sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Súmula 276/STJ e a questão da lei complementar

Súmula n.º 276/STJ – “As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado.”

  • Publicada no DJ de 2/6/2003
  • Cancelada pela Primeira Seção em 12/11/2008

Comentários ———————————————————————————

A LC 70/91 concedeu isenção às sociedades civil de profissionais (art. 6.º, II), isenção que posteriormente se pretendeu revogar com a edição da Lei 9.430/96 (art. 56). A partir de então, estabeleceu-se discussão, no plano doutrinário e jurisprudencial, em torno da validade da supressão da norma isentiva.

Inicialmente, mesmo antes da edição da Lei 9.430/96, a discussão teve início porque a Receita Federal somente reconhecia como isentas as sociedades de profissionais que adotassem o regime tributário previsto no Decreto-Lei n° 2.397, de 21 de dezembro de 1987, norma referida pelo art. 6.º, II, da LC 70/91.

Quanto a essa primeira discussão, o STJ entendeu que a remissão ao Decreto-lei 2.397/87 destinava-se apenas à identificação das sociedades de profissionais (que seriam as mesmas referidas no tal decreto-lei), mas não à vinculação da incidência da norma isentiva à adoção do regime tributário nele previsto. Foi o que se deu quando da prolação dos primeiros julgados que levaram à edição da súmula em comento.

Com o advento da Lei 9.430/96, a discussão passou a girar em torno da validade, ou não, da revogação, por lei ordinária, de norma isentiva contida em lei complementar. Também nesse ponto, o STJ acatou o argumentos dos contribuintes, e considerou subsistente a norma isentiva contida no art. 6.º, II, da LC 70/91. Provocado, o STJ ratificou o entendimento que originou a súmula, partindo de fundamentos que estão bem resenhados na seguinte ementa:

“(...) A Lei Complementar n° 70/91, em seu art. 6°, inc. II, isentou da Cofins, as sociedades civis de prestação de serviços de que trata o art. 1° do Decreto-lei n° 2.397, de 22 de dezembro de 1987, estabelecendo como condições somente aquelas decorrentes da natureza jurídica das referidas sociedades.

A isenção concedida pela Lei Complementar n° 70/91 não pode ser revogada pela Lei n° 9.430/96, lei ordinária, em obediência ao princípio da hierarquia das leis.

A opção pelo regime tributário instituído pela Lei n° 8.541/92 não afeta a isenção concedida pelo art. 6°, II da L.C. 70/91. Entre os requisitos elencados como pressupostos ao gozo do benefício não está inserido o tipo de regime tributário adotado pela sociedade para recolhimento do Imposto de Renda. (...) (STJ, 2.ª T, REsp 221.710/RJ, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ de 18/02/2002, p. 288/9)

O entendimento relativo à lei complementar, vale dizer, à sua superioridade hierárquica em relação à lei ordinária independentemente da matéria tratada, fundava-se em saudável revisão de idéia tão antiga quanto desprovida de fundamento, segundo a qual a lei complementar seria caracterizada pela aprovação através de maioria qualificada e pelo trato das matérias a ela reservadas pela Constituição. Por essa corrente, que os precedentes que originaram a Súmula n.º 276/STJ afastaram, a LC 70/91 seria complementar apenas “do ponto de vista formal”, podendo, quanto à sua matéria, ser alterada por uma lei ordinária (no caso, a Lei 9.430/96).

Acertou a jurisprudência do STJ, pois é total carência de fundamentos dessa corrente que vê na lei complementar, e só nela, diploma normativo que se caracteriza – sem nada na Constituição que o justifique – pelo conteúdo tratado e não pelo procedimento formal de aprovação.

Uma emenda à Constituição não deixa de ter esse status, passando a ser tratada como “mera” lei, apenas por cuidar de matéria não reservada à Constituição. Ainda que cuide de matéria que poderia ser veiculada em lei, a emenda terá o efeito de alterar o texto constitucional, que só por outra emenda poderá ser modificado.

Do mesmo modo, caso uma lei cuide de matéria não reservada às leis, e que portanto poderia ser tratada em decretos ou outras normas infralegais, não perderá o status de lei só por isso. Continuará sendo lei, formal e materialmente, e só por outra lei poderá ser modificada.

Não há razão, nem, insista-se, qualquer disposição no texto constitucional, que justifique compreensão diversa em relação às leis complementares. Não se pode confundir a imposição de que certas matérias somente sejam tratadas por lei complementar, com a conclusão, que dela não decorre, de que a lei complementar só pode tratar de tais matérias.

A doutrina que tradicionalmente sustenta a caracterização de uma lei complementar em face da matéria tratada sustenta-se, em verdade, apenas na autoridade dos seus defensores, que talvez tenham confundido os seguintes pontos:

a) em relação às leis editadas antes da introdução da figura das leis complementares no direito brasileiro, realmente só se pode dizer que tenham status de lei complementar aquelas que tratam da matéria hoje a ela reservada. É o que ocorre, por exemplo, como CTN. Mas isso nada tem a ver com a afirmação de que uma lei complementar, editada já sob a vigência do texto constitucional que prevê essa espécie normativa (e suas características formais), só tenha essa natureza se cuidar de matéria a ela reservada. Na verdade, se dá o mesmo com um decreto que, em 1972, tenha tratado de matéria que só posteriormente passou a ser reservada à lei (v.g., o Decreto 70.235/72); diz-se que tem agora status de lei, mas isso não significa que uma lei que hoje trate de matéria não reservada às leis seja um “mero” decreto, podendo por outro ato dessa natureza ser modificada. Trata-se, tão somente, de decorrência da ausência de invalidade por vício formal superveniente, desdobramento do princípio geral do tempus regit actum aplicado ao processo de feitura dos atos normativos, que nada tem a ver com a esdrúxula conclusão de que um ato normativo, mesmo sem que haja qualquer mudança no processo legislativo, identifica-se pelo conteúdo nele tratado.

b) em relação às leis complementares que tratam de “normas gerais” da legislação tributária, quando o legislador federal (ou nacional) ultrapassa os limites dessas “normas gerais”, não raro invade âmbito reservado ao legislador de estados-membros, distrito federal e municípios. Nesse ponto, no que pertine à invasão da competência do legislador federal, diz-se que não há invalidade, mas que a disposição pode ser alterada por uma lei ordinária. E, no que pertine às competências estaduais e municipais, diz-se que a lei complementar nacional é inconstitucional. Não é que ela perca a hierarquia por tratar de matéria a ela não reservada, mas sim que se torna inconstitucional por invadir matéria reservada a outra unidade da federação. Mas note-se: aí, há invasão de competência de uma entidade federativa sobre outra, sendo essa a razão pela qual se cogita de um “limite material” à lei complementar, não porque ela seja "complementar", mas porque ela é federal, ou nacional. Aliás, esse limite material é aplicável por igual às leis ordinárias: uma lei ordinária federal, se invadir o âmbito material de competência dos estados, ou dos municípios, será inconstitucional.

As idéias acima resenhadas em “a” e “b” são procedentes, e têm fundamento na Constituição. O problema é que, delas, a doutrina “concluiu” que a lei complementar se “caracteriza” pelo procedimento de aprovação e pela matéria tratada, conclusão que não decorre das apontadas premissas, e nem se fundamenta em qualquer disposição da constituição, ou em qualquer preceito lógico de teoria do direito. É porque determinado autor disse, ou porque foi tão repetido depois que ele disse que se tornou “óbvio”.

Percebendo isso, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a impossibilidade de a isenção concedida pela LC 70/91 ser revogada pela Lei 9.430/96, editando e em seguida mantendo o enunciado da Súmula 276/STJ.

Paralelamente, o Supremo Tribunal Federal considerava que a questão relativa à mencionada revogação era infraconstitucional, devendo ser deslindada em definitivo pelo Superior Tribunal de Justiça (1).

Depois de um período razoável em que prevaleceu esse cenário – o STF afirmando a competência do STJ para solver a questão, e o STJ afirmando o direito à isenção – o STF modificou o seu posicionamento, tanto no que pertine à questão da competência, como no que toca ao mérito.

Quanto à competência, passou a entender que a questão é constitucional. E, ao conhecer dos recursos tratando do assunto, entendeu válida a revogação (RE 381.964/MG), pois a LC 70/91 seria materialmente ordinária, podendo ser revogada por outra lei ordinária (no caso, a Lei 9.430/96). Isso levou, em seguida, ao cancelamento da súmula em comento pelo Superior Tribunal de Justiça, que se curvou ao entendimento do STF.

O lamentável é que o STF, tão generoso nas modulações quando favoráveis aos interesses da Fazenda Pública, mesmo quando de decisões que nenhuma surpresa trouxeram a quem quer que fosse, como foi o caso da que considerou inconstitucionais os prazos de decadência e prescrição fixados na Lei 8.212/91 (confiram-se os comentários à Sumula vinculante n.º 8/STF), recusou-se, por maioria apertada, a proceder à modulação neste caso. A modulação, em verdade, era necessária, pois tanto STF como STJ criaram situação na qual os contribuintes confiaram, tendo a mudança na orientação jurisprudencial colhido de surpresa aqueles que, baseados na Súmula, e no entendimento do STF de que a questão era infraconstitucional, não recolhiam a exação.



(1) Cf., v.g., AI 479724 AgR, Rel. Min. Carlos Britto, 1.ª T, j. em 05/09/2006, DJ de 27/10/2006, p. 38.

3 comentários:

Rodrigo disse...

Qual disposição da Constituição abona o entendimento de que haveria uma hierarquia? A precedência da Constituição em relação às leis se extrai de diversos dispositivos, tais como arts. 52, X, 66, § 1º, 97, 102. A das leis sobre outros atos normativos, também de diversos, mas principalmente do art. 5ª, II. Qual o dispositivo da Constituição que estabelece a ventilada hierarquia entre leis ordinária e complementar? Também achei seu texto arrogante.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

A intenção do texto não é ser arrogante, mas mostrar às pessoas que o que parece "óbvio" para muitos não o é tanto assim.
Quanto à hierarquia, ela não precisa constar expressamente de um texto normativo, decorrendo do procedimento de aprovação e do órgão encarregado de aprovar a norma correspondente. No caso da LC, da disposição que exige quorum diferenciado.

Demetrius Macei disse...

Prezado Rodrigo, conheço o Hugo e sei de sua veemencia ao tratar dos assuntos pelos quais está convicto. Temos que parar de nos curvar ao dito popular juridiques de que o direito é o que o STF diz que é. O STF já mudou de entendimento outras vezes e tomara que volte a faze-lo quanto a questao da hierarquia entre LO e LC, e também quanto as espécies de tributos.