terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Direito Tributário Internacional

Atendendo ao gentil convite da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, vim até São Paulo ontem à noite, e retorno a Fortaleza hoje à noite.O tema da aula, que me foi sugerido pela coordenação, foi "Regimes Excepcionais: Garantias e Benefícios Concedidos por Tratados e Convenções Internacionais. Competência legislativa: vigência no tempo e no espaço".


O curso - diga-se de passagem - pareceu-me muito bom. Não só pela turma, interessada e preparada, composta basicamente de Procuradores do Estado de São Paulo e de Auditores da Fazenda Estadual, mas também de servidores públicos de outras esferas da Administração Pública Estadual e de pessoas oriundas do público em geral, mas pelo programa, e pela maneira como é conduzido. Contou com um primeiro semestre só de aprofundamento em questões de Teoria do Direito, Teoria do Estado e Filosofia do Direito. No segundo semestre, do qual minha aula de hoje foi a primeira, verão Direito Material Tributário. E, no último, Direito Processual Tributário. A preocupação, disse-me a coordenadora, é a de não só reproduzir afirmações supostamente descritivas em torno do ordenamento, a serem memorizadas, mas estimular o aluno a pensar o Direito como um todo. Muito bom.


Foi até uma feliz coincidência, porque levei um exemplar do "Por que Dogmática Jurídica?", para sortear entre os alunos, e achava que o interesse seria mínimo, por ser tema um tanto filosófico, mas não. Tiveram bastante interesse, por ter muita relação com a matéria já vista. Só que, em vez de sorteado, o livro acabou na biblioteca da PGE/SP, para consulta pelos alunos. Tanto melhor, pois não ficará em poder só do que viesse a ser sorteado, e os demais, se quiserem, continuam podendo comprá-lo.


Mas faço essa postagem, na verdade, para resenhar um pouco do que discutimos lá. Afinal, tive de preparar alguns assuntos para serem discutidos, e acredito pertinente inseri-los aqui. Integrarão, em parte, também a atualização do "Código Tributário Nacional - Comentários à CF/88, ao CTN, e às LCs 87/96 e 116/2003", e do "Direito Tributário e Financeiro". Além disso, tais informações podem ser úteis aos meus alunos de graduação da Faculdade Christus, em Fortaleza, que em breve estarão estudando o art. 98 do CTN e o art. 151, III, da CF/88. A eles, aliás, essa postagem explica o motivo de eu haver faltado à aula de segunda-feira à noite.

Sempre que lembro de tratados, instrumentos através dos quais Estados soberanos mantêm entendimentos e contraem direitos e obrigações, uniformizando legislações, pactuando tratamento recíproco diferenciado aos seus cidadãos etc., recordo do Tratado de Kadesh, celebrado no Século XIII a.C entre o Egito e Império Hitita, no qual se pactua a "não-agressão" e a "ajuda mútua" em caso de agressão externa entre esses dois Estados. Li, quando ainda estava na graduação - como divertimento, é claro - os livros da coleção "Ramsés", de Christian Jacq, que cuidam da vida de Ramsés II. Neles, é narrada (de forma um tanto romanceada) a celebração desse Tratado, e o próprio nascimento do Direito Internacional. No ano passado, tive a oportunidade de ver, ao vivo, um "pedaço" dele, no museu de arqueologia de Istambul, e recordei de toda a história de Ramsés II e de tudo o que deve ter antecedido (e sucedido) a feitura daqueles caracteres a nós tão estranhos... É impressionante imaginar a quantidade de fatos, pessoas, vidas e emoções que orbitaram aquele pedaço de cultura humana, a quantidade de tempo passado desde sua feitura, seu significado à época e hoje... Não é à toa que Le Goff define "o documento" não como "un material bruto, objectivo e inocente, sino que expresa el poder de la sociedad del pasado sobre la memoria y el futuro: el documento es monumento." (Jacques Le Goff, Pensar La Historia, trad. de Marta Vasallo, Barcelona: Paidós, 2005, p. 11).







Tratado de Kadesh - O primeiro tratado de paz que se conhece.




Mas chega de divagações! Vamos lá. Os assuntos são:
1) Qual a hierarquia dos tratados internacionais?
2) Tratados internacionais podem conceder isenções de tributos estaduais e municipais?
O livro que melhor cuida desses temas - e do Direito Tributário Internacional como um todo - é o "Direito Tributário Internacional do Brasil", do Professor Alberto Xavier.


Passemos ao exame do primeiro ponto


A hierarquia do tratado internacional


O art. 98 do CTN dispõe:

"Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha."


Para muitos autores, esse dispositivo é meramente declaratório, explicitante de algo que decorre da própria natureza do tratado internacional.Para outros, porém, e especialmente para a jurisprudência do STF, tal disposição não poderia prevalecer sobre a Constituição, que equipararia o tratado internacional à lei ordinária, facultando a esta a sua posterior revogação. Com efeito, o tratado internacional é referendado pelo Congresso Nacional através de Decreto Legislativo, que teria igual hierarquia à lei ordinária, podendo ser por ela modificada.

A questão, contudo, está em não confundir o tratado internacional com o decreto legislativo utilizado em seu referendo pelo Congresso Nacional.O tratado não é o decreto legislativo. Este apenas é uma das partes de sua elaboração. Como a sanção e a promulgação da lei pelo Presidente da República. Tanto que a CF faz diversas referências aos tratados como fonte do Direito, em nenhum momento a eles faz referência mencionando os decretos legislativos utilizados pelo Congresso no referendo destes. Confiram-se, a propósito, o art. 5.º,§ 2.º, o art.105, III, "a"...


A decisão do STF, nesse ponto, foi, de acordo com os autores do Direito Internacional Público, um grande retrocesso. Desde 1912 o STF reconhecia a primazia dos tratados,decorrente do fato de que uma lei interna posterior não os pode contrariar. Só ao final da década de 1970 o STF modificou seu entendimento para colocá-lo na contramão do Direito Internacional.



Tratado e benefícios fiscais relativos a tributos estaduais e municipais


Mas, no trato da segunda questão, relativa às isenções de tributos estaduais e municipais concedidas por decreto, o STF parece estar firmando um entendimento (a meu ver correto) que é inteiramente incompatível com a afirmação de que tratados internacionais, no Direito Interno (num dualismo inteiramente ultrapassado), seriam equiparados à lei ordinária.A questão está, como se sabe, na interpretação do art. 151, III, da CF/88, que dispõe:


Art. 151. É vedado à União:

(...)

III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios."

Poderia a União, em face dessa proibição, conceder isenção - através de tratado internacional - de tributo estadual ou municipal?A primeira resposta, fundada no elemento literal, é de que não, a União não pode conceder tais isenções. O art.151, III, da CF, conseqüência direta do princípio federativo, o proibiria.Isso, aliás, comprometeria seriamente a integração do Brasil em blocos ou comunidades internacionais, pois inviabilizaria a celebração de tratados em torno do ICMS, o principal tributo circulatório no Brasil, de competência estadual.Mas a questão é mais complexa.No plano internacional, não existem "União", "Estados-membros", "Distrito Federal" e "Municípios". Tais entes representam divisões verticais INTERNAS do Estado Brasileiro, fundadas na nossa Constituição. Não existem para a comunidade internacional. Quem observa o Brasil, de fora, vê apenas a República Federativa do Brasil.E a República Federativa do Brasil, no plano internacional, é apenas REPRESENTADA pela União, que, na verdade, nessa representação - como em toda representação - não age em nome próprio, mas em nome da pessoa representada. Inclusive dos Estados e Municípios. Daí a inaplicabilidade do art. 151,III, da CF aos tratados internacionais.Foi o que, sob o aplauso da maior parte da doutrina brasileira, decidiu, recentemente, o STF:
"O Tribunal deu provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul queentendera não recepcionada pela CF/88 a isenção de ICMS relativa a mercadoria importada de país signatário do Acordo Geral sobre Tarifase Comércio - GATT, quando isento o similar nacional. Discutia-se, na espécie, a constitucionalidade de tratado internacional que instituiisenção de tributos de competência dos Estados-membros da Federação — Entendeu-se que a norma inscrita no art. <151>, III, da CF ( ... ),limita-se a impedir que a União institua, no âmbito de sua competência interna federal, isenções de tributos estaduais, distritais oumunicipais, não se aplicando, portanto, às hipóteses em que a União atua como sujeito de direito na ordem internacional."(RE 229.096, Rel. p/ o ac. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 16-8-07, (Informativo 476).


Essa posição, a nosso ver, é incompatível com a afirmação de que o tratado tem hierarquia de lei ordinária e, nessa condição, pode ser suplantado por lei ordinária posterior.No caso de tributo estadual, como isso ocorreria? A União celebraria tratado, concedendo isenção de ICMS em determinadas operações,e em seguida esse tratado (equiparado à lei ordinária federal, por ser referendado via decreto legislativo?) poderia ser revogado por lei ordinária estadual?Claro que não. A posição do tratado é intermédia. Está abaixo da Constituição, mas acima das leis. De todas, sejam elas estaduais, municipais ou federais. Assim, ao firmar o entendimento manifestado no RE 229.096, o STF terá que, forçosamente, rever a ultrapassada jurisprudência segundo a qual o tratado "se equipara" a uma lei ordinária interna, podendo ser revogado por qualquer lei posterior que lhe seja contrária...Se versarem Direitos Humanos, e forem aprovados por procedimento semelhante ao das emendas, podem até ter status constitucional, mas isso é uma outra questão, que deixo para outra postagem.

Um comentário:

Unknown disse...

Segundo,

Acho acertada a decisao do STF sobre a possibilidade da Uniao conceder isençao como sujeito de Direito na ordem internacional.
A uniao precisa desta autonomia e nao vejo inconstitucinalidade, tratados sao discutidos levando em conta os interesseses de todos, além da representaçao junto a OMC.
Caso a reforma tributaria seja aprovada com a entrada do IVA seria o fim da guerra fiscal e agora como tratariamos a discurssao das isençoes concedidas pela uniao ??? ja que em meu entedimento os interesses passariam a ser mutuos.

Daniel Aragao