quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Dom Quixote

Meu orientador, no curso de Doutorado, afirmou altamente recomendável a leitura de livros de literatura. Sobretudo dos clássicos. Algo que eu sempre tive o hábito de fazer. Mas ele indicou particularmente dois autores, cuja leitura seria imprescindível para a feitura de uma tese de doutorado, que eu ainda não havia lido. Eça de Queiros e Cervantes.
Eça, na verdade, eu já tinha lido, mas só a Relíquia. Depois da recomendação, li "A cidade e as serras", tendo inclusive feito postagem a respeito.
Pois bem. Entre outras coisas, concluí, neste carnaval que passei na praia, a leitura de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.
A leitura é fabulosa. Não é à toa que se trata do segundo livro mais traduzido no mundo, depois da Bíblia.
Há tantas coisas a referir, a respeito dele, que uma postagem não será suficiente. Mesmo assim, adianto algumas.
Pois bem.
Vamos a algumas observações que podem ser feitas de algumas passagens do livro:
p. 208 (cap. XXXI, parte I) - Sempre que escrevemos, por vezes nos vemos diante de situações para cuja descrição as palavras que conhecemos parecem insuficientes. Para caso assim, Cervantes escreveu, usando a fala de Sancho Pança: "Sabereis, amigo, que nós outros, os escudeiros dos cavaleiros andantes, andamos expostos a muitas fomes, além de outras desgraças e coisas que melhor se sentem do que se explicam."
p. 399 (cap. XII, parte II) - Notável passagem sobre a igualdade dos homens. Dom Quixote fala de um teatro, e observa ocorrer o mesmo no teatro da vida:
"- Pois o mesmo - observa Dom Quixote - acontece no trato deste mundo, onde uns fazem de imperadores, outros de pontífices, e finalmente todos os papéis que podem aparecer numa comédia; mas chegando ao fim, que é quando se acaba a vida,a todos lhes tira a morte as roupas que os diferenciam, e ficam iguais na sepultura.
- Ótima comparação! - disse Sancho. - Apesar de não ser tão nova que eu não a ouvisse já muitas e diversas vezes, como a do jogo de xadrez, no qual, enquanto dura, cada peça desempenha o seu papel especial e, quando acaba, todas se misturam, se juntam e se baralham e se metem num saco, que é o mesmo que dar com a vida no sepulcro."
p. 432 (cap. XVIII, parte II) - Dando conselhos a um jovem poeta, Dom Quixote observa: "limito-me a advertir a Vossa Mercê que, sendo poeta, poderá ser famoso, se se guiar mais pelo parecer alheio do que pela própria opinião; porque não há pai nem mãe a quem pareçam feios os filhos, e nos que são filhos do entendimento ainda mais corre este engano."
p. 622 (cap. LX, parte II) - Diante da "honestidade" de um bando de ladrões na divisão do produto do roubo, Sancho observa: "é tão boa coisa a justiça, que é necessária até entre os ladrões."
Existem, enfim, diversos aspectos da obra, genial, dignos de nota e de comentários mais alentados. Mas não me parece ser esta a ocasião para tanto. Por enquanto, deixo apenas mais uma observação. O caráter "inovador" da obra, no que diz respeito à sua estrutura e ao seu estilo.
Diz-se, em relação ao "pós-modernismo", surgido ao final do século XX, que sua influência na literatura pode ser verificada pelo surgimento de livros que: i) misturam vários gêneros ou estilos literários; ii) comentam outros trabalhos de ficção; iii) contém interrupções externas do "fluxo natural" da trama. No dizer de Glenn Ward, "the postmodernist novel is concerned with being fiction, and with being about fiction. It asks, can reality be separated from the stories we tell about it?"
Em suma, a literatura pós-moderna não esconde do leitor o fato de que ele está lendo uma história, e procura confundi-lo em torno da separação entre a realidade e a ficção. Pois bem. Dom Quixote usa e abusa desses recursos.
Logo no início, faz remissão à dificuldade de se escrever um livro, sobretudo por conta daqueles que "não se contendo nos limites de sua ignorância, costumem condenar com mais rigor e menos justiça os trabalhos alheios."
Quanto às citações, diz: "custa-me muito a andar procurando autores que me digam aquilo que eu muito bem me sei dizer sem eles." (p. 15, prólogo).
O mais interessante, porém, está no capítulo VI, da primeira parte, que cuida "Do curioso e grande expurgo que o padre-cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo". Nessa parte, Cervantes faz uma análise muito bem humorada e irônica dos principais livros existentes à época, usando seus personagens para, através deles, exprimir juízos de valor sobre os livros e determinar quais deveriam ser queimados ou não. Algo semelhante ocorre em outras passagens do livro, até que, no início e no final da parte II, Cervantes faz alusão à parte I, à sua notoriedade (a parte II foi lançada muitos anos depois da parte I), faz alusão a uma cópia que teria sido lançada... Nessa parte, Cervantes aproveita inclusive para corrigir alguns lapsos constantes da primeira, como o desaparecimento e o posterior aparecimento do ruço de Sancho Pança, sem explicação. E afirma: "lendo com vagar obras impressas, facilmente se lhes descobrem os erros, e tanto mais se esquadrinham, quanto maior é a fama de quem os compôs. Os homens famosos pelo seu engenho, os grandes poetas, os ilustres historiadores, sempre a maior parte das vezes são invejados por aqueles que têm por gosto e particular entretenimento o julgar os escritos alheios, sem ter dado um só à luz do mundo."
Há algo mais "pós-moderno" que isso?

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