terça-feira, 29 de setembro de 2015

Imparcialidade e preferências pessoais

É tema recorrente, em discussões jurídicas, aquele relacionado à suposta neutralidade do juiz, ou à sua imparcialidade. Discutem-se as diferenças entre esses dois conceitos, a impossibilidade de um ou a possibilidade de outro etc. Tais questões, inclusive, podem ser levadas a um contexto mais amplo, de sorte a abarcar não só juízes, mas pesquisadores também (legal scholars).

O tema é bem enfrentado por Susan Haack, autora cujos escritos, a propósito, recomendo. É quem melhor tem escrito sobre Epistemologia Jurídica na contemporaneidade. Em EVIDENCE MATTERS (HAACK, Susan. Evidence matters. Science, Proof and Truth in the Law. New York: Cambridge University Press, 2014, p. 12), ela observa que há "inquiry" (termo central ao seu pensamento, que poderia ser traduzido como "pesquisa" ou "investigação") quando alguém quer descobrir se "p" é mesmo"p", mas se "p" não for "p" o pesquisador também deseja saber (embora não goste desse resultado). Há "pseudo-inquiry", por sua vez, quando o suposto pesquisador quer demonstrar que "p" é "p" e, ao longo da sua "pesquisa", se ele constatar elementos indicadores de que "p" não é "p", esses elementos serão escondidos ou mascarados. O sujeito, afinal, não quer encontrar a verdade, mas apenas defender ideia pré-concebida, custe o que custar e mesmo que racionalmente a perceba incorreta.

Exemplificando, se um pesquisador acredita que uma droga terá determinado efeito sobre um micróbio, realizando pesquisa para descobrir se isso é verdade, ele será um autêntico pesquisador se, ainda que queira muito comprovar que a droga realmente tem o efeito pressuposto, permanecer aberto para evidências que mostrem que ela não tem esse efeito, aceitando as conclusões que delas decorrem. Contrariado, ele terminará concluindo que sua hipótese estava errada, ou seja, que, infelizmente, a tal droga não produz qualquer efeito sobre o citado micróbio. Poderá até estar triste por não confirmar a hipótese, mas seu objetivo último é a verdade, para a qual não fechará os olhos, nem tentará fechar os olhos dos outros.

Em outro exemplo mais banal (Haack observa que realizamos "inquiry" o tempo inteiro, seja quando pesquisamos academicamente um tema, seja quando procuramos a chave do carro ou a origem de um cheiro estranho que invade a sala), alguém pode ter o desejo muito forte de que um objeto perdido esteja na gaveta de sua mesa de trabalho, mas não negará, ao abrir a gaveta e perceber que o objeto não está dentro dela, que ele de fato deve estar em outro lugar.

Preferências pessoais, gostos e desejos, portanto, estarão sempre presentes, é inafastável, mas não serão um problema, se o pesquisador estiver comprometido, antes, com a correção de suas conclusões, ainda que elas não correspondam ao que ele desejaria encontrar.

Talvez o mesmo paralelo valha para um juiz, no que tange aos conceitos de neutralidade (impossível) e imparcialidade (necessária).

Com relação a estes, a observação da prática parece mostrar o acerto de Haack. Há aqueles magistrados, por exemplo, que, reconhecidamente simpatizantes dos interesses de uma classe de pessoas, por razões ideológicas (Fisco, trabalhador, consumidor, banco, aposentado etc.), podem até desejar muito julgar a favor desses interesses, mas conseguem reconhecer quando essa parte está errada, não fechando os olhos para argumentos, evidências ou precedentes que favorecem o outro lado.

Mas há aqueles que fazem de tudo, mas de tudo mesmo, para dar cabimento a tais preferências ideológicas, fechando os olhos - de propósito - para argumentos que favorecem o lado com o qual antipatizam, e colocando uma lupa sobre aqueles que podem ajudar a parte com que simpatizam. Mesmo quando racionalmente concluem que o lado que querem favorecer não tem razão, ignoram isso, parecendo que a emoção e o instinto sobrepujam a razão (aí está um bom tema para a neurociência e a teoria da decisão estudarem).

Precedentes, por exemplo, há juízes que os afastam, quando favoráveis a uma tese defendida por contribuintes, sem apresentar nenhuma razão ou argumento substancial. Simplesmente dizem que o precedente "não é vinculante" ou "teve votos vencidos" (os quais, nesse caso, são longamente citados), sendo possível "mudar a qualquer momento". Só isso é motivo para que sejam ignorados, pouco importando a análise dos fundamentos que nos tais precedentes se acham declinados. Há mesmo juízes que chegam ao cúmulo de não observar precedentes vinculantes, não porque fazem algum tipo de distinguish ou overrulling, mas porque "o STF pode um dia modular". Pode modular!?! A possibilidade (remota, em tese, sempre presente) de modulação é agora motivo bastante para não cumprir precedentes, que só serão obrigatórios depois de o STF recusar-lhes a modulação. Mas, a demonstrar o caráter "fazendário" de quem assim decide, isso só se os tais precedentes forem favoráveis ao contribuinte. Se contrários, pode ser um precedente da Delegacia Regional de Julgamento da Receita Federal, ou as razões apontadas pelo próprio fiscal autuante. Já servem para que o juiz neles encontre a desrazão do contribuinte.

É notável, portanto, quando se vê uma Corte como o STJ, que tinha firme jurisprudência pela validade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, mudar esse entendimento para alinhar-se ao que decidiu o STF sobre o mesmo tema:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. PIS. COFINS. BASE DE CÁLCULO. EXCLUSÃO DO ICMS. POSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
I - A existência de repercussão geral no RE 574.706-PR, em relação à matéria ora debatida, não impede sejam julgados os recursos no âmbito desta Corte. II - O ICMS é um imposto indireto, ou seja, tem seu ônus financeiro transferido, em última análise, para o contribuinte de fato, que é o consumidor final. III - Constituindo receita do Estado-Membro ou do Distrito Federal, a parcela correspondente ao ICMS pago não tem natureza de faturamento ou receita, mas de simples ingresso financeiro, não podendo compor a base de cálculo do PIS e da COFINS. IV - Conquanto a jurisprudência desta Corte tenha sido firmada no sentido de que a parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do PIS e do extinto FINSOCIAL, posicionamento sedimentado com a edição das Súmulas 68 e 94, tal discussão alcançou o Supremo Tribunal Federal e foi analisada no RE 240.785/MG, julgado em 08.10.2014, que concluiu que "a base de cálculo da COFINS somente poderia incidir sobre a soma dos valores obtidos nas operações de venda ou de prestação de serviços. Dessa forma, assentou que o valor retido a título de ICMS não refletiria a riqueza obtida com a realização da operação, pois constituiria ônus fiscal e não faturamento" (Informativo do STF n. 762). V - Agravo regimental provido.
(AgRg no AREsp 593.627/RN, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/03/2015, DJe 07/04/2015 – grifou-se)
O acórdão em questão é expressivo. Primeiro, porque não se limita a observar o entendimento do STF, fazendo-o de maneira muito bem fundamentada, partindo da própria natureza do ICMS, coerente com o tratamento dado a esse imposto nos casos de restituição do indébito (CTN, art. 166), coerência essa que o Judiciário, para manter a racionalidade de seus julgados, não pode abandonar. E, segundo, mas não menos importante, porque conduzido pelo Ministra Regina Helena Costa, que, antes de ser Ministra, ou mesmo Desembargadora Federal do TRF da 3.ª Região, do qual é oriunda, é uma tributarista renomada e reconhecida, exímia conhecedora da matéria sob apreciação.

A própria Fazenda tem aderido a precedentes que lhe são desfavoráveis, o que pode incrementar sua eficiência na concentração de esforços naquelas batalhas judiciais ainda não resolvidas, e mesmo aumentar a legitimação da tributação (afastando a ideia, muito ruim para a eficácia do Direito Tributário, de que ele só vale quando favorece o Fisco). Quando um magistrado, diante desses mesmos precedentes, os ignora, ou afasta com o "fundamento" de que "podem mudar" ou "podem ser modulados", vê-se que há quem seja mais realista que o rei.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Depósitos e a falta de coerência da jurisprudência

Caso se examine a jurisprudência brasileira em matéria tributária, com atenção aos motivos invocados como razão de decidir pelos julgadores, à luz do caso concreto que os originou, percebe-se muita incorência.
Diz-se "brasileira" e "em matéria tributária" porque foi nesses dois subsistemas que se colheram as amostras da análise. Não significa, de forma alguma, que não possa ocorrer o mesmo em outros ramos do Direito ou em outros países.
Quanto se fala em incoerência, não se faz remissão apenas a julgados que tratam do mesmo tema chegando a conclusões diferentes. Para estes ainda há remédio no sistema recursal, a exemplo dos embargos de divergência. O problema é maior quando dois problemas diferentes são resolvidos com o uso de premissas ou fundamentos que são incoerentes entre si.

No livro "Repetição do Tributo Indireto" há uma coleção de casos assim, relativos à chamada "tributação indireta". Não se pretende, por isso, voltar a eles aqui.
Colhe-se como exemplo, porém, agora, a questão da titularidade dos depósitos judiciais feitos como garantia do juízo em matéria tributária.

Para negar ao contribuinte o direito de levantar a quantia referente aos juros, no que tange a importâncias depositadas, apesar do que textualmente estabelece o art. 10, parágrafo único, da Lei 11.941/2009, o STJ decide:

TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. CONVERSÃO DE DEPÓSITO EM RENDA. LEI 11.941/2009. INCIDÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE A Primeira Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.251.513, Rel.Ministro Mauro Campbell Marques, submetido ao rito dos recursos repetitivos, consolidou o entendimento segundo o qual "a remissão de juros de mora insertos dentro da composição do crédito tributário não enseja o resgate de juros remuneratórios incidentes sobre o depósito judicial feito para suspender a exigibilidade desse mesmo crédito tributário. O pleito não encontra guarida no art. 10, parágrafo único, da Lei n. 11.941/2009. Em outras palavras: "os eventuais juros compensatórios derivados de supostas aplicações do dinheiro depositado a título de depósito na forma do inciso II do artigo 151 do CTN não pertencem aos contribuintes-depositantes" (REsp 392.879/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 13.8.2002).
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1510228/CE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/03/2015, DJe 24/03/2015)


 Assim, por outras palavras, se um contribuinte deposita R$ 100.000,00 em determinado dia, e alguns anos depois o saldo do depósito é de R$ 220.000,00 (R$ 100.000,00 de valor originário + R$ 120.000 de juros), os tais juros NÃO PERTENCEM ao contribuinte, que não pode levantá-los em obediência ao art. 10 da Lei 11.941/2009, que dispõe:

Art. 10.  Os depósitos existentes vinculados aos débitos a serem pagos ou parcelados nos termos desta Lei serão automaticamente convertidos em renda da União, após aplicação das reduções para pagamento a vista ou parcelamento.      (Redação dada pela Lei nº 12.024, de 2009)       (Vide Lei nº 12.865, de 2013)       (Vide Lei nº 13.043, de 2014)

§ 1o  Na hipótese em que o valor depositado exceda o valor do débito após a consolidação de que trata esta Lei, o saldo remanescente será levantado pelo sujeito passivo.        (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 13.043, de 2014)

§ 2o Tratando-se de depósito judicial, o disposto no caput somente se aplica aos casos em que tenha ocorrido desistência da ação ou recurso e renúncia a qualquer alegação de direito sobre o qual se funda a ação, para usufruir dos benefícios desta Lei.        (Incluído pela Lei nº 13.043, de 2014)
(...)"

Ou seja, se um contribuinte não depositou quantia alguma, seja porque obteve liminar, nos termos do art. 151, IV ou V do CTN, seja porque deixou o débito em aberto mesmo, poderia pagar o débito com o desconto dos juros previstos na Lei 11.941/2009, caso tivesse aderido ao parcelamento especial nela previsto. Entretanto, tendo feito o depósito, não poderia pedir a conversão em renda da quantia devida após esses mesmos descontos, levantando o saldo relativo à parcela de juros dispensada. Isso porque, o acórdão transcrito assevera, os juros "não pertencem aos contribuintes".
Acontece que esse entendimento, além de aparentemente contrário ao que dispõe a lei (e à própria ideia de igualdade), o que não será discutido aqui, diverge frontalmente do entendimento firmado pelo próprio STJ, também de forma pacífica, segundo o qual tais depósitos pertencem, sim, aos contribuintes, quando o que está em questão é sua consideração para fins de apuração do IRPJ e da CSLL devidos anualmente.
Realmente, quando se trata de TRIBUTAR os tais juros, o STJ tem entendido que eles pertencem, sim, ao contribuinte, ainda que depositados judicialmente. Veja-se, a propósito, o que se decidiu no REsp 1.231.972/RS, sob a relatoria do insigne Ministro Arnaldo Esteves Lima. Ou, ainda a título exemplificativo, o que se decidiu quando da apreciação do REsp 769.483/RJ, quando se afirmou que “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é assente no sentido de que os valores depositados judicialmente com a finalidade de suspender a exigibilidade do crédito tributário, em conformidade com o art. 151, II, do CTN, não refogem ao âmbito patrimonial do contribuinte, inclusive no que diz respeito ao acréscimo obtido com correção monetária e juros, constituindo-se assim em fato gerador do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido.” Pode ser citado ainda, a título de amostragem, o AgRg no Ag 1.259.761/SP, da relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, todos a evidenciar a flagrante divergência no entendimento quanto à natureza, à titularidade e aos efeitos tributários de um depósito judicial.
Afinal, os juros dos valores depositados não pertencem ao contribuinte na hora de serem levantados, mas pertencem para serem tributados? São incoerências desse tipo que MINAM a legitimação do tributo, fazendo com que o direito só pareça ter algum valor quando com isso se atendem os interesses da Fazenda.