Algum tempo se passou desde a última postagem. Resolvi tirar férias e, para deixar tudo em dia no escritório antes de sair (alguns clientes parece que adivinham e trazem as urgências justo nessa hora), não dispus de tempo para postar nada. Depois, viajando, não quis postar nada.
Mas, antes de viajar, ocorreu-me uma coisa que, pensei, renderia um post no momento oportuno. E é o que faço agora, ainda retomando o ritmo de trabalho.
O fato rendeu-me boas risadas, dentro de uma filosofia de "rir para não chorar". E mostra o quanto se perde tempo e energia com burocracia inútil no Brasil. Vamos a ele.
***
Há algumas semanas tive de tirar o "certificado digital" da sociedade de advogados da qual faço parte. Tal providência tornou-se necessária para o cumprimento de obrigações tributárias acessórias junto à Secretaria da Receita Federal.
Com nossa contadora, preenchi um enorme formulário e levei toda a documentação solicitada pela instituição que forneceria o certificado digital (Serpro). Chegando lá, fui atendido por uma gentil senhora que passou, com muita atenção, a verificar se eu havia preenchido o formulário corretamente:
- Nome... Ok... Endereço... Ok... CNPJ... Ok... Nome do sócio... Certo... Qualificação do sócio... Hum...
Os músculos de sua face então se contraíram, ela levantou-me a vista e disse:
- Você errou no preenchimento. Não poderei dar-lhe o certificado...
- Onde o erro, senhora? Indaguei surpreso. Ao que ela respondeu: - A identidade! Esse não é seu RG!
Realmente, eu não havia utilizado o meu número de RG, mas o da OAB. É menor, mais fácil de memorizar, de preencher, daí porque o utilizo com frequência quando tenho de dar algum número de identificação em hotéis, contratos, certidões etc. Por isso, argumentei:
- Mas, senhora, o número de OAB também é um número de identidade.
- Sim, mas não pode. Tem que ser o RG.
- Por quê?
- Porque sim. São normas internas...
Já preocupado, porque se avizinhava o término do prazo para cumprir as obrigações acessórias para as quais o certificado digital seria necessário, e sem estar muito disposto a esperar mais outro tanto para ser atendido em outro dia, insisti:
- Mas a carteira fornecida pela OAB também é uma identidade. Do mesmo modo que aquela fornecida pelo Ministério do Trabalho (CTPS), pela Polícia Federal (passaporte), ou pela Secretaria de Segurança Pública (RG)...
Cheguei a tirar do bolso a minha carteira da ordem, que tem mencionada a disposição legal segundo a qual ela serve como identidade em todo o território nacional. Mostrei a ela, que respondeu:
- É, pode ser que tenha essa lei aí, mas aqui nos temos normas. E as normas internas do Serpro dizem que só o RG serve...
- Ok, então posso preencher outro formulário, usando o meu RG dessa vez?
- Talvez. Deixe eu ver o contrato social da firma... Não! Não pode! No contrato social não consta seu RG, e o formulário do certificado digital tem que ter o mesmo número de identidade usado no contrato social.
Tinha sido por isso mesmo que eu havia usado o número da OAB, pois sabia que, segundo o Serpro, o meu número de identidade deveria ser o mesmo que constava do contrato social da pessoa jurídica. A lógica era: como eu fazia o certificado digital de uma sociedade de advogados, e constaria como seu representante, meu número de identidade deveria ser aquele pelo qual eu estava identificado no contrato social correspondente.
Ri, e respondi brincando: - Agora quebrou dentro. Não pode a OAB por causa das normas internas do Serpro, que prevalecem sobre a Lei 8.906/94. E não pode o RG porque não é o documento usado para identificar o sócio no bojo do contrato social. E agora, a firma ficará sem certificado digital? Terei de fazer um aditivo ao contrato social, inserindo, em minha identificação como sócio, o meu número de RG?
A senhora fez então um ar de sabedoria e de quem estava disposta a realmente resolver meu problema, e disse:
- Não faz mal. É só deixar em branco.
- O quê? Como assim?
- Simples. O senhor volta para o escritório, preenche pela internet outro formulário requerendo a concessão de um certificado digital, e ao se identificar, deixa em branco o campo destinado ao número do documento de identidade. Imprime e volta para cá. Olhe que o pessoal aqui vai embora às 16:00, mas, para o senhor ver como não estou de má vontade, poderei esperar até as 16:30.
Nessa hora não aguentei e comecei a rir. Depois de me controlar um pouco, perguntei: - Deixar em branco? Então a inscrição na OAB vale menos do que nada? Indicá-la é pior do que deixar em branco o espaço?
- É. São as normas internas.
- Ah, tá. Claro. As normas internas.
Sendo pragmático, e considerando a multa pelo atraso na entrega da declaração à Receita Federal, fiz o que ela disse e consegui tirar o certificado. Mas não parava de pensar no livro O CASTELO, de F. Kafka. É um livro muito, mas muito bom. Fazendo um paralelo com O PROCESSO, no qual o mesmo autor narra absurdos havidos no âmbito de um processo judicial, O CASTELO trata da Administração Pública, de seu funcionamento, mas tudo na mesma tônica onírica e fantasticamente arbitrária, burocrática, irracional e opressora.
A propósito de burocracia, na ocasião, estupefato, só consegui pensar na inscrição da OAB valendo menos do que nada para a concessão do certificado digital. Mas, depois, conversando com um colega no twitter, ouvi algo bastante preciso: - Ora essa, se se trata de campo que pode sem prejuízo ser deixado em branco, por que exigir o seu preenchimento (com o RG ou qualquer outro número)? Pura burocracia mesmo...