domingo, 21 de julho de 2019

Anything goes!

Retornando de uma viagem de férias à África do Sul, no longo voo de volta, concluía a leitura do "Ciência, um monstro: lições trentinas", de Paul Feyerabend, e me veio a ideia de retomar com maior periodicidade as postagens deste blog.

Ele havia ficado um tempo parado, em função do uso mais frequente de outras mídias, como o instagram, mas percebi que elas não se excluem, nem se destinam umas a substituírem outras. As redes sociais têm esse apelo - proposital, pois é o seu negócio - de nos levarem todos para dentro delas, fazendo com que se faça por meio delas o que antes se fazia em outros sítios da internet. O problema é que o seu conteúdo - exatamente para nos manter constantemente conectados - é efêmero. Ou vemos a informação no momento em que é postada, ou depois (semanas, meses, anos...) pode ser difícil de ver ou localizar.

Por outro lado, a comunicação por meio de mensagens curtas, ou por fotografias, não suprime o uso de textos ligeiramente mais longos, que podem ser pertinentes para aprofundar um pouco o trato de certos assuntos. No blog, se pode fazer isso com a rapidez das redes sociais, mas deixando o conteúdo acessível a todos na web, e passível de localização pelo google. Por outro lado, não se tem o tempo de espera para que uma revista publique o texto, que, de resto, no blog tem uma informalidade e muito menor profundidade que aqueles publicados em periódicos especializados. Enfim, uma ferramenta a mais, que estava sem uso, e da qual, aqui, pretenderei tirar um pouco da poeira.

Mas e o livro do Feyerabend?





Trata-se de livro oriundo de uma série de palestras que Feyerabend fez na Itália, a convite de acadêmicos italianos. Ao cabo de cada conferência, ele recebia comentários, perguntas e críticas, e se manifestava sobre eles. Tudo foi reduzido a termo, e se acrescentaram, anos depois, textos escritos por esses outros professores que com ele debateram, os quais tratam de suas impressões sobre o autor, sobre sua obra, e, mais interessante, sobre os bastidores do evento e do comportamento de Feyerabend no campo pessoal. 

Para quem se interessa por epistemologia, ou filosofia da ciência, a leitura é imprescindível. Feyerabend é autor de grande importância, principalmente pelas críticas que faz à visão tradicional de ciência. Assim, seria contraditório, para dizer o menos, defender a ciência (que pretende ser aberta a críticas, falibilista etc.) ignorando as críticas que lhe são feitas. Pode-se discordar delas, mas não é possível desconsiderá-las. Aliás, em ciência - como em qualquer outro contexto que se pretenda racional - deve-se ter respeito à ideia subjacente (de forma obviamente didática) ao art. 489, § 1.º, IV, do CPC: para fundamentar uma conclusão, é preciso afastar todas as razões levantadas contra ela e passíveis, em tese, de infirmá-la.

Mas o livro é indicado a quem se interessa pelo conhecimento humano em geral, e pela pesquisa acadêmica, em qualquer área. Como ocorre com outros autores que assumem posição, em princípio, aparentemente muito radical, o contraditório permitiu a Feyerabend (como se deu com Thomas Kuhn) explicar que muitas das conclusões que tiram de suas obras são erradas ou exageradas. Ele talvez tenha apenas levado Popper, de quem foi aluno, às últimas consequências, quando propôs que, do ponto de vista metodológico, "vale tudo".

Aprofundar o pensamento de Feyerabend, contudo, já não seria adequado aos limites deste post. Uma crítica, ainda que breve, pode ser encontrada no "Direito e sua Ciência", mas talvez eu escreva algo mais específico, sob a forma de um artigo científico, a partir de reflexões decorrentes da leitura do "lições trentinas". Deixo aqui apenas o registro, que me pareceu divertido, de que a expressão "vale tudo", constante das obras do autor em português, consta no original em inglês como "anything goes", tendo a inspiração para o seu uso vindo de ninguém menos que Cole Porter. É divertida essa relação, que mostra o lado humano - ou não apenas acadêmico - dos autores, que também se divertem e ouvem música. Confirma ainda o pensamento de Feyerabend de que ciência, filosofia e arte se completam, não tendo entre si distinções tão claras quanto se imagina. Assim como, depois de ler Bronowski, não consigo ouvir "Is you or is you ain´t my baby" da mesma forma (assunto para outro post...), a música de Cole Porter agora sempre parece transportar ao anarquismo metodológico de Feyerabend. Para quem não lembra dela, segue o vídeo da versão interpretada por Lady Gaga e Tony Bennnet:




E então, será que, no campo do conhecimento humano, inclusive do "saber como fazer", "anything goes"? Se alguém, usando métodos "não científicos", calcados em tradições e "conhecimentos tácitos", faz uma cerveja mais saborosa que outra feita seguindo o "método científico", escolheríamos beber qual das duas?

3 comentários:

Marcílio Dantas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcílio Dantas disse...

Fico muito feliz por você ter decidido retomar as atividades do blog, Hugo. Os textos/artigos são leves e, ao mesmo tempo, riquíssimos. As referências são interessantíssimas. Saiba que ainda há pessoa acompanhando o "Direito e Democracia". Abraço.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Muito obrigado, Marcílio! Sinta-se sempre à vontade para comentar, criticar ou sugerir! Forte abraço, amigo!