Faz algum tempo que reflito sobre a questão das regras e dos princípios. Não porque não tenha conseguido entender o que geralmente se diz a respeito do assunto, ou porque discorde do que se diz, mas simplesmente porque certos assuntos - esse é um - são suficientemente instigantes para que simplesmente sejam "dados por vistos" e pronto.
Estou até quase que definitivamente decidido a elaborar minha tese de doutorado sobre o pós-positivismo, mais especificamente sobre o fundamento do direito segundo essa escola de pensamento jurídico (se é que se pode falar de "uma"). Aliás, o nome "pós-positivismo" só nos diz que se trata que algo que veio depois do positivismo, o que não revela muito. Afinal, o próprio positivismo normativista, só para citar um exemplo, é posterior ao positivismo sociológico. Esse "pós" parece apenas algo para designar uma coisa que veio depois de outra e para a qual ainda não se arranjou termo melhor. Algo semelhante ao que ocorre com o "pós-modernismo".
Bom, mas deixando essa discussão mais profunda de lado, por enquanto, faço essa postagem só para registrar duas coisas, que me pareceram de discussão relevante em face de alguns comentários que vi postados no blog do George. São os seguintes:
- a cientificidade do Direito.
- a "insegurança" decorrente da Teoria do Direito que reconhece a positividade dos princípios e sua aplicação através do postulado da proporcionalidade.
Quanto à cientificidade do Direito, cabe registrar que não só as normas que disciplinam a vida em determinada sociedade, com os fatos e valores a elas subjacentes, podem ser objeto de um estudo científico, como QUALQUER OBJETO pode ser examinado ou estudado cientificamente. O método científico se caracteriza pela abertura, pelo não-dogmatismo, pela provisoriedade de suas verdades e pela constante evolução. Uma aproximação constante da verdade absoluta, que, no entanto, nunca é atingida. Não é atingida porque sempre é possível uma nova aproximação do objeto, e uma nova "leitura" dele, que lhe descobre outras nuances antes não vistas. Desde que seja estudado de forma não-dogmática, o fenômeno jurídico (valoração de fatos que redunda na feitura e depois na aplicação de normas, visando à compartição da liberdade humana e à preservação de sua dignidade) pode, sim, ser objeto de um estudo científico. Quem diz que "o direito não é ciência" não sabe o que é direito ou, mais provavelmente, não sabe o que é ciência.
Agora, quanto à insegurança causada pelo "direito por princípios", que minaria a "objetividade" e a "certeza" de uma visão normativista do Direito, tenho que essa é talvez a mais infundada crítica que se pode fazer à teorização e à aplicação dos princípios. Os principais autores positivistas reconhecem que a ciência do Direito, neutra, objetiva, segura, mensurável etc., é incapaz de fornecer ao intérprete UM significado correto da norma interpretada. Sempre serão cientificamente admissíveis vários significados. Kelsen, a esse respeito, falava de um "quadro ou moldura" de significados possíveis, em face do qual a escolha de um, a ser feita pelo intérprete em cada caso, seria um ato de vontade, ou politico, guiado por critérios e fatores alheios à ciência do Direito (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, tradução de João Baptista Machado, 6.ª ed., 4.ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 369). Daí Paulo Bonavides fazer alusão à sua teoria da interpretação como sendo uma interpretação "voluntarista". Herbert Hart diz algo muito semelhante, como, de resto, a maior parte dos autores positivistas.
É o caso, então, de perguntar: quadro ou moldura?! Vários significados possíveis?! Escolha "voluntarista"?! Onde está a "segurança jurídica" disso?!
Não foi à toa que Karl Larenz afirmou, nesse contexto, que “(...) quando Kelsen, para se manter longe de tais juízos de valor, declara que a ciência do Direito é incapaz de atingir, através da ‘interpretação’ de uma norma, juízos ‘corretos’, ‘deita a criança fora com a água do banho’”. (Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., tradução de José Lamego, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 107).
O que se tentou fazer, posteriormente, foi procurar critérios para que essa escolha fosse o menos subjetiva e arbitrária possível. Perelman, a propósito, escreveu: “Kelsen reconhecia, sem dúvida, que o juiz não é um mero autômato, na medida em que as leis que aplica, permitindo diversas interpretações, dão-lhe certa latitude, mas a escolha entre essas interpretações depende, não da ciência do direito nem do conhecimento, mas da vontade livre e arbitrária ...” (Lógica jurídica, tradução de Vergínia K. Pupi, 1.ed., 3.ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 93)
Assim, o que se tem é o seguinte: diante de um texto "claro", dois positivistas ortodoxos podem divergir à vontade, que a sua "ciência" será incapaz de resolver o problema. Um ministro do STF decide uma questão de uma maneira, invocando a interpretação literal, e outro de outra maneira, invocando a sistêmica, e ambos não aceitam discutir pois estão apenas cumprindo a lei que o outro abertamente viola. E ambos acreditam piamente nisso. O "pós-positivismo", a ponderação, o "direito por princípios", etc., permitem que o debate continue. Que não seja interrompido no "é assim porque é claro!" e ponto.
E Kelsen, não se pode ignorar, deu passos importantíssimos para isso: i) reconheceu a insuficiência da ciência "pura" para dar uma solução para cada problema; ii) reconheceu que essas soluções podem ser diferentes para cada caso; iii) reconheceu que a solução será encontrada pelo intérprete em cada caso. Ele só não achava que isso tudo fosse científico... Mas, considerando que a idéia que se tem de ciência, hoje, é bem diferente da existente no início do Século XX, a superação desse obstáculo não representa qualquer dificuldade.
Trato desse assunto - e da questão da cientificidade - no livro intitulado "Por que dogmática jurídica?", que o departamento editorial da Forense prometeu-me para este mês de fevereiro. E venho deixando pitadas a respeito dele em alguns artigos que tenho escrito, sobretudo em um último, que sairá em uma das próximas RDDPs, sobre o cabimento de mandado de segurança contra ato jurisdicional, no qual examino um caso concreto que vivenciei, de MS impetrado contra ato de relator, meses antes Presidente do TRF da 5.ª Região, em situação que não deixou de ser emocionante.
Mas, em suma, a mensagem que queria passar era essa: atualmente, com os princípios, e a proporcionalidade, se pode explicar o porquê de certas interpretações, e de certas escolhas, sendo possível sobretudo saber QUAL fundamentação exigir do intérprete/aplicador; essas interpretações, e essas escolhas, diga-se de passagem, sempre foram tomadas, mas antes a justificação não ia muito além do que os métodos clássicos de interpretação permitiam. Não se dizia a razão pela qual uma dada interpretação fora considerada melhor que outra.
Volto a insistir: a ponderação é feita por todos, à cada escolha que a vida nos impõe. A questão foi descobrir isso, no Direito, e teorizar a fundamentação correspondente, necessária para justificar a escolha tomada.
Volto a insistir: a ponderação é feita por todos, à cada escolha que a vida nos impõe. A questão foi descobrir isso, no Direito, e teorizar a fundamentação correspondente, necessária para justificar a escolha tomada.
Ouvindo um amigo meu, médico, falando de seu trabalho em uma emergência, na qual muitas vezes os médicos, em face da carência de recursos (e de camas, balões de oxigênio etc.), têm de escolher quem tentarão salvar (e quem deixarão morrer), tal como o robô do filme com Will Smith, pensei em como ele aplica todos os dias a "fórmula do peso", ponderando valores. Fui tentar explicar isso para ele, em termos "alexyanos", e ele então perguntou: "mas isso não é o óbvio?"
Só para encerrar, e deixar os que são contrários "a essa tal ponderação em cada caso concreto" com algo mais para refletir, lembro que esse assunto, como muitos outros, é bem mais antigo do que se pensa. Refiro-me ao clássico diálogo entre Sócrates e Eutidemo em torno da justiça, que chegou à contemporaneidade pelas palavras de Xenofonte. Tendo sido estabelecido por Eutidemo que a mentira e a apropriação seriam ações sempre injustas, e não justas, Sócrates o faz reconhecer a justiça de tais atitudes, em certas circunstâncias, diante das peculiaridades de certos casos concretos por ele imaginados:
“- Pois bem – prosseguiu Sócrates -, se, vendo suas tropas desanimadas, anuncia-lhe falsamente um general que lhes chegam auxílios e dessa forma consegue devolver-lhes a coragem, de que lado colocaremos essa mentira?
– Do lado da justiça, acredito.
– E se precisando uma criança de remédio e não querendo tomá-lo, seus pais a enganam, impingindo-lhe o remédio mesclado com alimentos, e assim lhe restituem a saúde, onde poremos este engano?
– Do mesmo lado.
– Enfim, se vejo um amigo presa do desespero e por temer que atente contra a vida, tomo-lhe a espada e todas as demais armas, de que lado colocas tal atitude?
– Por Zeus! Claro que do lado da justiça.”
(Xenofonte, “Ditos e feitos memoráveis de Sócrates”, in Sócrates – Coleção Os Pensadores, tradução de Enrico Corvisieri e Mirtes Coscodai, São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 230)
Em suma, dependendo do caso, a mentira e a apropriação podem ser plenamente justificáveis. E quem dirá o contrário?
A cada dia me convenço do acerto da lição de Perelman, para quem a clareza de um texto normativo, examinado "em tese", decorre, muito mais, da falta de imaginação de seu intérprete (para suscitar casos que poderiam torná-lo controverso). O exemplo da placa "é proibida a entrada de cães e gatos), e da questão suscitada pela chegada de um cego com seu cão guia, e do rico excêntrico com seu urso, é bem elucidativo a esse respeito.
Esses temas me estão revirando os miolos nos últimos tempos, mas de forma muito estimulante (para mim, pelo menos). Como um quebra-cabeças a ser desvendado. E o mais incrível é ver como muitos que aparentemente discordam, e seguem correntes distintas, terminam às vezes chegando no mesmo lugar.
“- Pois bem – prosseguiu Sócrates -, se, vendo suas tropas desanimadas, anuncia-lhe falsamente um general que lhes chegam auxílios e dessa forma consegue devolver-lhes a coragem, de que lado colocaremos essa mentira?
– Do lado da justiça, acredito.
– E se precisando uma criança de remédio e não querendo tomá-lo, seus pais a enganam, impingindo-lhe o remédio mesclado com alimentos, e assim lhe restituem a saúde, onde poremos este engano?
– Do mesmo lado.
– Enfim, se vejo um amigo presa do desespero e por temer que atente contra a vida, tomo-lhe a espada e todas as demais armas, de que lado colocas tal atitude?
– Por Zeus! Claro que do lado da justiça.”
(Xenofonte, “Ditos e feitos memoráveis de Sócrates”, in Sócrates – Coleção Os Pensadores, tradução de Enrico Corvisieri e Mirtes Coscodai, São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 230)
Em suma, dependendo do caso, a mentira e a apropriação podem ser plenamente justificáveis. E quem dirá o contrário?
A cada dia me convenço do acerto da lição de Perelman, para quem a clareza de um texto normativo, examinado "em tese", decorre, muito mais, da falta de imaginação de seu intérprete (para suscitar casos que poderiam torná-lo controverso). O exemplo da placa "é proibida a entrada de cães e gatos), e da questão suscitada pela chegada de um cego com seu cão guia, e do rico excêntrico com seu urso, é bem elucidativo a esse respeito.
Esses temas me estão revirando os miolos nos últimos tempos, mas de forma muito estimulante (para mim, pelo menos). Como um quebra-cabeças a ser desvendado. E o mais incrível é ver como muitos que aparentemente discordam, e seguem correntes distintas, terminam às vezes chegando no mesmo lugar.
Depois - agora tenho outras coisas para fazer, e não posso alongar essa postagem - vou ver se escrevo algo sobre Dworkin, e um possível significado para o princípio da dignidade da pessoa humana. Tenho percebido que muita gente fala (bem e mal) desse autor sem conhecê-lo pelo menos minimamente, tal como ocorre com Kelsen. Seus escritos são muito mais profundos e atuais do que se pensa.
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