sexta-feira, 5 de outubro de 2018

A Constituição Federal de 1988 e o desafio que enfrenta aos 30 anos

Outros animais - como símios e lobos - também têm sentimentos morais, e até rudimentos de uma estrutura política (Frans de Waal). O que os diferencia dos humanos é que estes últimos têm a capacidade de criar instituições, que só existem porque pactuada a sua existência. Tal como as regras de um jogo.

Outra grande diferença entre animais humanos e não-humanos é a capacidade de aplicar o método da tentativa e erro às ideias e, por conseguinte, a essas instituições. Por isso, com o tempo, elas são aprimoradas, pela possibilidade de se observarem seus defeitos e se pensarem em soluções.

No que tange a instituições jurídicas, algumas são tão antigas quanto o próprio ser humano; mas, no que diz respeito àquelas que limitam os que exercem o poder político, só a história mostrou a necessidade delas. Surgiram, em seus aspectos centrais, ao cabo de revoluções havidas entre o fim da Idade Média e meados da Idade Moderna. Pode parecer, diante disso, que o Direito Público surgiu só com essas revoluções. Que antes da Magna Carta do Rei João Sem Terra, ou da Revolução Francesa, ou da Revolução Gloriosa, não havia, por exemplo, Direito Tributário. Não foi exatamente assim. No Império Romano, por exemplo, o Direito Tributário - que existia, aliás bastante sofisticado - dependia da personalidade do Imperador do momento, e das circunstâncias. Trajano, nessa ordem de ideias, governou em período no qual se reconheciam isenções inerentes ao chamado mínimo existencial, se puniam excessos de autoridades arrecadadoras etc. Porém, com a mudança do Imperador, tudo isso cambiava também, o que levou a sistemas tributários não tão equitativos, como o de Caracala.
 
E o que isso tem a ver com a Constituição promulgada em 1988, que hoje faz 30 anos? Note o leitor que faltavam, no Império Romano, instituições que estivessem acima dos Imperadores, que os limitassem, e fossem mais duradouras do que eles. Foi isso que, no já apontado método de tentativa e erro (que nos faz humanos), levou ao surgimento de Constituições que também os reis têm que respeitar.

Em sua terceira década, a mais longeva das Constituições republicanas é por alguns considerada "ameaçada" por candidatos à eleição presidencial que cogitam em elaborar uma inteiramente nova, ou por qualquer meio sugerem que não pretendem respeitar seus preceitos. Há pessoas, algumas inclusive conhecedoras de Ciência Política e de Direito Constitucional, bastante receosas em relação ao tema, enquanto outras chegam a fazer coro à necessidade de ruptura.

O sentimento, contudo, talvez possa ser diferente. Algum receio, por certo, como é natural diante de todo desafio, mas também, paradoxalmente, confiança.

Uma Constituição não existe para ser respeitada pelo governante que deseja respeitá-la. Ela existe para ser respeitada inclusive - e principalmente - pelos que não querem fazê-lo Do contrário, voltaríamos às Ordenações Filipinas, segundo as quais “nenhuma lei, pelo rei feita, o obriga, senão enquanto ele, fundado na razão e igualdade, quiser a ela submeter o seu poder real (Livro 2, Título 35, § 21). 

Não estamos elegendo um rei, mas um, ou uma, Presidente da República. E, convém não esquecer, há uma separação de poderes vertical, e outra horizontal, que enseja também a eleição de: Deputadas e Deputados Federais, Senadoras e Senadores, Governadoras e Governadores e Deputadas e Deputados Estaduais. Todas elas e todos eles merecem igual atenção, e preocupação. Mas quase ninguém lembra disso, como se estivéssemos a eleger um rei. E, pior, um que só respeitará a Constituição se, "fundado na razão e igualdade, quiser a ela submeter o seu poder real.
 
É claro que seria bom eleger alguém disposto a cumprir a Constituição, em vez de quem queira fazer uma que se amolde aos seus gostos. Mas pretender colocar na cadeira presidencial aquele ou aquela que EU escolho, e não quem a maioria dos eleitores quer, paradoxalmente, é contrário à Constituição também... E, para piorar, muitos vêem o seu candidato como o que vai respeitar a Constituição, sendo só "os outros" (o inferno são sempre eles) os que vão acabar com ela. É preciso notar, nesse contexto, que aderir ao texto constitucional envolve, também, aceitar diferenças, inclusive e sobretudo aquelas das quais não gostamos.

Mas e quanto a aceitar algo que contraria expressamente a Constituição? Talvez a resposta envolva, de nossa parte, uma vez mais respeitá-la, para não se incorrer na contraditória postura de fazer o que se critica: as instituições delineadas na CF/88, depois de algum aprendizado com experiências passadas, boas e ruins, antigas e recentes, foram ali colocadas exatamente para conter quem não tenha a intenção de obedece-las. Separação de Poderes, forma federativa de Estado, Ministério Público independente... Ah, dirá o leitor, são só instituições... Sim, são "só" instituições. Mas se há algo que os erros do passado ensinam, em matéria de exercício do poder, é que devemos nos preocupar menos com a escolha de uma pessoa perfeita, e mais com instituições que limitem os defeitos das pessoas escolhidas. É parte do que aprendemos como humanos.

O que pode parecer uma ameaça à Constituição, assim, pode ser a prova de sua maturidade. Um ritual de passagem, um teste. Para ela e para a sociedade brasileira, que é formada não só de extremos, mas zonas intermédias também, aliás bem mais numerosas. Uma sociedade não nasce pronta para a democracia, nem tem como ser previamente preparada para ela. A democracia é algo que só se aprende exercendo, e errando. E tentando de novo. Nenhuma Constituição anterior garantiu isso como a CF/88: as regras do jogo de tentativa e erro.

Tal como o trapezista que faz malabarismos, mesmo quando há uma rede de proteção, seria preferível não errar a manobra, não escorregar do trapézio. Mas, se isso ocorrer, e a rede não conseguir amortecer a queda, o trapezista na verdade estava sem ela o tempo todo e só não sabia disso. Daí ter-se afirmado, no início deste texto, que o sentimento de apreensão pode ser acompanhado de confiança. Confiança de que uma rede entrelaçada de instituições sociais, construída pela Constituição de 1988, nos permite e continuará permitindo o exercício da democracia. Que das eleições saia vitoriosa a Constituição, mostrando que é capaz de nos proteger em qualquer cenário, preservando nosso direito de continuar tentando.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Direito e Neurociência

O mais recente número da Revista de Políticas Públicas da UNICEUB é voltado especialmente para as relações entre o Direito e a Neurociência. O tema é da maior atualidade, sendo abordado por diversos trabalhos em sua ampla gama de desdobramentos. Veja o índice aqui.

Tive a oportunidade, nesse volume, de publicar texto sobre a Ciência do Direito Tributário, a Economia Comportamental e a Extrafiscalidade, no qual se examinam reflexos (notadamente epistemológicos) de algumas constatações da economia comportamental e da neurociência sobre a ciência do direito tributário. Ou, em termos mais simples: em que as descobertas sobre como as pessoas realmente se comportam e decidem interferem na forma como a extrafiscalidade deve ser usada pelo legislador e estudada pelo jurista? (clique aqui).

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Contribuições e Federalismo

Recentemente, foi ajuizada no STF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 523 - clique aqui) na qual, em síntese, os Estados-membros reclamam parte da arrecadação obtida pela União com a DRU (Desvinculação das Receitas da União).

O assunto é muito interessante, seja sob a ótica do Direito Tributário, seja do Direito Financeiro, do Direito Constitucional ou da Teoria do Direito.

Pela ótica do Direito Tributário, leva a que se repense a figura das contribuições, e o afrouxamento reconhecido pela doutrina à sua instituição, afrouxamento esse que seria "compensado" por limites e condições a serem atendidos na outra ponta, a do gasto, os quais terminaram não tendo o efeito esperado, como se está vendo agora.

Sob o prisma do Direito Financeiro, as repercussões são mais evidentes. Os principais impostos federais têm sua receita partilhada com Estados e Municípios, e novos impostos que venham a ser criados pela União devem ser partilhados com Estados. As contribuições não, não são partilhadas (em regra, com exceção da CIDE-Combustíveis, mas isso é matéria para outro post). Pode, então, nessa ordem de ideias, haver a desvinculação de receitas da União, receitas que não são partilhadas porque são vinculadas? E, em havendo a desvinculação, não deve haver a repartição?

Essa discussão conduz às implicações para o Direito Constitucional. A federação é uma importante forma de divisão do poder, tanto que no texto constitucional de 1988 foi alçada à condição de cláusula pétrea (CF/88, art. 60, § 4.º). Entretanto, para que haja federação, é essencial a autonomia dos entes que a integram, a qual, por sua vez, pressupõe a existência de recursos que possam ser empregados nos termos em que deliberado no âmbito de cada ente federativo. Daí a preocupação do Constituinte em manter o equilíbrio na divisão das rendas tributárias, repartindo competências (art. 145, 148, 149, 153 a 156) e dividindo receitas (art. 157 a 162). E, mais importante: assegurando que sempre que houvesse aumento na arrecadação federal, seja com a majoração dos impostos federais existentes (notadamente o IR e o IPI), seja com a criação de novos (residuais), perservar-se-ia esse equilíbrio, com reflexos na receita de entes periféricos. As contribuições ficam, em regra, fora dessa divisão, precisamente porque se destinam a finalidades específicas, mas uma certa nebulosidade no atendimento dessas finalidades, em desvios que a DRU oficializou e constitucionalizou, terminou por permitir que as contribuições, em grande parte, sejam usadas como se impostos fossem, mas sem manter o referido equilíbrio, necessário à federação.

Daí as implicações, também, para a Teoria do Direito, notadamente para o estudo de figuras como o abuso de direito e a fraude à lei, tão caras ao Fisco quando de suas tentativas de limitar a liberdade do contribuinte no âmbito dos chamados "planejamentos tributários".

Esses assuntos, muito bem postos na referida ADPF, não são novos. Foram examinados, por exemplo, no livro "contribuições e federalismo", publicado em 2005 como fruto de minha dissertação de mestrado, defendida na UFC perante banca composta pelos Professores Paulo Bonavides, orientador, Denise Lucena e Agérson Tabosa. Quando pensei em indicar o livro para alguns alunos curiosos sobre o tema diante da notícia da ADPF, porém, constatei que está esgotado, e a Dialética, que o editava, como se sabe, fechou. Lançar uma segunda edição não me pareceu adequado, pois hoje o escreveria de maneira diferente, ainda que com conteúdo análogo, mas com outro estilo. Melhor usar esse trabalho e esse tempo para escrever outro, sobre tema diverso. Tomei, então, a iniciativa de digitalizá-lo e disponibilizá-lo aqui.

https://www.dropbox.com/s/sz0p9x3z5rlhaq6/Livro%20-%20Contribui%C3%A7%C3%A3o%20e%20Federalismo%20-%20completo.pdf?dl=0


O texto tem 13 anos, tempo no qual a ordem jurídica mudou em alguns pontos, e, o autor do livro, em outros, mas o problema central continua o mesmo, e minha opinião sobre ele também. No livro, aliás, sugere-se o uso da ADPF (ver p. 191), como os Estados fizeram agora, mas no livro a ideia era fazê-lo para que se aplicassem as contribuições em suas finalidades, notadamente as de seguridade, não para que os Estados partilhassem do produto da DRU, o que, todavia, também é uma alternativa legítima, em especial se o STF reconhecer que a DRU é mesmo constitucional. Por enquanto, como se sabe, ele se limitou a dizer que isso não é problema do contribuinte, que deve pagar as contribuições ainda que estas sejam sabidamente desviadas ou tredestinadas, assunto também para outro post.