Fala-se muito que o contribuinte brasileiro é sonegador. E mais, que os sonegadores não são punidos como deveriam.
Fico a refletir. Mais de 95% da arrecadação tributária é espontânea, vale dizer, recolhida independentemente da propositura de execução fiscal. Certamente há sonegação, em volume maior do que aquele efetivamente reprimido, mas...
Mas...
Será que apenas o contribuinte comete ilícitos penais, no âmbito da relação tributária? Não que um erro justifique outro, mas a coerência é importante para que muitos cidadãos não fiquem a pensar que a lei só vale contra eles, o que é péssimo para a eficácia social da ordem jurídica. Como Dworkin explica com muita clareza, quando alguém não se sente tratado como igual pela ordem jurídica, tende a não reconhecê-la como tal.
Falo a propósito de um esquecido artigo que consta do Código Penal Brasileiro, que dispõe:
Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.Excesso de exação§ 1º - Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza: (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990)Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990)§ 2º - Se o funcionário desvia, em proveito próprio ou de outrem, o que recebeu indevidamente para recolher aos cofres públicos:Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.
Embora em um parágrafo, trata-se de tipo autônomo e diverso daquele previsto no caput. Não conheço, contudo, caso em que tenha sido aplicado.
Até se sabe, muito eventualmente, de casos de fiscais que são punidos por corrupção. No Rio de Janeiro, faz uns anos, uma quadrilha foi descoberta. Mas, nesse caso, a Fazenda é prejudicada (o fiscal fica com pequena parte do "produto da arrecadação" para si, e deixa de exigir a parte devida à Fazenda). Não conheço, contudo, qualquer caso, precedente, jurisprudência, NADA, sobre o art. 316, § 1.º, do CPB, acima transcrito. Será que nunca um funcionário exigiu tributo que sabe ou deveria saber indevido, ou empregando meios vexatórios que a lei não autoriza? Acho mais fácil acreditar que no Brasil não existe sonegação... Como diriam no twitter, #coerência #fail.
23 comentários:
Realmente, Doutor Hugo, imputar apenas ao contribuinte (sonegador) os efeitos de uma arrecadação diminuta é uma simples forma de ocultar a incompetência, tanto do fisco quanto do administrador público.
Como Auditor Fiscal muitas vezes me questiono qual seria os atos governamentais que levem o contribuinte a recolher devidamente seus tributos? Não encontro resposta.
Acredito que se tivessemos um Estado que cumprisse minimamente sua funções não se discutiria tanto a tema sonegação fiscal.
Ademais, há que se observar a também realidade dos colegas de fisco que, usando de sua função, buscam o benefício próprio. Contudo, Doutor Hugo, a não aplicação do excesso de exação é apenas uma continuidade da impunidade que assola o nosso país, especificamente àqueles que detem alguma autoridade.
Grande Abraço
Rogério
Professor, nos termos do post, poderia o senhor fazer uma explanação acerca da súmula 584 do STF? Vi um julgado de 2006 em que o Supremo reafirma a aplicabilidade de tal enunciado, argumentando que referido entendimento não malfere a irretroatividade. Contudo, e a anterioridade?? Já o STJ rejeita a súmula. Enquanto os Tribunais superiores se degladiam, o Fisco faz a festa. é isso.. abs!
filipe
Poucos dias atrás em um congresso pude partilhar de um comentario parecido com o do post em que o Doutos Hugo de Brito Machado( o Primeiro, com o perdao do trocadilho), mensionava o mesmo artigo ele o fez com tamanha fúria que ate eu fiquei enraivecido com a "Nobre Fazenda Nacional". Mas eh realmente lamentável que a lei muitas vezes arrebente pro lado mais fraco, no caso o contribuinte.
Pois é, Diego, no caso do excesso de exação isso parece estar acontecendo.
Rogério,
Concordo com a impunidade de quem tem algum poder, mas no excesso de exação parece haver algo mais. O poder público não tem interesse em punir quem pratica ilegalidades que o favorecem. Se o fiscal pratica a ilegalidade que o beneficia (corrupção), é punido, mas se a ilegalidade é praticada não para beneficiar, pelo menos diretamente, o fiscal, e sim o Estado, este não o pune. O artigo, em tais casos, vira letra morta.
Caro Filipe,
Dê uma olhadinha no meu "CTN Anotado", especialmente nas notas ao art. 150, III, "a" da CF e ao art. 105 do CTN. Considero essa súmula um absurdo total, mas o STF realmente tem arestos que a aplicam (p.ex., RE 194.612/SC), embora tenha outros que a rejeitam (RTJ 141-3/739).
Por seu turno, o Superior Tribunal de Justiça, com efeito, faz algumas ressalvas à Súmula: "a lei vigente após o fato gerador, para a imposição do tributo, não pode incidir sobre o mesmo, sob pena de malferir os princípios da anterioridade e irretroatividade", sendo inaplicável a Súmula 584/STF, porque "construída à luz de legislação anterior ao CTN" (STJ, 1.ª T, REsp 179.966/RS, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, j. em 21/6/2001, DJ de 25/2/2002, p. 208). No mesmo sentido: "A lei que altera o imposto de renda deve estar em vigor em um ano, para poder incidir no ano seguinte. A incidência se faz pela eficácia da norma. (...) Publicada a Lei 9.430/96, em 1º de janeiro do ano seguinte já estava com eficácia completa e passível de aplicação, para reflexo no pagamento do exercício de 1998." (STJ, 2.ª T, EDcl no REsp 377099/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, j. em 2/3/2004, DJ de 17/5/2004, p. 169). Em seu voto, a Ministra relatora consignou que "a Súmula 584/STF está superada nos moldes colocados no seu verbete, entendendo-se que na atual redação da CF/88 aplica-se ao Imposto de Renda a lei vigente no ano antecedente, de modo a já estar ela com plena eficácia no início do ano-base."
HS: "Como Dworkin explica com muita clareza, quando alguém não se sente tratado como igual pela ordem jurídica, tende a não reconhecê-la como tal."
A constatação de Dworkin tem fundo aristotélico. Aristóteles já havia chegado a esta conclusão em A Política. Seria interessante fazer um paralelo entre os dois autores.
É verdade, Gustavo.
A abordagem de Dworkin (que li em "Is democracy possible here?" Princeton: 2006) pareceu-me mais adequada, pois ele se refere exatamente à razão pela qual regimes que não dedicam às pessoas o "equal concern" ao qual ele se reporta não são, pelo menos em relação a elas (pessoas com "classe inferior" de direitos), sequer considerados "direito" e não têm eficácia, sendo observados pelo medo. E ele se refere ao apartheid e aos regimes escravocratas americanos coloniais. Não sei como Aristóteles conciliou essa idéia com a visão, que tinha, sobre a escravidão, mas vou conferir a Política e talvez poste algo a respeito.
Obrigado!
Sobre esse post eu recomendaria a leitura de um pequeno grande livro do Prof. Klaus Tipke, já traduzido para o espanhol. Não o encontrei no Brasil, foi preciso encomendá-lo da Espanha. Mas com algum esforço pode ser encontrado. Trata-de de "Moral Tributaria del Estado y de los Contribuyentes". Com certeza, a legitimidade formal da imposição decorre do consentimento, do processo legislativo pelo qual se impõe. Mas é necessário ainda buscar sua legitimidade material. Analisar questões de justiça fiscal e adequação aos objetivos da constituição econômica que devem nortear a imposição tributária.
Agora sobre o excesso de exação gostaria de narrar-lhes um fato inusitado sobre o qual tomei conhecimento. Uma determinada Prefeitura passou a emitir "Termos de Lançamento de ISSQN" para quaisquer contribuintes que fossem à sua Secretaria de Obras requerer o habite-se de construções. Pegavam o custo da obra e aplicavam a alíquota de 3% para encontrar o ISSQN sobre o serviço de construção civil. O mais bizarro é que o faziam mesmo quando o construtor era o proprietário do terreno ou construía em terreno alheio, na qualidade de comodatário, posseiro, locatário, etc. sem prestar qualquer serviço a qualquer pessoa. Mesmo que não se identificasse uma relação jurídica entre um construtor e um tomador do serviço, até porque essas "duas" pessoas acabavam sendo uma só: o sujeito construiu para si próprio.
A questão foi denunciada num programa de rádio local. O radialista passou a propagar a ilegalidade, incitando as pessoas a procurarem seus direitos e não pagarem. Resultado: uma tentativa de instaurar um processo criminal porque quem diz que o Sr. Prefeito cobra imposto ilegal cometeria calúnia, porque cobrar imposto ilegal seria crime de excesso de exação.
O melhor foi uma impugnação assinada por um contador(acho que ele só fez assinar, parecia um trabalho de advogado muito conhecedor de Direito Tributário). Lá pelas tantas o sujeito diz que a ilegalidade é tão flagrante que partindo para a hipótese remotíssima de ser devida a cobrança o "Termo de Lançamento" feito pelo fiscal não era o meio próprio de cobrança. Deveria ter lançado um auto de infração, cobrando os acréscimos legais e multa de ofício. De modo que, se a cobrança fosse ao final, em eventuais embargos à execução fiscal julgada procedente (o contribuinte já diz que vai resistir até onde não mais puder - achei ótima essa parte), o erro do fiscal que importou na indevida dispensa dos acréscimos e da multa haveria de sujeitá-lo às punições pela improbidade, encarregando-se o contribuinte pela promoção de gestões junto ao Ministério Público e pela ação popular cabível. O tal contador deu um recado interessante: olha Sr. Fiscal você está cobrando um tributo que devia saber indevido, mas se for devido, eu pago depois de transitar em julgado os embargos à execução fiscal. Mas, por estar cobrando da maneira errada e cobrando a menos deve ser punido. Interessante a estratégia, quando for julgada improcedente a cobrança, ficará claro que não houve improbidade. Só gostaria de ver a cara do Fiscal responsável pelo excesso de exação. Quando souber mais notícias, entro em contato para mantê-los a par. O que acham de limitar os concursos para agentes fiscais a bachareis em direito com, pelo menos, pós graduação em Direito Tributário. Isso é que dá colocar um Bacharel em Químico como Secretário de Finanças, comandando uma equipe sem qualquer formação jurídico-tributária.
comentário de acompanhamento.
Caro Pedro,
Conheço o livro do Tipke. É muito bom. Foi traduzido para o espanhol por Pedro Herrera Molina, e publicado pela Marcial Pons. De qualquer modo, obrigado pela indicação.
Quanto ao "caso" que você narra, é mesmo muito interessante. Mantenha-nos, por favor, atualizados quanto aos desdobramentos!
um abraço,
Hugo,
Com sua erudição estou certo que conhece a obra do Tipke. A intenção de indicá-la em seu blog é divulgá-lo aos demais leitores. Grande abraço.
Caro Professor!
Um caso interessante e, creio eu, serveria de exemplo, é a exigencia feita a determinado contribuinte que, ao comparecer a Ad. Publica para solicitação de algo, seja um alvará, uma prestação de serviço qualquer, etc...., ve um despacho do fiscal com a seguinte exigencia: "nos termos da Lei n. xxxx/1973, e , tendo em vista o solicitante possuir débitos junto ao fisco, INDEFIRO a solicitação pleiteada, informando-se ao solicitante que, após quitar seus débitos junto ao fisco, poderemos dar continuidade a sua solicitação."
Agora analisemos a questção: 1-) o fiscal utiliza-se de certa Lwei anterior a propria Lei de execução fiscal , que cuida da cobrança de tributos; 2-) Esta Lei de 1973 é anterior a propria Constituição Federal<, assim, no meu entender, configurado estaria o tipo em questão, por exigir o fiscal, cobrança de tributo de forma gravoso ou vexatoria que a lei não autoriza!
O meu raciocínio estaria correto! Abraços
Segundo entendo, a autoexecutoriedade na cobrança de tributos não é possivel, pois, para isto criou-se a ação de execução fiscal.
Se ouvesse a possibilidade de tais atos diretamente por parte do poder publico para cobrança de seus tributos, de nada adiantaria a existencia da execução fiscal.
Assim sendo, ou os atos são licitos ou ilicitos, e no caso sugerido acima, não há commo ter os atos como licitos;
O que nos resta agora, é saber qual tipificação para a conduta descrita, ainda que a possivel lei sugerida permita a cobrança diretamente pelo poder publico, pois como bem sugeriu o colega, tal lei é anterior a CF/88 e a Lei 6830/80.
Obrigado nobre Prof.
Boa noite professor!
sou advogada em são paulo, e gostaria de saber se num caso como o acima, onde o Fisco aparenta exigir ausencia de débitos de contribuintes para atendimento de solicitações, se há algum cometimento de crime ( e se houver,qual ou quais seriam??) bem como se há a possiblidade da pratica de tais atos???
Obrigada!
Em tese, exigir tributo que se sabe OU DEVERIA SABER indevido, ou, ainda que devido, com o uso de MEIO VEXATÓRIO OU GRAVOSO, é crime de excesso de exação - CPB, art. 316, § único.
Prof.
E no caso do agente público solicitar informações se há débito de contribuinte que nada deva, enquadra-se no presente tipo penal ? ou em consistiria tal conduta?
Dr. Hugo
Essa preocupação com o excesso de exação já havia sido manifestada pelo seu pai na obra Curso de Direito Tributário (Malheiros:2000). Pena que ele pouco explorou o tema no livro. Sempre procurei um modo de aplicar tal dispositivo frente a forma policialesca como agem algumas fazendas públicas, todavia, não foi possível. De toda sorte, quando li o tópico pela primeira vez interessei-me na sua aplicação. Procurei decisões a respeito no STJ, mas todas que encontrei afastavam a configuração do crime, algumas valendo-se de fundamentos que achei pouco convincentes, mas...Dúvida que tenho em relação a esse dispositivo previsto no Código Penal diz respeito a aplicação de multa (que não é tributo, como sabemos)gravosa (100% do valor do tributo) por conduta não cometida pelo contribuinte (sonegação fiscal, não comprovada) aplicada apenas por não haver previsão na legislação de outra penalidade mais adequada à conduta do contribuinte (recolhimento a menor do tributo por entender que algumas receitas não se sujeitam a sua incidência) ou outra penalidade mais grave (a verdade é que o legislador previu apenas uma multa grave e as demais brandas, evidentemente a fiscalização aplica a mais grave). Nesse caso, configuraria o excesso de exação, em face da utilização de meio gravoso na cobrança do tributo, ainda que devido?
Caro Luiz,
Obrigado pela participação no blog.
Sim, você tem razão, o tema é interessante mas ainda pouco (e mal) explorado na literatura especializada e principalmente na jurisprudência.
A aplicação de uma multa exacerbada pode configurar o crime em comento, ou não, dependendo das circunstâncias. É preciso lembrar - o que quase nunca se faz - do art. 112 do CTN.
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