quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Tolerância com a intolerância?

É incrível como alguns assuntos se entrelaçam.
Dizem que, quando se está escrevendo uma monografia, dissertação ou tese, como estou, com tudo se encontra relação com o tema examinado. É o caso da polêmica em torno da foto da Carol Castro com o terço, que, suscitando um debate em torno da tolerância, lembrou-me desse importante valor em uma democracia, e da sua aplicabilidade, ou não, em relação à intolerância.

Lembrei-me de uma outra polêmica, surgida faz algum tempo, em razão de algumas charges publicadas em um jornal dinamarquês sobre o profeta Maomé. Basta ler o blog da indigitada atriz para verificar que os fundamentalismos – tenham origem em qualquer religião – têm as mesmas características. Tal como as ditaduras capitalistas e comunistas, estão, como todos os extremismos, muito próximos uns dos outros.
Pois bem. Mas o que pretendo, aqui, é divulgar a explicação do jornalista do Jyllands-Posten (jornal dinamarquês) sobre as charges do Maomé. A mim, pareceu irreprochável. Verdadeira aula de democracia e de direitos fundamentais. Resta saber se nós queremos nos aproximar do islã (a rigor, de alguns extremistas islâmicos), que tantos por aqui criticam (a meu ver injustamente)...

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Por que publiquei as charges
Flemming Rose * 

Infantil. Irresponsável. Discurso do ódio. Uma provocação gratuita. Uma jogada de marketing. Os críticos das 12 charges do profeta Maomé que decidi publicar no jornal dinamarquês Jyllands-Posten não mediram suas palavras. Eles dizem que a liberdade de expressão não implica endossar o insulto aos sentimentos religiosos das pessoas e também que a mídia censura a si mesma todos os dias. Assim, que não lhes ensinemos sobre a liberdade de expressão sem limites. Concordo que a liberdade de publicar coisas não significa publicar tudo. O Jyllands-Posten não publicaria imagens pornográficas ou detalhes explícitos de cadáveres; palavrões raramente entram em nossas páginas. Portanto, não somos fundamentalistas em nossa defesa da liberdade de expressão.
Mas a história das charges é diferente. Aqueles exemplos têm a ver com o exercício do comedimento por causa dos padrões éticos e do gosto; chamem isso de edição. Em contraste, encomendei as charges em resposta a vários incidentes de autocensura na Europa motivados por crescentes temores e sentimentos de intimidação no trato de questões relacionadas ao Islã. E ainda acredito ser este um assunto que nós, europeus, precisamos enfrentar, desafiando os muçulmanos moderados a se manifestar. A idéia não era provocar gratuitamente - e sem dúvida não pretendíamos desencadear manifestações violentas no mundo islâmico. Nosso objetivo era simplesmente repelir limites auto-impostos à liberdade de expressão que pareciam se fechar ainda mais.
No fim de setembro, um comediante dinamarquês disse numa entrevista ao Jyllands-Posten que não teria problemas em urinar sobre a Bíblia diante de uma câmera, mas não se atreveria a fazer o mesmo com o Alcorão.
Este foi o clímax de uma série de exemplos perturbadores de autocensura. Em setembro, um escritor dinamarquês de livros infantis teve dificuldade de encontrar um ilustrador para um volume sobre a vida de Maomé. Três pessoas recusaram o trabalho com medo das conseqüências. A pessoa que finalmente aceitou insistiu no anonimato, o que a meu ver é uma forma de autocensura. Os tradutores europeus de um livro crítico sobre o Islã também não quiseram que seus nomes aparecessem na capa ao lado do nome da autora, uma política holandesa nascida na Somália que também vivia escondida.
Na mesma época, a galeria Tate, em Londres, retirou uma instalação do artista de vanguarda John Latham que retratava o Alcorão, a Bíblia e o Talmude rasgados em pedaços. O museu explicou que não queria causar comoção depois dos atentados a bomba em Londres (poucos meses antes, para evitar ofender os muçulmanos, um museu de Gotemburgo, Suécia, removera uma pintura com um tema sexual e uma citação do Alcorão).
Finalmente, no fim de setembro, o primeiro-ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, reuniu-se com um grupo de imãs, um dos quais lhe pediu que interferisse na imprensa para obter uma cobertura mais positiva do Islã.
Assim, ao longo de duas semanas, testemunhamos meia dúzia de casos de autocensura, confrontando a liberdade de expressão com o medo de tratar de questões sobre o Islã. Esta era uma notícia legítima a ser coberta, e o Jyllands-Posten decidiu fazê-lo adotando um princípio jornalístico bem conhecido: mostre, não conte. Escrevi a membros da associação dos cartunistas dinamarqueses pedindo que "desenhassem Maomé como o viam".
Decerto não lhes pedimos que ridicularizassem o profeta. De 25 membros ativos, 12 responderam.
Temos uma tradição de sátira quando lidamos com a família real e outras figuras públicas, e isto se refletiu nas caricaturas. Os cartunistas trataram o Islã como tratam o cristianismo, o budismo, o hinduísmo e outras religiões. E, tratando os muçulmanos da Dinamarca como iguais, eles defenderam uma idéia: nós os incluímos na tradição dinamarquesa de sátira porque vocês são parte de nossa sociedade, e não estranhos. As charges incluem, e não excluem, os muçulmanos.
De modo algum os desenhos demonizam ou estereotipam os muçulmanos. Na verdade, eles diferem uns dos outros no modo como retratam o profeta e em seu alvo. Um zomba do Jyllands-Posten, retratando seus editores de cultura como um bando de provocadores reacionários. Outro sugere que o escritor de livros infantis que não conseguia encontrar um ilustrador foi a público só para obter publicidade barata. Um terceiro põe a líder do xenófobo Partido do Povo Dinamarquês, em formação, como se fosse suspeita de um crime.
Uma das caricaturas - retratando o profeta com uma bomba no turbante - motivou as críticas mais severas. Segundo vozes indignadas, a charge diz que o profeta é um terrorista ou que todo muçulmano é terrorista. Leio o desenho de outro modo: alguns indivíduos transformaram a religião islâmica em refém cometendo atos terroristas em nome do profeta. São estes que abalam a reputação da religião. O cartum também faz referência à fábula sobre Aladim e a laranja que caiu em seu turbante e fez sua fortuna. Isto sugere que a bomba vem do mundo exterior e não é uma característica inerente do profeta.
Ocasionalmente, o Jyllands-Posten recusou-se a publicar cartuns satíricos de Jesus, mas não porque siga um duplo padrão. De fato, o mesmo cartunista que desenhou a imagem de Maomé com uma bomba no turbante desenhou uma charge mostrando Jesus na cruz com notas de dólar nos olhos e outra exibindo a estrela de Davi ligada a um pavio de bomba. Não houve, contudo, incêndios de embaixadas ou ameaças de morte quando publicamos estas. O Jyllands-Posten insultou e desrespeitou o Islã? Certamente, ele não pretendia. Mas o que significa respeito? Quando visito uma mesquita, mostro meu respeito tirando os sapatos. Sigo os costumes, como faço numa igreja, sinagoga ou outro local sagrado. No entanto, se um fiel exige que eu, como infiel, observe seus tabus no domínio público, não está pedindo meu respeito, e sim minha submissão. E isto é incompatível com uma democracia secular.
É exatamente por isso que Karl Popper, na obra seminal A Sociedade Aberta e seus Inimigos, insistiu que não se deve ser tolerante com os intolerantes. Em nenhum outro lugar tantas religiões coexistem pacificamente como numa democracia onde a liberdade de expressão é um direito fundamental. Na Arábia Saudita, você pode ser preso por usar uma cruz ou levar uma Bíblia na mala, enquanto os muçulmanos na Dinamarca secular podem ter suas próprias mesquitas, cemitérios, escolas e estações de TV e rádio.
Reconheço que algumas pessoas se ofenderam com a publicação das charges, e o Jyllands-Posten se desculpou por isso. Mas não podemos nos desculpar por nosso direito de publicar materiais, até mesmo ofensivos.
Não se pode editar um jornal paralisado por temores sobre todos os insultos possíveis. Sou ofendido todo dia por coisas no jornal: transcrições de discursos de Osama bin Laden, fotos de Abu Ghraib, pessoas insistindo que Israel deveria ser eliminado da face da Terra, pessoas dizendo que o Holocausto nunca aconteceu. Mas isso não me impede de publicá-las, contanto que respeitem os limites da lei e do código de ética do jornal.
Como ex-correspondente na União Soviética, sou sensível a pedidos de censura por razões de insulto. Este é um truque popular dos movimentos totalitários: rotular qualquer crítica ou defesa do debate como um insulto e punir os transgressores. Foi o que aconteceu com ativistas de direitos humanos e escritores como Andrei Sakharov, Vladimir Bukovski, Alexander Soljenitsyn, Natan Sharanski, Boris Pasternak. O regime os acusou de propaganda anti-soviética, do mesmo modo como alguns muçulmanos rotulam 12 charges de um jornal dinamarquês como antiislâmicos.
A lição da guerra fria é: se você cede a impulsos totalitários uma vez, novas exigências se seguem. O Ocidente prevaleceu na guerra fria porque mantivemos nossos valores fundamentais e não nos curvamos a tiranos totalitários.
Desde a publicação das caricaturas, em 30 de setembro, temos um debate construtivo na Dinamarca e na Europa sobre a liberdade de expressão, a liberdade de religião e o respeito aos imigrantes e às crenças das pessoas. Nunca tantos muçulmanos dinamarqueses haviam participado de um diálogo público - em reuniões em câmaras municipais, cartas a editores, colunas de opinião e debates no rádio e na TV. Não tivemos distúrbios antimuçulmanos, êxodo de muçulmanos do país ou muçulmanos praticando atos de violência. Os imãs radicais que informaram de modo equivocado seus colegas no Oriente Médio sobre a situação dos muçulmanos na Dinamarca foram marginalizados. Estes não falam mais em nome da comunidade muçulmana da Dinamarca porque os muçulmanos moderados tiveram a coragem de se manifestar contra eles.
Em janeiro, o Jyllands-Posten publicou três páginas inteiras de entrevistas e fotos de muçulmanos moderados afirmando não serem representados pelos imãs. Eles insistem que sua fé é compatível com uma democracia secular moderna. Uma rede de muçulmanos moderados comprometidos com a Constituição foi estabelecida e o Partido do Povo conclamou seus membros a distinguir entre muçulmanos radicais e moderados, isto é, entre muçulmanos que propagam a lei da sharia e muçulmanos que aceitam o domínio da lei secular. A face muçulmana da Dinamarca mudou e está ficando claro que este debate não é entre "eles" e "nós", e sim entre aqueles que são comprometidos com a democracia na Dinamarca e aqueles que não são.
Algumas das corajosas defesas de nossa liberdade de expressão foram inspiradoras. Mas manifestações trágicas no Oriente Médio e na Ásia não era o que esperávamos e muito menos desejávamos. Além disso, o Jyllands-Posten recebeu 104 ameaças registradas, dez pessoas foram presas, cartunistas foram obrigados a se esconder por causa de ameaças a suas vidas e a sede do jornal foi esvaziada várias vezes graças a ameaças de bomba. Este dificilmente é um clima para atenuar a autocensura.
Ainda assim, creio que os cartuns agora têm lugar em duas histórias separadas, uma na Europa e outra no Oriente Médio. Nas palavras da política holandesa de origem somali Ayaan Hirsi Ali, a integração dos muçulmanos nas sociedades européias foi acelerada em 300 anos graças aos cartuns; talvez não precisemos travar mais uma vez a batalha pelo Iluminismo na Europa. A história no Oriente Médio é mais complexa, mas isso pouco tem a ver com os cartuns.

* Flemming Rose, editor de Cultura do jornal dinamarquês 'Jillands-Posten', escreveu este artigo para 'The Washington Post'. O diário da Dinamarca publicou originalmente as 12 charges sobre o profeta Maomé em setembro, causando a violenta reação da população de praticamente todos os países muçulmanos.
Fonte: O Estado de S. Paulo - Terça-feira, 21 fevereiro de 2006

2 comentários:

Anônimo disse...

Irretocável! Exageros a parte, mister recordar antiga manifestação de juiz da Suprema Corte Americana: "a imprensa existe para ser livre, e não para ser justa".

Abraço.
Rodrigo Sales (Fortunato)

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Fortunato!!! Hahahaha
É isso mesmo, grande Rodrigo.
Bom vê-lo comentando por aqui. Um abraço.