terça-feira, 30 de julho de 2019

Extinção sem exame do mérito e conversão em renda

Quando estou explicando a alunos de graduação a figura do depósito para suspender a exigibilidade do crédito tributário, esclareço que as causas de suspensão (CTN, art. 151) comunicam-se, de algum modo, com as causas de extinção (CTN, art. 156).

Exemplificando, se a exigibilidade é suspensa por uma moratória, ou por um parcelamento, trata-se de situação provisória que tende a se tornar, de maneira definitiva, uma extinção pelo pagamento (se o parcelamento for todo cumprido, naturalmente). Na mesma ordem de ideias, a exigibilidade suspensa por uma reclamação ou por um recurso administrativo pode desaguar em uma extinção decorrente de decisão administrativa irreformável.

Quando tratamos do depósito, digo então que a procedência dos pedidos formulados pelo autor da ação (v.g., da ação anulatória), uma vez que transite em julgado a sentença correspondente, extingue o crédito (CTN, art. 156, X), autorizando o levantamento do depósito pelo contribuinte. Caso os pedidos sejam julgados improcedentes, o depósito é convertido em renda para a Fazenda Pública, o que é outra causa de extinção.

Nesse momento, às vezes tem um aluno mais curioso, e atento, que pergunta:

- Mas professor, e se o feito for extinto sem exame do mérito?

Fico desconcertado, porque não sei o que responder.

Não porque não não saiba a "resposta CESPE", nível concurseiro. Essa é fácil: o valor é entregue à Fazenda Pública! Se o aluno duvidar, ou achar absurdo (e é mesmo!), cito a jurisprudência:

PROCESSUAL CIVIL. DEPÓSITO JUDICIAL. LEVANTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE.
ENTENDIMENTO PACÍFICO.
1. Hipótese em que o acórdão embargado aplicou jurisprudência conhecida e pacífica do STJ, no sentido de que depósito judicial realizado por sujeito passivo tributário somente poderá ser por ele levantado se vencedor no mérito da demanda. Em caso de extinção sem julgamento de mérito, o valor é convertido em renda do Fisco, exceto na hipótese de o ente político não ser sujeito ativo da exação.
2. Não há dissídio com os precedentes confrontados. No julgamento dos EREsp 227.835/SP, a Seção apenas reconheceu o efeito de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, em caso de depósito integral. Em relação ao REsp 809.786/RS, a Segunda Turma não adentrou o mérito da demanda, por não conhecer do Recurso Especial.
3. Agravo Regimental não provido.
(AgRg nos EAg 1300823/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2012, DJe 31/10/2012)

 Mais que isso, contudo, não consigo explicar, por mais que tente. À perplexidade do aluno, revelo, com toda a sinceridade, somar-se a minha. - Mas como, se não há exame do mérito, um bem que pertencia até então a uma parte (o depósito), é assim entregue à outra?!

Não, não tem justificativa. Como não há, por igual, para essa "única exceção" inventada pelo próprio STJ para não aplicar o entendimento: "quando o ente público não for sujeito ativo da exação". Ora, mas as ações anulatórias, e os mandados de segurança, quando usados como ação antiexacional, não pretendem demonstrar exatamente isso, que o ente público não é sujeito ativo DAQUELA exação, porque ela não existe validamente?!

Dir-se-á que, no caso, o entendimento do STJ não se aplica quando a entidade pública não é o sujeito ativo da exação, sendo essa a causa da extinção sem análise do mérito. Até porque, aí, o absurdo conseguiria ser ainda maior: extinguir uma ação anulatória movida por contribuinte contra um Município, impugnando uma cobrança de IPI, e fazê-lo porque o credor do IPI seria a União, mas como consequência entregar o depósito ao Município... Seja como for, em nenhuma hipótese de extinção sem exame do mérito a entrega do depósito ao ente público se justifica. O contrassenso é o mesmo, pois se a decisão não examinou o mérito da questão posta, não há nada que justifique entregar-se o dinheiro do depósito, até então pertencente ao contribuinte autor, à Fazenda ré.

Se serve de consolo, pelo menos o leading case que decidiu o tema citou meu livro, "Processo Tributário", onde o assunto é tratado. Por certo que a citação deu-se no voto VENCIDO, da Ministra Eliana Calmon (EREsp 215.589 - clique aqui). Mas, como disse, é apenas um consolo, e certamente o é apenas para mim...



E você, leitor: encontra justificativa jurídica para a referida decisão? Se a querela posta pelas partes não foi sequer examinada, como se pode tirar um bem de uma para entregar à outra, por conta desse "não exame"?! Deposite nos comentários sua opinião!

Dissecando o CTN - quadro no Youtube

Em 1986, com 8 anos, tinha um Tk90X, programava em Basic e sabia fazer algumas coisas no computador, como a difícil tarefa de gravar em fitas K-7 os programas que escrevia.

Digo isso apenas para registrar que sempre gostei de tecnologia, estando sempre atualizado com as novidades. Embora goste de canetas pena, discos de vinil e livros antigos, principalmente primeiras edições, nunca fui avesso às novidades. Pelo contrário, sou e sempre fui um entusiasta delas.

De um tempo para cá, porém, meus filhos começaram a passar de mim nesse quesito. Talvez por eu estar ficando mais velho. Talvez por eles terem mais tempo livre para aprender certas coisas. Não sei. O fato é que Lara, minha filha mais velha, acadêmica de Direito, embora tenha muitos livros impressos, e já esteja com extensa biblioteca física própria, diversa da pertencente aos seus pais, adquire muitas informações - de qualidade, diga-se - na internet, e não apenas artigos e livros eletrônicos: também podcasts e principalmente videos no Youtube. Relatou-me ainda que alguns de seus colegas estudam bastante por esse meio, o que observo por igual em meus filhos mais novos e em seus colegas.

Pensando um pouco sobre o assunto, ocorreu-me que precisamos deixar de lado o preconceito e refletir sobre o seguinte: a informação escrita surgiu por conta da necessidade de preservar relatos, dada a efemeridade - à época - da oralidade. Se o orador tivesse de sair, ficasse cansado, dormisse ou morresse, a história desapareceria, de forma momentânea ou permanente. O registro escrito surgiu para superar esses problemas. A internet, nessa ordem de ideias, confere ao relato oral as características que ele não tinha e que justificaram o surgimento da escrita. Daí a grande popularidade que videos do youtube têm, talvez por despertarem algo ancestral no humano.

Não quero, com isso, sugerir que a escrita tenha perdido a importância, pois ela permite sutilezas, riquezas de expressão, concentração, aprofundamento e uma série de outras qualidades que o video talvez não alcance. Mas, se os alunos e leitores procuram cada vez mais informações na internet, sob a forma de videos, por que não utilizar TAMBÉM esse meio? Foi partindo dessa ideia, e das provocações de Paulinho, meu filho, que se ofereceu para ser meu editor, que resolvi criar um quadro em canal do Youtube para "dissecar" o CTN, examinando-o artigo por artigo, em vídeos a serem publicados duas vezes por semana. Segue abaixo o primeiro deles:







Para receber as notificações dos próximos vídeos, que comentarão os artigos do Código, basta se inscrever no canal, diretamente no youtube.

domingo, 28 de julho de 2019

Comentários à Súmula 622 do STJ

domingo, 21 de julho de 2019

Anything goes!

Retornando de uma viagem de férias à África do Sul, no longo voo de volta, concluía a leitura do "Ciência, um monstro: lições trentinas", de Paul Feyerabend, e me veio a ideia de retomar com maior periodicidade as postagens deste blog.

Ele havia ficado um tempo parado, em função do uso mais frequente de outras mídias, como o instagram, mas percebi que elas não se excluem, nem se destinam umas a substituírem outras. As redes sociais têm esse apelo - proposital, pois é o seu negócio - de nos levarem todos para dentro delas, fazendo com que se faça por meio delas o que antes se fazia em outros sítios da internet. O problema é que o seu conteúdo - exatamente para nos manter constantemente conectados - é efêmero. Ou vemos a informação no momento em que é postada, ou depois (semanas, meses, anos...) pode ser difícil de ver ou localizar.

Por outro lado, a comunicação por meio de mensagens curtas, ou por fotografias, não suprime o uso de textos ligeiramente mais longos, que podem ser pertinentes para aprofundar um pouco o trato de certos assuntos. No blog, se pode fazer isso com a rapidez das redes sociais, mas deixando o conteúdo acessível a todos na web, e passível de localização pelo google. Por outro lado, não se tem o tempo de espera para que uma revista publique o texto, que, de resto, no blog tem uma informalidade e muito menor profundidade que aqueles publicados em periódicos especializados. Enfim, uma ferramenta a mais, que estava sem uso, e da qual, aqui, pretenderei tirar um pouco da poeira.

Mas e o livro do Feyerabend?





Trata-se de livro oriundo de uma série de palestras que Feyerabend fez na Itália, a convite de acadêmicos italianos. Ao cabo de cada conferência, ele recebia comentários, perguntas e críticas, e se manifestava sobre eles. Tudo foi reduzido a termo, e se acrescentaram, anos depois, textos escritos por esses outros professores que com ele debateram, os quais tratam de suas impressões sobre o autor, sobre sua obra, e, mais interessante, sobre os bastidores do evento e do comportamento de Feyerabend no campo pessoal. 

Para quem se interessa por epistemologia, ou filosofia da ciência, a leitura é imprescindível. Feyerabend é autor de grande importância, principalmente pelas críticas que faz à visão tradicional de ciência. Assim, seria contraditório, para dizer o menos, defender a ciência (que pretende ser aberta a críticas, falibilista etc.) ignorando as críticas que lhe são feitas. Pode-se discordar delas, mas não é possível desconsiderá-las. Aliás, em ciência - como em qualquer outro contexto que se pretenda racional - deve-se ter respeito à ideia subjacente (de forma obviamente didática) ao art. 489, § 1.º, IV, do CPC: para fundamentar uma conclusão, é preciso afastar todas as razões levantadas contra ela e passíveis, em tese, de infirmá-la.

Mas o livro é indicado a quem se interessa pelo conhecimento humano em geral, e pela pesquisa acadêmica, em qualquer área. Como ocorre com outros autores que assumem posição, em princípio, aparentemente muito radical, o contraditório permitiu a Feyerabend (como se deu com Thomas Kuhn) explicar que muitas das conclusões que tiram de suas obras são erradas ou exageradas. Ele talvez tenha apenas levado Popper, de quem foi aluno, às últimas consequências, quando propôs que, do ponto de vista metodológico, "vale tudo".

Aprofundar o pensamento de Feyerabend, contudo, já não seria adequado aos limites deste post. Uma crítica, ainda que breve, pode ser encontrada no "Direito e sua Ciência", mas talvez eu escreva algo mais específico, sob a forma de um artigo científico, a partir de reflexões decorrentes da leitura do "lições trentinas". Deixo aqui apenas o registro, que me pareceu divertido, de que a expressão "vale tudo", constante das obras do autor em português, consta no original em inglês como "anything goes", tendo a inspiração para o seu uso vindo de ninguém menos que Cole Porter. É divertida essa relação, que mostra o lado humano - ou não apenas acadêmico - dos autores, que também se divertem e ouvem música. Confirma ainda o pensamento de Feyerabend de que ciência, filosofia e arte se completam, não tendo entre si distinções tão claras quanto se imagina. Assim como, depois de ler Bronowski, não consigo ouvir "Is you or is you ain´t my baby" da mesma forma (assunto para outro post...), a música de Cole Porter agora sempre parece transportar ao anarquismo metodológico de Feyerabend. Para quem não lembra dela, segue o vídeo da versão interpretada por Lady Gaga e Tony Bennnet:




E então, será que, no campo do conhecimento humano, inclusive do "saber como fazer", "anything goes"? Se alguém, usando métodos "não científicos", calcados em tradições e "conhecimentos tácitos", faz uma cerveja mais saborosa que outra feita seguindo o "método científico", escolheríamos beber qual das duas?