentir-lhe o sabor.

(...)

Um pouco mais de conhecimento, imaginação, paciência e tempo permitiriam transformar o enunciado 1 em um livro. Poderíamos descrever a sequência de pulsos nervosos e cada nervo percorrido, no ato de mover cada um dos músculos necessários a que se segure uma bolacha. Poderíamos descrever todo o percurso da luz, desde sua produção no sol (quando poderíamos cuidar da fusão - no núcleo dessa estrela - entre dois átomos de hidrogênio, que gera um átomo de hélio e libera grande quantidade de luz e calor) ou em uma lâmpada (cuidando então da passagem dos elétrons gerados em uma usina hidrelétrica pelo filamento no interior do bulbo de vidro...), até chegar à retina do garoto, transformando-se em sinal elétrico e sendo então transmitida pelo nervo ótico até o cérebro... Quanto à bolacha, sua composição atômica e molecular também poderia ser exaustivamente decomposta...

A questão reside em saber se isso seria necessário. Se não estivermos estudando astronomia, não é preciso dizer como a luz se forma no interior das estrelas. Se não se estiver pesquisando biologia ou oftalmologia, tampouco será necessário cuidar de sua transformação na retina nem de seu transporte pelo nervo ótico... Se não estudamos nutrição, também não é preciso saber o que ocorre dentro da boca do garoto (e, menos ainda, depois dela). Se nosso propósito é apenas o de estudar que sumiço levou a bolacha que estava sobre a mesa, poderá ser útil, simplesmente, averiguar se alguém a guardou em um depósito na geladeira, ou a levou embora, ou a comeu. Não é preciso decompor infinitamente cada uma dessas ações.

E se trocarmos "o menino comeu a bolacha" por "o fiscal lavrou um auto de infração"?

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Quadrinhos, charges, tiras...

Existem diversas formas de expressar idéias e sentimentos. Quadrinhos, charges e tiras são uma delas, sendo perceptível o espaço cada vez maior que vêm ocupando, abandonando-se a idéia de que seriam forma "inferior" de arte. Na verdade, quando as crianças que gostam de coisas não muito bem aprovadas pelos pais crescem, aquilo que era "lixo" vira "clássico". Na música, na literatura, nos hábitos (que moral teria eu para recriminar meus filhos por adorarem videogame?)... E assim caminha a humanidade.
Isso tem se refletido, de algum modo (ainda muito tímido, nesse setor tão conservador) na literatura jurídica. É o caso, por exemplo, do livro do George Marmelstein, que tem figuras e ilustrações que o tornam muitíssimo mais interessante (no mesmo estilo pode ser citado o "Do que é feito o pensamento", de Steven Pinker).
A esse respeito, vi a seguinte (no site de Allan Sieber, que recomendo entusiasticamente), que serviria bem a um livro que cuidasse de alguns dos problemas de nossa sociedade, pertinente sobretudo agora:


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Devolução de listas

Saiu no migalhas:


Quinto

A OAB/SP encaminhou pedido ao Conselho Federal da Ordem solicitando ingresso de medida judicial contra o regimento interno do TJ/SP por conta de devolução de lista sêxtupla com o nome dos candidatos ao preenchimento de vaga de desembargador pelo quinto. A Seccional definiu 4 listas sêxtuplas que foram encaminhadas ao TJ. Duas foram rejeitadas. Na ocasião, alguns nomes que estavam nas listas desconsideradas obtiveram votação necessária. Atendendo ofício dos desembargadores Palma Bisson e Maurício Vidigal, o Órgão Especial do TJ votou a terceira lista. Das 4, apenas a de número 2 ficou sem definição. Das três listas aprovadas já foram eleitos para o cargo de desembargador os advogados Hugo Crepaldi Neto, Miguel Ângelo Brandi Júnior e Sandra Maria Galhardo Esteves. (Clique aqui)



Está se tornando comum essa de devolver listas. Primeiro foi o STJ em relação ao Conselho Federal (clique aqui). Agora o TJ/SP. Nesse contexto - e sem entrar no mérito do acerto da decisão sob o ponto de vista técnico - não deixa de ser contraditório o fato de o Conselho Seccional da OAB/CE, na eleição para a vaga do quinto no TJ/CE, ter feito a mesma coisa em relação à lista feita por meio de eleição entre os advogados cearenses. Sem entrar - insisto - no mérito a respeito da retidão dessa conduta, ela faz com que a ordem não possa reclamar do Judiciário, quando este faz o mesmo com ela.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Idea of Justice

Sou muito grato ao George Marmelstein por, uns anos atrás, haver me presenteado com exemplar do "Desenvolvimento como Liberdade", de Amartya Sen. O livro é excelente, e influenciou bastante meu pensamento a partir de então. Leitura do "Fundamentos do Direito" o demonstra.
Passei a procurar livros e artigos desse autor, já tendo, aliás, postado algo a respeito dele. Seus livros "Ética e Economia" e "Identity and Violence" são igualmente muito bons.
O mais recente que escreveu chama-se "The Idea of Justice", e, até onde sei, ainda não foi traduzido para o português. É muito bom. Nele se faz uma crítica às teorias da justiça existentes, com a proposta de idéias bem interessantes por parte de Sen.
A introdução traz um exemplo que representa um desafio, e de forma simples mostra a insuficiência (ou o caráter demasiadamente simplista) de muitas teorias a respeito da justiça.
Ei-lo:
Imagine-se diante de três crianças que disputam um brinquedo. Uma flauta. Elas pedem a você que resolva o conflito e entregue a flauta a quem a merecer.
A primeira alega ter direito à flauta porque é a única que sabe tocar esse instrumento. As demais não tocam flauta, e não negam isso.
A segunda, por sua vez, afirma não ter nenhum outro brinquedo, por ser muito pobre, enquanto as demais, ricas, têm muitos outros brinquedos com os quais se podem divertir. Por igual, as outras duas não negam esse fato.
Finalmente, a terceira sustenta que fez a flauta, com seu próprio trabalho. Conseguiu a madeira e confeccionou o instrumento com suas próprias mãos e ferramentas, o que também é reconhecido pelas outras duas.
Qual delas deverá ficar com a flauta? A que sabe tocá-la, a que não tem nenhum outro brinquedo ou a que a construiu?
O exemplo mostra como não é fácil adotar um critério de justiça (utilitarismo, igualitarismo, libertarismo etc.) para resolver todas as questões éticas ou morais. E atrai o leitor para o restante do livro, onde se acham as idéias de Sen a respeito do assunto.
Ainda não concluí a leitura, mas, por coincidência, encontrei vídeo na internet no qual ele próprio expõe suas idéias com bastante clareza. Vale a pena.



segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Banalização da proporcionalidade

A seguinte decisão do STF poderia se limitar à primeira parte da ementa. De fato, faz tempo que a Corte fixou entendimento de que as taxas judiciárias podem ter como critério de determinação de seu montante o valor da causa, desde que haja teto razoável legalmente estabelecido, que evite eventual restrição do acesso ao Judiciário causado por taxas em valores absurdos.
"ADI N. 3.826-GO
RELATOR: MIN. EROS GRAU
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 2º, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI N. 14.376, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2002, DO ESTADO DE GOIÁS. REGIMENTO DE CUSTAS E EMOLUMENTOS DA JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. VALOR DA CAUSA. CRITÉRIO DE COBRANÇA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 5º, INCISO XXXV; 145, INCISO II E § 2º; 154, INCISO I, E 236, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. NÃO CARACTERIZAÇÃO. Controle da proporcionalidade e razoabilidade das leis pelo Supremo Tribunal Federal. BANALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE.
1. Esta Corte tem admitido o cálculo das custas com base no valor do proveito pretendido pelo contribuinte desde que seja fixado um teto para o quantum devido a título de custas ou taxas judiciais. Precedentes.
2. O ato normativo atacado não indica o valor da causa ou o bem ou negócio objeto dos atos judiciais e extrajudiciais como base de cálculo da taxa — esses valores consubstanciam apenas critérios para o cálculo. As tabelas apresentam limites mínimo e máximo.
3. Alegação de “excesso desproporcional e desarrazoado”.
4. Controle da proporcionalidade e razoabilidade das leis pelo Supremo Tribunal Federal.
5. Limites funcionais da jurisdição constitucional. Não cabe ao órgão fiscalizador da inconstitucionalidade valorar se a lei cumpre bem ou mal os fins por ela estabelecidos.
6. A fundamentação da decisão judicial não pode assentar em “vícios” produzidos no âmbito da liberdade de conformação ou no exercício do poder discricionário do Poder Constituinte.
7. É admissível o cálculo das custas judiciais com base no valor da causa, desde que mantida correlação com o custo da atividade prestada, desde que haja a definição de valores mínimo e máximo.
8. Como observou o Ministro MARCO AURÉLIO na ementa do RE n. 140.265, cogitando do ofício judicante e da postura do juiz, “[a]o examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após deve recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formalizá-la”. À falta desse “indispensável apoio” a solução que o juiz idealizar como a mais justa não pode ser formalizada.
9. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. "

A respeito do tema, consta da nota que fiz ao art. 145 da CF/88:


Segundo o STF, as custas judiciais têm natureza de taxa, mas isso não impede que sejam calculadas em face do valor da causa ou da condenação, desde que se observe o princípio da razoabilidade. Elas não se transformam em impostos por conta disso. O importante é que a sua alíquota não seja excessiva, e que se estabeleça um teto ao valor das mesmas. Do contrário, o valor da taxa se torna exorbitante, desproporcional ao custo do serviço que remunera, em ofensa à garantia constitucional de acesso à jurisdição, consagrada no art. 5o, XXXV, da CF/88 (v. g., RTJ 112/34; RTJ 112/499). Como não estão submetidas à limitação do art. 167, IV, da CF/88, aplicável aos impostos, as taxas judiciárias podem ter o produto de sua arrecadação alocado ao Poder Judiciário, “cuja atividade remunera; e nada impede a afetação dos recursos correspondentes a determinado tipo de despesas – no caso, as de capital, investimento e treinamento de pessoal da Justiça – cuja finalidade tem inequívoco liame instrumental com o serviço judiciário” (STF, Pleno, ADI 1.926-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 19/4/1999, v. u., DJ de 10/9/1999, p. 2).

Mas, como mencionei, o STF poderia ter se limitado à parte inicial da ementa. Poderia. A fundamentação utilizada pelo autor da ADI, contudo, certamente o forçou a se pronunciar, expressamente, sobre possível "desproporcionalidade e irrazoabilidade" na forma como as taxas são calculadas. E, ao fazê-lo, asseverou a necessidade de cautela com a "banalização" de tais princípios. Tal como a cláusula do "devido processo legal" nos EUA, com eles se pode dizer que qualquer coisa que não nos agrada é inconstitucional. Com a teoria da Katchanga, então, isso fica ainda mais fácil. Vindo do STF a advertência, talvez se esteja diante do sujo falando do mal lavado, mas, de qualquer modo, a sinalização feita no acórdão merece toda a atenção. Talvez se esteja partilhando, nesse ponto, da visão de John Hart Ely: se não gostam da lei, alterem-na por meio de seus representantes, democraticamente...
A teoria de Ely é fascinante. Serve de excelente contraponto a certos exageros do Judiciário, que poderiam conduzir a um governo de juízes. Mas deve ser vista com cautela. Afinal, a rigidez constitucional e o controle de constitucionalidade são ferramentas importantes à limitação do poder e à proteção do cidadão em face do abuso deste, quando praticado pelo legislador. A História o demonstra, sendo importante, às vezes, proteger a minoria em face dos abusos da maioria, até para que a democracia continue possível (é preciso deixar as regras do jogo a salvo de modificação pelos próprios jogadores, para que o jogo continue possível). E essa cautela deve ser maior ainda no Brasil, cuja Constituição é muito mais prolixa e minudente que a dos EUA.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

5.ª edição do Processo Tributário


Acabo de receber da Atlas a notícia de que a quinta edição do meu "Processo Tributário" ficou pronta. Fiquei bastante satisfeito, pois, embora não haja grande mudança em relação à 4.ª, o esgotamento mostra a aceitação que o livro vem recebendo, e possibilita o aprimoramento do texto. Transcrevo, aqui, a nota que fiz à nova edição, que explica no que consistiram as alterações:



O esgotamento da quarta edição deste Processo tributário, lançada em 2009, deixa-me duplamente satisfeito. Primeiro, porque confere oportunidade para que o texto seja novamente atualizado e aperfeiçoado em alguns pontos. Segundo, porque revela a acolhida com a qual este livro tem contado por parte do público especializado.
Quanto às atualizações, não foram de grande monta, permanecendo o livro, essencialmente, o mesmo da edição anterior. No plano legislativo, foi colocado em dia com a nova lei do mandado de segurança (Lei n.º 12.016/2009), mas esta, como se sabe, trouxe poucas disposições efetivamente novas, tendo basicamente consolidado a legislação anterior e a jurisprudência que em face dela se produziu. Quanto à jurisprudência, foram inseridas referências a algumas súmulas, tanto do STF como do STJ, tendo especialmente este último editado um número razoável delas em matéria processual tributária. Também aqui as alterações não foram profundas, pois as súmulas, em sua maior parte, são fruto de jurisprudência consolidada há algum tempo e já mencionada em edições anteriores deste livro. No mais, as mudanças consistem no polimento no texto, aqui e ali, e no esclarecimento de posições que, em face de observações e dúvidas de alunos, pareceram-me carentes de melhor explicação.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Midia Louca

Nessas férias levei meus filhos para Salvador. A idéia era mostrar-lhes um pouco da nossa história, de nossa cultura e de nossas raízes. Assim poderão dizer, mais tarde, quando tiverem viajado mais, que conhecem não apenas o mundo, mas também a Bahia. :)
Bom, nesse contexto, caminhava por Salvador, no Rio Vermelho, quando me deparei com uma pequena e interessantíssima livraria chamada Midia Louca. Entrei por acaso, e gostei muito.
O acervo era composto, basicamente, de livros não muito conhecidos, de editoras idem. Não porque sejam ruins - muito pelo contrário. São apenas diferentes daqueles que quase saltam aos nossos olhos quando entramos em livrarias do estilo Megastore. Uma comparação interessante: é como cotejar filmes de Hollywood com aqueles veiculados no Sundance Festival, ou com os produzidos na Europa. Adquiri alguns títulos sobre filosofia, os quais, depois de lidos, serão mencionados aqui. Por enquanto, estou gostando, pela simplicidade e facilidade com que trata de tema tão complexo (sem prejuízo da seriedade), da leitura do livro "O que é a justiça?", de Marina Velasco. É bom principalmente para indicar a alunos iniciantes, que se perderiam na (muitas vezes desnecessária) aridez de outros livros que cuidam do mesmo assunto (clique aqui).
Mas o melhor mesmo era ser atendido por vendedores que entendiam dos livros e dos discos que indicavam, e que até, com base na preferência do cliente por um produto, ousavam indicar outro, análogo ou correlato. Não faziam como a maioria dos que trabalham em grandes lojas, que pedem para que se soletre (lentamente) o nome do mais elementar dos autores, para que possam saber, pelo sistema, se o livro procurado consta ou não do estoque. Lembrei-me de Mensagem para Você, filme em que Meg Ryan e Tom Hanks protagonizam, respectivamente, a dona de uma pequena livraria e o proprietário de uma Megastore.
Aliás, a esse respeito, conhecido meu narra a história de um vendedor que, perguntado pelo cliente sobre o Requiem de Mozart, respondeu, depois de consultar o sistema: - Tenho outro CD com "essa mesma música" cantada por Brahms, serve?

É. A massificação tem vantagens e desvantagens...

* Registro que nada tenho contra lojas do tipo Megastore. São excelentes, e as freqüento com bastante assiduidade. Livrarias pequenas como a que estou referindo nem sempre têm o que precisamos, e os vendedores de grandes livrarias nem sempre são ignorantes a respeito do que vendem. Nesse campo, talvez o melhor seja justamente freqüentar ambas, para que se nos amplifiquem as opções.

** Indiquei, acima, o site da livraria. E reconheço que a internet é o melhor instrumento para procurarmos livros, principalmente quando já sabemos o que queremos. Mas garimpar às cegas, como quem não quer nada, ainda é um excelente programa, que às vezes nos leva a achados aleatórios que, na internet, não teríamos como fazer. Aqui, também, o melhor talvez seja não substituir uma coisa pela outra, mas sim alterná-las.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Direito Tributário nas Súmulas do STJ e do STF - Atualização On-line


Já está disponível no site da editora Atlas, devidamente editorado e diagramado, o arquivo contendo a atualização do meu "Direito Tributário nas Súmulas do STJ e do STF" (clique aqui).

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Menos do que nada

Algum tempo se passou desde a última postagem. Resolvi tirar férias e, para deixar tudo em dia no escritório antes de sair (alguns clientes parece que adivinham e trazem as urgências justo nessa hora), não dispus de tempo para postar nada. Depois, viajando, não quis postar nada.
Mas, antes de viajar, ocorreu-me uma coisa que, pensei, renderia um post no momento oportuno. E é o que faço agora, ainda retomando o ritmo de trabalho.
O fato rendeu-me boas risadas, dentro de uma filosofia de "rir para não chorar". E mostra o quanto se perde tempo e energia com burocracia inútil no Brasil. Vamos a ele.

***

Há algumas semanas tive de tirar o "certificado digital" da sociedade de advogados da qual faço parte. Tal providência tornou-se necessária para o cumprimento de obrigações tributárias acessórias junto à Secretaria da Receita Federal.
Com nossa contadora, preenchi um enorme formulário e levei toda a documentação solicitada pela instituição que forneceria o certificado digital (Serpro). Chegando lá, fui atendido por uma gentil senhora que passou, com muita atenção, a verificar se eu havia preenchido o formulário corretamente:
- Nome... Ok... Endereço... Ok... CNPJ... Ok... Nome do sócio... Certo... Qualificação do sócio... Hum...
Os músculos de sua face então se contraíram, ela levantou-me a vista e disse:
- Você errou no preenchimento. Não poderei dar-lhe o certificado...
- Onde o erro, senhora? Indaguei surpreso. Ao que ela respondeu: - A identidade! Esse não é seu RG!

Realmente, eu não havia utilizado o meu número de RG, mas o da OAB. É menor, mais fácil de memorizar, de preencher, daí porque o utilizo com frequência quando tenho de dar algum número de identificação em hotéis, contratos, certidões etc. Por isso, argumentei:

- Mas, senhora, o número de OAB também é um número de identidade.
- Sim, mas não pode. Tem que ser o RG.
- Por quê?
- Porque sim. São normas internas...

Já preocupado, porque se avizinhava o término do prazo para cumprir as obrigações acessórias para as quais o certificado digital seria necessário, e sem estar muito disposto a esperar mais outro tanto para ser atendido em outro dia, insisti:

- Mas a carteira fornecida pela OAB também é uma identidade. Do mesmo modo que aquela fornecida pelo Ministério do Trabalho (CTPS), pela Polícia Federal (passaporte), ou pela Secretaria de Segurança Pública (RG)...

Cheguei a tirar do bolso a minha carteira da ordem, que tem mencionada a disposição legal segundo a qual ela serve como identidade em todo o território nacional. Mostrei a ela, que respondeu:

- É, pode ser que tenha essa lei aí, mas aqui nos temos normas. E as normas internas do Serpro dizem que só o RG serve...
- Ok, então posso preencher outro formulário, usando o meu RG dessa vez?
- Talvez. Deixe eu ver o contrato social da firma... Não! Não pode! No contrato social não consta seu RG, e o formulário do certificado digital tem que ter o mesmo número de identidade usado no contrato social.

Tinha sido por isso mesmo que eu havia usado o número da OAB, pois sabia que, segundo o Serpro, o meu número de identidade deveria ser o mesmo que constava do contrato social da pessoa jurídica. A lógica era: como eu fazia o certificado digital de uma sociedade de advogados, e constaria como seu representante, meu número de identidade deveria ser aquele pelo qual eu estava identificado no contrato social correspondente.

Ri, e respondi brincando: - Agora quebrou dentro. Não pode a OAB por causa das normas internas do Serpro, que prevalecem sobre a Lei 8.906/94. E não pode o RG porque não é o documento usado para identificar o sócio no bojo do contrato social. E agora, a firma ficará sem certificado digital? Terei de fazer um aditivo ao contrato social, inserindo, em minha identificação como sócio, o meu número de RG?

A senhora fez então um ar de sabedoria e de quem estava disposta a realmente resolver meu problema, e disse:

- Não faz mal. É só deixar em branco.
- O quê? Como assim?
- Simples. O senhor volta para o escritório, preenche pela internet outro formulário requerendo a concessão de um certificado digital, e ao se identificar, deixa em branco o campo destinado ao número do documento de identidade. Imprime e volta para cá. Olhe que o pessoal aqui vai embora às 16:00, mas, para o senhor ver como não estou de má vontade, poderei esperar até as 16:30.

Nessa hora não aguentei e comecei a rir. Depois de me controlar um pouco, perguntei: - Deixar em branco? Então a inscrição na OAB vale menos do que nada? Indicá-la é pior do que deixar em branco o espaço?
- É. São as normas internas.
- Ah, tá. Claro. As normas internas.

Sendo pragmático, e considerando a multa pelo atraso na entrega da declaração à Receita Federal, fiz o que ela disse e consegui tirar o certificado. Mas não parava de pensar no livro O CASTELO, de F. Kafka. É um livro muito, mas muito bom. Fazendo um paralelo com O PROCESSO, no qual o mesmo autor narra absurdos havidos no âmbito de um processo judicial, O CASTELO trata da Administração Pública, de seu funcionamento, mas tudo na mesma tônica onírica e fantasticamente arbitrária, burocrática, irracional e opressora.

A propósito de burocracia, na ocasião, estupefato, só consegui pensar na inscrição da OAB valendo menos do que nada para a concessão do certificado digital. Mas, depois, conversando com um colega no twitter, ouvi algo bastante preciso: - Ora essa, se se trata de campo que pode sem prejuízo ser deixado em branco, por que exigir o seu preenchimento (com o RG ou qualquer outro número)? Pura burocracia mesmo...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Tributação e Roubo


Embora o título possa sugerir, não vou falar, aqui, que a carga tributária é elevada, que não há retorno, que muitos métodos de cobrança são abusivos etc. Pretendo cuidar, em verdade, do regime tributário do roubo, por parte de quem o sofre.
Por parte de quem rouba, a doutrina e a jurisprudência já se posicionaram há algum tempo. A origem ilícita do rendimento não exime seu titular de pagar o imposto, e em geral se admite a tributação dos fatos ilícitos (CTN, art. 118), fundada no princípio do non olet.
O problema, agora, diz respeito a quem sofre o roubo, e torna-se mais relevante na medida em que a violência, sobretudo no Brasil, cresce assustadoramente.
Imaginem só: uma empresa é roubada, e, mesmo assim, tem que pagar tributo sobre os itens correspondentes, como se os houvesse vendido. Foi o que decidiu, por maioria, o STJ:

IPI. FATO GERADOR. ROUBO.

É consabido que o fato gerador do IPI é a saída do produto industrializado do estabelecimento industrial ou equiparado, seja qual for o título jurídico de que decorra (art. 46, II, do CTN; art. 2º, II e § 2º, da Lei n. 4.502/1964, e art. 32, II, do Dec. n. 2.637/1998 – RIPI). Dessa forma, o roubo ou furto da mercadoria depois da saída (implemento do fato gerador do IPI) não afasta a tributação; pois sem aplicação o contido no art. 174, V, do RIPI/1998. O roubo ou furto são riscos inerentes à atividade industrial, logo o prejuízo sofrido individualmente e decorrente do exercício da atividade econômica não pode ser transferido para a sociedade sob o manto do não pagamento do tributo devido. Esse entendimento foi acolhido pela maioria dos componentes da Turma após o prosseguimento do julgamento do recurso. Precedentes citados do STF: RE 562.980-SC, DJe 19/12/2010; do STJ: REsp 860.369-PE, DJe 18/12/2009. REsp 734.403-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/6/2010.


Dizer que o roubo é "inerente à atividade industrial", e que esse risco seria "transferido para a sociedade sob o manto do não pagamento do tributo devido", com todo o respeito, é falacioso.
A questão é que o fato gerador do IPI é uma operação da qual decorra a saída da mercadoria do estabelecimento industrial. Não é a mera saída física. Dá-se o mesmo com o ICMS: o seu fato gerador é a saída "jurídico-contábil" do bem, e não sua saída física. Do contrário, sempre que alguém fizesse um test-drive em um veículo (que assim "sairia" da concessionária), o imposto deveria ser pago, ainda que o carro não fosse vendido.
Na verdade, no caso em questão o fato gerador do IPI nem chegou a ocorrer. A situação é análoga, aliás, à que ocorreria se as mercadorias se tivessem extraviado. Imagine-se, por exemplo, se o caminhão que as leva virasse em uma ladeira, e as mercadorias perecessem: não haveria imposto devido.
Aliás, o perecimento de uma mercadoria é um risco da atividade empresarial, e nem por isso se afirma que uma mercadoria que se estraga (e assim não é vendida) deve submeter-se, ao ser jogada no lixo, ao ICMS ou ao IPI, sob pena de "transferir-se o risco para a sociedade sob o manto do não pagamento do imposto". Do mesmo modo, o prejuízo em uma atividade empresarial é um risco a ela inerente, mas não é por isso que será devido o imposto de renda sobre tal prejuízo, para evitar a tal "transferência para a sociedade sob o manto do não pagamento do imposto".

Se as mercadorias tivessem sido vendidas com cláusula FOB, e o roubo ocorresse depois, tudo bem. Afinal, a venda ocorreu. A transferência se deu. O fato gerador surgiu. Se o comprador foi roubado depois, problema dele. Mas, no caso, a questão era de roubo ANTES da entrega ao comprador. Nessa hipótese, a operação não se consuma. Tanto que, se o comprador já pagou pela aquisição ou ainda pretende fazê-lo de qualquer modo, novo carregamento da mesma mercadoria lhe terá de ser enviado (e o imposto, no caso, será cobrado duas vezes...). Ou, se o comprador ainda não pagou e desiste da compra depois do roubo, a operação simplesmente não se consuma, mas o imposto...

Não falta mais nada mesmo. Além de não dar a mínima segurança, a mais elementar de suas funções, que mesmo o mais liberal dos pensadores não ousa retirar de sua responsabilidade, o Estado agora pretende tributar os que são roubados, como se nisso houvesse alguma manifestação de capacidade contributiva, de riqueza. E como se houvesse apoio moral para tanto. Se isso aparecesse nas páginas de um livro de História como tendo ocorrido há um par de Séculos, acharíamos absurdo. Mas, sendo hoje, é pura decorrência do "interesse público"...

terça-feira, 8 de junho de 2010

A LC 118 e o encurtamento do prazo prescricional.


Já referi aqui no blog que o STF parece ser "anti-STJ". Se o contribuinte ganha uma questão no STJ, pode esperar que, no STF, vai perder. E vice-versa. Foi assim com COFINS de sociedades de profissionais, com o ICMS incidente na importação de aeronaves, com a restituição do ICMS-ST, com o crédito de IPI no caso de entradas tributadas e saídas isentas etc. Não se trata, como já disse, de ser contra ou a favor do contribuinte. Se um decide uma tese contra o contribuinte, o outro a decide a favor dele, e vice versa. A idéia é um desmanchar a jurisprudência do outro. Raríssimas são as vezes em que ambos conhecem da mesma tese e a resolvem de maneira convergente. Pode ser coincidência, é claro. Não sugiro que seja proposital. Mas que ocorre, ocorre, e, como gosta de repetir o meu pai, contra fatos não há argumentos.
Está ocorrendo algo nesse sentido, agora, em relação à LC 118/2005, e a pretensa "diminuição", por ela veiculada, do prazo prescricional previsto no art. 168, I, do CTN.
Como se sabe, pela tese que ficou conhecida como "dos 5+5", o contribuinte tinha, na prática, 10 anos para pleitear a restituição do indébito, relativamente aos tributos sujeitos a lançamento por homologação.
Em meu CTN anotado eu havia escrito:

O pagamento antecipado extingue o crédito, desde que a autoridade competente, ao homologar a apuração levada a cabo pelo contribuinte, conclua pelo seu acerto e pela suficiência do respectivo pagamento. É por isso que o art. 156 do CTN alude ao pagamento antecipado e à homologação, juntos, como causa da extinção do crédito tributário, em se tratando de lançamento por homologação. Essa, aliás, foi a premissa maior sobre a qual se construiu a tese dos “5+5”, relativamente ao prazo de prescrição da ação de restituição do indébito: (i) o prazo de prescrição, de cinco anos, conta-se a partir da extinção do crédito; (ii) em se tratando de lançamento por homologação, essa extinção ocorre, quando a homologação é tácita (o que ocorre na maioria das vezes), cinco anos após os respectivos fatos geradores; logo, (iii) o prazo de prescrição, de cinco anos, somente tem início ao cabo de cinco anos após a ocorrência do fato gerador.

Entretanto, deve-se ressaltar que essa tese dos “5+5”, já consagrada no STJ, foi expressamente afastada pela LC no 118/2005. Pretendeu-se dar à citada norma caráter intepretativo, para que a mesma pudesse retroagir, o que o STJ não aceitou. Sua aplicação, pois, pode ocorrer apenas em relação aos pagamentos indevidos ocorridos a partir de junho de 2005, da seguinte forma: "(...) É possível simplificar a aplicação da citada regra de direito intertemporal da seguinte forma: I) Para os recolhimentos efetuados até 8/6/2000 (cinco anos antes do inicio da vigência LC 118/2005) aplica-se a regra dos "cinco mais cinco"; II) Para os recolhimentos efetuados entre 9/6/2000 a 8/6/2005 a prescrição ocorrerá em 8/6/2010 (cinco anos a contar da vigência da LC 118/2005); e III) Para os recolhimentos efetuados a partir de 9/6/2005 (início de vigência da LC 118/2005) aplica-se a prescrição quinquenal contada da data do pagamento. Conclui-se, ainda, de forma pragmática, que para todas as ações protocolizadas até 8/6/2010 (cinco anos da vigência da LC 118/05) é de ser afastada a prescrição de indébitos efetuados nos 10 anos anteriores ao seu ajuizamento, nos casos de homologação tácita. (...)" (STJ, 1.ª T, REsp 1086871/SC, j. em 24/03/2009, DJe de 02/04/2009). Confiram-se, a propósito, as notas ao art. 106, I, do CTN.

A questão estava resolvida, pelo STJ, no âmbito dos chamados "recursos repetitivos", não comportando mais discussão. E, a meu ver, estava resolvida corretamente. O "encurtamento" do prazo, levado a efeito pela LC 118/2005, não pode de maneira alguma ser aplicado senão a pagamentos indevidos que ocorram a partir do início de sua vigência, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade das leis. É uma questão de Teoria do Direito, e de respeito à idéia de tempus regit actum, como escrevi em texto que publiquei na Revista Dialética de Direito Tributário há alguns anos:

“Normas que cuidam de prazos, notadamente de prazos longos, como são os prescricionais, quando são alteradas, devem respeitar certos postulados de direito intertemporal, sob pena de retroagirem. Imagine-se que o prazo para a interposição do recurso extraordinário, que é de 15 dias, seja reduzido para 10 dias, e a lei que assim dispõe entra em vigor quando determinado advogado estava a concluir seu recurso, para protocolá-lo no 14.º dia do prazo. A aplicação imediata do novo prazo, de 10 dias, “puxará o tapete” do tal advogado, que, em vez de ainda ter um dia de prazo, já terá estourado em quatro dias o seu prazo.
O mesmo ocorre com a repetição do indébito tributário. Caso se entenda que o prazo era de 10 anos, sua redução imediata para 5 anos implicará a total supressão do direito à restituição para todos aqueles que já tinham deixado passar mais da metade do prazo que tinham. Se a LC 118/2005 não tivesse contado com uma vacatio legis, a surpresa teria sido total, mas isso é irrelevante, pois a vacatio naturalmente não dá à lei autorização para, quando entrar em vigor, retroagir.
Trata-se de uma conseqüência óbvia de algumas noções de Teoria Geral do Direito.
Cumpre lembrar que o suporte fático (hipótese de incidência, tatbestand, fattispecie) da norma que cuida de um prazo prescricional contém, ao lado de outros elementos (existência de pretensão, inexistência de hipóteses interruptivas ou suspensivas etc.), um essencial: o tempo (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Campinas: Bookseller, 2000, tomo 6, p. 146). Sua estrutura lingüística pode ser descrita mais ou menos assim:

- se transcorrerem “x” anos a partir do termo inicial “t” (hipótese);
- considera-se prescrita a pretensão relativa a “p” (conseqüência).

Suponha-se que a norma N1 fixa esse prazo prescricional em 10 anos. Sob a sua vigência, Miguel vê ocorrer o termo inicial “t”, e deixa transcorrerem 8 anos sem ajuizar a ação. A norma ainda não incidiu, e, por isso mesmo, pode-se dizer que a prescrição da pretensão de Miguel ainda não está consumada. Entretanto, antes de se consumarem os 10 anos, uma nova norma (N2) altera esse prazo, reduzindo-o para 5 anos. Nesse contexto, caso se proceda à “aplicação imediata” de N2 a uma ação proposta por Miguel após a sua vigência, a sua incidência ocorrerá sobre suporte fático ocorrido muito antes, em nítida e total retroatividade. O transcurso dos cinco anos, que provoca a incidência da norma e gera como conseqüência a consumação da prescrição, no caso, ocorreu antes do início de sua vigência.
Por conta disso, a norma nova (N2) somente pode ser aplicada aos suportes fáticos (transcurso cinco anos...) que ocorrerem após o início de sua vigência. Daí porque se uma norma nova aumenta prazos prescricionais, pode ser aplicada imediatamente aos prazos em curso, sem problema algum, o que não ocorre com aquela que reduz esses prazos. Quando há redução, a norma nova somente é aplicável quando o “pedaço” do prazo anterior ainda por transcorrer for maior que o novo prazo nela fixado. Se for menor, a norma nova não pode ser aplicada (pois não poderá alcançar a parte desse prazo temporalmente situada antes do início de sua vigência), devendo, por isso, a situação continuar sendo disciplinada pela norma anterior (N1).
Dessa forma, para que haja o necessário respeito à regra da irretroatividade das leis, a regra do art. 3.º da LC 118/2005 somente pode ser aplicada aos prazos em curso de forma a que, depois de sua vigência, não se disponha de prazo superior a 5 anos para a restituição do indébito tributário. Tudo dependerá de quanto do prazo em curso ainda subsiste. Se um contribuinte, com a entrada em vigor da LC 118/2005, dispunha ainda de 6, 7, 8, ou 9 anos para postular a restituição do indébito tributário, esse prazo é reduzido de sorte a que somente subsistam mais 5 anos. Mas se mais da metade do prazo já se escoou (e, portanto, faltam menos de 5 anos para que o prazo se encerre por completo), o prazo deve ser contado nos termos da legislação anterior. (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Lançamento por homologação, repetição do indébito e prescrição. O "encurtamento" do prazo levado a efeito pela LC 118/2005. Revista Dialética de Direito Tributário n.º 140, p. 45 e ss.)

Não obstante, a questão foi submetida ao STF pela Fazenda em face da decisão do STJ que considerou inconstitucional a aplicação retroativa da LC 118/2005. E, no STF, a questão - que no STJ foi resolvida pacificamente em favor do contribuinte - está praticamente empatada (?!). Foi o que se noticiou:

Pedido de vista adia julgamento sobre prazo para pedir restituição de pagamento indevido de tributos sujeitos a lançamento por homologação

Pedido de vista do ministro Eros Grau interrompeu, nesta quarta-feira (5) o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 566621, em que se discute a constitucionalidade da segunda parte do artigo 4º da Lei Complementar nº 118/2005, que determinou a aplicação retroativa do seu artigo 3º, norma que, ao interpretar o artigo 168, I, do Código Tributário Nacional (CTN), fixou em cinco anos, desde o pagamento indevido, o prazo para o contribuinte buscar a repetição de indébitos tributários (restituição) relativamente a tributos sujeitos a lançamento por homologação.

O julgamento foi adiado quando cinco ministros já haviam se manifestado pela inconstitucionalidade do artigo mencionado da LC 118 por violação à segurança jurídica, pois teria se sobreposto, de forma retroativa, à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que consolidou interpretação no sentido de que o prazo seria de dez anos contados do fato gerador.

A chamada tese dos "cinco mais cinco", firmada pelo STJ, decorreu da aplicação combinada dos artigos 150, parágrafos 1º e 4º, 156, VII, e 168, I, do CTN. De acordo com interpretação de tais artigos, o contribuinte tinha o prazo de cinco anos para solicitar a restituição de valores, contados do decurso do prazo para homologação, também de cinco anos, mas contados do fato gerador. Com isso, na prática, nos casos de homologação tácita, o prazo era de dez anos contados do fato gerador.

Repercussão geral

O STF deu ao processo o caráter de repercussão geral. Assim, um grande número de processos versando sobre o mesmo assunto, em tramitação nos mais diversos tribunais, ficam suspensos até a decisão de mérito do STF sobre o tema.

No julgamento de hoje, a relatora, ministra Ellen Gracie, reportou-se ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 605, relatada pelo ministro Celso de Mello, lembrando que, naquela oportunidade, a Suprema Corte assentou que mesmo as leis que se autoproclamam interpretativas estão sujeitas ao crivo do Judiciário.

Analisando o art. 3º da LC 118/2005, a ministra entendeu que o dispositivo não tem caráter meramente interpretativo, pois inova no mundo jurídico, reduzindo o prazo de dez anos consolidado pela jurisprudência do STJ. Assim, descabe dar ao art. 3º aplicação retroativa, sob pena de violação ao princípio da segurança jurídica. Para a relatora, também viola tal princípio a aplicação imediata e abrupta do prazo novo a ações imediatamente posteriores à publicação da LC 118/05. Entendeu, no ponto, que os 120 dias de vacacio legis (adaptação) configuram tempo necessário e suficiente para a transição do prazo maior de 10 anos para o prazo menor de 5 anos, viabilizando, após o seu decurso, a partir de 9 de junho de 2005, a aplicação plena do art. 3º da LC 118/05 às ações ajuizadas a partir de então.

A ministra Ellen Gracie adotou, assim, o entendimento do próprio STF na Súmula 445, em detrimento da aplicação do art. 2.028 do Código Civil. É que, tendo a LC 118/05 estabelecido aplicação retroativa, só caberia eliminar o que é inconstitucional, não havendo lacuna que permita a invocação do art. 2.028.

Em suma, ela considerou inconstitucional a segunda parte do artigo 4º da LC 118/05, por violação à segurança jurídica, entendendo aplicável o novo prazo às ações ajuizadas após a vacacio legis, ou seja, a partir de 9 de junho de 2005.

Votaram de acordo com a ministra Ellen Gracie os ministros Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Cezar Peluso. Mas, para o ministro Celso, o novo prazo só poderia ser aplicado aos fatos (indébitos) posteriores à vigência da LC 118/05 .

Divergência

O ministro Marco Aurélio foi o segundo a votar e abriu a divergência em relação ao voto da ministra Ellen Gracie. Para ele, a Lei Complementar 118/05 apenas interpreta a regra que já valia – ou seja, a reclamação dos valores pagos indevidamente deve ser feita no prazo de cinco anos segundo o que estaria previsto desde 1966, no CTN.

Ao divergir do voto da relatora, o ministro Marco Aurélio deu razão à União e proveu o RE. Segundo ele, foi o STJ que flexibilizou indevidamente esse prazo para dez anos.

Como ele, votaram os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Gilmar Mendes.

FK,MG/EH,LP

Processos relacionados
RE 566621


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Como o julgamento ainda não foi concluído, é ainda possível que algum ministro mude seu entendimento quanto ao início da incidência do novo prazo, para aderir à tese, corretíssima, do Min. Celso de Mello. Mas, se isso não ocorrer, na melhor das hipóteses o contribuinte não terá a lei aplicada a ações já em curso quando de sua propositura, atingindo-se, porém, todos aqueles que ajuizaram ações algum tempo depois, ainda que para recuperar pagamentos feitos antes da nova lei.
Com todo o respeito, a questão não é, como pareceu à Ministra Ellen, de analogia, de omissão legislativa ou de vontade do legislador. A questão é de respeito ao princípio da irretroatividade, e à idéia de que se o "suporte fático" da norma que trata do prazo de prescrição é o decurso de um lapso de cinco anos, essa norma somente pode incidir sobre cinco anos que tenham ocorrido integralmente depois de sua vigência. Do contrário, estará atingindo fatos anteriores a ela, em prejuízo à segurança jurídica.
Resta aguardar para ver como o STF, com o voto dos ministros que faltam, resolverá a questão.