segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Tensão essencial


Thomas Kuhn
Em Epistemologia, ou Teoria do Conhecimento, ou Filosofia da Ciência, expressões geralmente utilizadas como sinônimas, Thomas Kuhn e Paul Feyeraband são conhecidos como críticos do conhecimento científico, ou pelo menos da forma como ele geralmente é conduzido na contemporaneidade. Kuhn se reporta às mudanças na ciência como ocorrendo aos saltos, em mudanças bruscas decorrentes da quebra de paradigmas (expressão cunhada por ele e que caiu no gosto popular), não sendo as motivações dos cientistas necessariamente a busca pela verdade. Feyerabend, por sua vez, compara a ciência à religião, dizendo que o Estado deve ser tão distante desta última como também da primeira, não porque as despreze, mas porque entende que só assim se respeitará a liberdade das pessoas de produzirem saber (e de o acessarem) por outros meios, da maneira que considerarem mais adequada. Na produção do conhecimento, valeria tudo, e não somente o "método científico". Tratei disso aqui, naquela postagem intitulada "Anything goes!"

Paul Feyerabend
Não é o caso, porém, de aprofundar a análise do pensamento destes dois. Para quem quiser fazê-lo, o melhor é lê-los diretamente. Escrevem de maneira fácil, e seus livros estão no mercado: a estrutura das revoluções científicas, de Kuhn, e, posteriormente, seu "tensão essencial". E, de Feyerabend: Contra o método; a conquista da abundância, adeus à razão, a ciência em uma sociedade livre, dentre outros.

No "Direito e sua Ciência" falo um pouco do assunto. Entendo que  são bons no diagnóstico de alguns problemas, mas, em minha modesta opinião, insuficientes na terapêutica. Tanto que eles próprios, depois, ambos, tiveram de se "retratar", dizendo que de seus livros não se podem tirar as conclusões extremadas que muitos tiraram. Feyerabend fez isso no "Ciência, um monstro", já comentado aqui no blog. E Kuhn no "tensão essencial", que examina exatamente a tensão - essencial à ciência - que deve haver entre CONVERGÊNCIA (senão não se constrói nada), e DIVERGÊNCIA (para se manter aberto o conhecimento para correções, aprimoramentos etc., advindos da crítica). No fundo, de algum modo, voltamos a Popper, com alguns pequenos ajustes.

Este post pretende, contudo, destacar o fato de que, décadas atrás, era geralmente a esquerda, e os defensores do meio ambiente (que não precisam estar no mesmo grupo, mas geralmente estão), que criticavam acerbamente a ciência, com amparo justamente em tais autores. A ciência feita por (a) homens; (b) brancos; (c) ocidentais; (d) europeus; (e) heterossexuais; (f) capitalistas - cada uma dessas palavras representaria um defeito mais horrível - seria a culpada por todos os males do mundo, e a bomba atômica era sempre o exemplo central, seguido pela poluição causada por combustíveis fósseis. Cada uma das letras acima resenhadas representaria um demônio diferente, e os textos de Direito Ambiental tinham quase todos que começar exorcizando-os. Curiosamente, faziam-no com amparo - vejam só! - em autores que se encaixavam não raro em TODAS as letras, mas talvez não notassem a contradição. O pós-modernismo, realmente, gostava de criticar "tudo o que estava aí", e pregava até um certo relativismo, mas tudo para no final defender ideias meio que de centro esquerda, com base justamente "em tudo o que estava aí", e sem uma motivação clara de por que, diante de tanto relativismo, e tantos erros e "quebras de paradigma" e "fins de metanarrativas", se deveria escolher justamente essa visão, em vez de outras. O mesmo paradoxo em que incorre o ceticismo, a demonstrar que o relativismo é apenas uma espécie deste.

O curioso é que, décadas depois, o feitiço virou contra o feiticeiro. Há algum tempo eu vinha dizendo isso, especialmente em debates e bancas examinadoras: que os danos ao meio ambiente não são necessariamente ligados ao capitalismo, ou, pior, à "ciência ocidental". O maior desastre ambiental de todos os tempos deu-se em Chernobyl, e não tinha nada a ver com o capitalismo. Aliás, a cortina de ferro e os governos que se situavam atrás dela talvez tenham agravado as consequências do desastre, levando-o a uma amplitude que em uma sociedade aberta não teria ocorrido. E mais: o relativismo não é correto, nem bom, sendo certo que é a ciência - sim, ela, que antes era a vilã - que está apontando os danos ao meio ambiente e indicando formas de preveni-los, minimizá-los ou repará-los. Carl Sagan há muito falava em efeito estufa e redução de emissões, quando isso ainda nem estava na moda. Quem assistia a Cosmos nos anos 80 lembra bem.

O que se assiste hoje, em relação a fake news, terraplanismo (wtf!!!) etc. etc., é apenas uma consequência desse relativismo, a mostrar que o "vale tudo" pode fazer com que terminem valendo coisas absurdas (e ruins), e o fato de termos dado "adeus à razão" nos deixa sem elementos para combatê-las. Em ciência é preciso divergir, ouvir vozes discrepantes, permanecer aberto à possibilidade de erro (para que se o possa corrigir), mas isso não significa que tudo pode ser verdade, ou, pior, que a verdade é uma QUESTÃO DE OPINIÃO. O video abaixo resume isso muito, mas muito bem:





Enfim, tem-se aqui uma boa maneira de lembrar às pessoas de que o conhecimento científico, produzido em ambiente aberto à crítica, com liberdade e igualdade, cujos resultados podem ser conferidos e submetidos a tentativas de falseamento por pares, é a melhor forma de se construir um mundo melhor, o que não tem nada a ver com capitalismo ou comunismo, com ser o pesquisador homem ou mulher, negro ou branco, ou com o país onde nasceu e onde faz suas pesquisas.
 
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