Algum tempo se passou desde a última postagem. Resolvi tirar férias e, para deixar tudo em dia no escritório antes de sair (alguns clientes parece que adivinham e trazem as urgências justo nessa hora), não dispus de tempo para postar nada. Depois, viajando, não quis postar nada.
Mas, antes de viajar, ocorreu-me uma coisa que, pensei, renderia um post no momento oportuno. E é o que faço agora, ainda retomando o ritmo de trabalho.
O fato rendeu-me boas risadas, dentro de uma filosofia de "rir para não chorar". E mostra o quanto se perde tempo e energia com burocracia inútil no Brasil. Vamos a ele.
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Há algumas semanas tive de tirar o "certificado digital" da sociedade de advogados da qual faço parte. Tal providência tornou-se necessária para o cumprimento de obrigações tributárias acessórias junto à Secretaria da Receita Federal.
Com nossa contadora, preenchi um enorme formulário e levei toda a documentação solicitada pela instituição que forneceria o certificado digital (Serpro). Chegando lá, fui atendido por uma gentil senhora que passou, com muita atenção, a verificar se eu havia preenchido o formulário corretamente:
- Nome... Ok... Endereço... Ok... CNPJ... Ok... Nome do sócio... Certo... Qualificação do sócio... Hum...
Os músculos de sua face então se contraíram, ela levantou-me a vista e disse:
- Você errou no preenchimento. Não poderei dar-lhe o certificado...
- Onde o erro, senhora? Indaguei surpreso. Ao que ela respondeu: - A identidade! Esse não é seu RG!
Realmente, eu não havia utilizado o meu número de RG, mas o da OAB. É menor, mais fácil de memorizar, de preencher, daí porque o utilizo com frequência quando tenho de dar algum número de identificação em hotéis, contratos, certidões etc. Por isso, argumentei:
- Mas, senhora, o número de OAB também é um número de identidade.
- Sim, mas não pode. Tem que ser o RG.
- Por quê?
- Porque sim. São normas internas...
Já preocupado, porque se avizinhava o término do prazo para cumprir as obrigações acessórias para as quais o certificado digital seria necessário, e sem estar muito disposto a esperar mais outro tanto para ser atendido em outro dia, insisti:
- Mas a carteira fornecida pela OAB também é uma identidade. Do mesmo modo que aquela fornecida pelo Ministério do Trabalho (CTPS), pela Polícia Federal (passaporte), ou pela Secretaria de Segurança Pública (RG)...
Cheguei a tirar do bolso a minha carteira da ordem, que tem mencionada a disposição legal segundo a qual ela serve como identidade em todo o território nacional. Mostrei a ela, que respondeu:
- É, pode ser que tenha essa lei aí, mas aqui nos temos normas. E as normas internas do Serpro dizem que só o RG serve...
- Ok, então posso preencher outro formulário, usando o meu RG dessa vez?
- Talvez. Deixe eu ver o contrato social da firma... Não! Não pode! No contrato social não consta seu RG, e o formulário do certificado digital tem que ter o mesmo número de identidade usado no contrato social.
Tinha sido por isso mesmo que eu havia usado o número da OAB, pois sabia que, segundo o Serpro, o meu número de identidade deveria ser o mesmo que constava do contrato social da pessoa jurídica. A lógica era: como eu fazia o certificado digital de uma sociedade de advogados, e constaria como seu representante, meu número de identidade deveria ser aquele pelo qual eu estava identificado no contrato social correspondente.
Ri, e respondi brincando: - Agora quebrou dentro. Não pode a OAB por causa das normas internas do Serpro, que prevalecem sobre a Lei 8.906/94. E não pode o RG porque não é o documento usado para identificar o sócio no bojo do contrato social. E agora, a firma ficará sem certificado digital? Terei de fazer um aditivo ao contrato social, inserindo, em minha identificação como sócio, o meu número de RG?
A senhora fez então um ar de sabedoria e de quem estava disposta a realmente resolver meu problema, e disse:
- Não faz mal. É só deixar em branco.
- O quê? Como assim?
- Simples. O senhor volta para o escritório, preenche pela internet outro formulário requerendo a concessão de um certificado digital, e ao se identificar, deixa em branco o campo destinado ao número do documento de identidade. Imprime e volta para cá. Olhe que o pessoal aqui vai embora às 16:00, mas, para o senhor ver como não estou de má vontade, poderei esperar até as 16:30.
Nessa hora não aguentei e comecei a rir. Depois de me controlar um pouco, perguntei: - Deixar em branco? Então a inscrição na OAB vale menos do que nada? Indicá-la é pior do que deixar em branco o espaço?
- É. São as normas internas.
- Ah, tá. Claro. As normas internas.
Sendo pragmático, e considerando a multa pelo atraso na entrega da declaração à Receita Federal, fiz o que ela disse e consegui tirar o certificado. Mas não parava de pensar no livro O CASTELO, de F. Kafka. É um livro muito, mas muito bom. Fazendo um paralelo com O PROCESSO, no qual o mesmo autor narra absurdos havidos no âmbito de um processo judicial, O CASTELO trata da Administração Pública, de seu funcionamento, mas tudo na mesma tônica onírica e fantasticamente arbitrária, burocrática, irracional e opressora.
A propósito de burocracia, na ocasião, estupefato, só consegui pensar na inscrição da OAB valendo menos do que nada para a concessão do certificado digital. Mas, depois, conversando com um colega no twitter, ouvi algo bastante preciso: - Ora essa, se se trata de campo que pode sem prejuízo ser deixado em branco, por que exigir o seu preenchimento (com o RG ou qualquer outro número)? Pura burocracia mesmo...
6 comentários:
Bem, na condição de Auditor-Fiscal, passamos por situação similar.
Temos certificado digital, salvo engano, desde 2006. A autoridade certificadora é o Serpro, mas que delegou à própria Receita Federal isto.
Pois bem, nossa identidade funcional também não era aceita (não lembro se hoje já é) como documento de identidade. Tinha que ser o RG.
M
Agora eu ri. Mas é assim...
ao ler o texto, lembrei de casos do processo civil, que mtas vezes se faz necessário que legislaçào infraconstitucional sejam editadas para se validar interpretações constitucionais.
pessoal tem preguiça de pensar.
Prezado Hugo, devo informar que fiquei mt feliz por vc ter passado por isso. NAda contra vc, longe disso, mas pelo menos para que alguém de credibilidade veja o que passamos -todos os dias- com essas antas e parasitas que habitam nossa Administração Pública. E digo mais, deu sorte que a atendente não levantou a voz pra vc ou te deixou falando sozinho. Aqui no Rio de Janeiro além de serem inúteis, tais servidores são muito mal educados, e ainda se acham no direito de fazer greve. Sei que a estabilidade no serviço público é para proteger não só os servidores, mas tb a própria instituição dos alvedrios dos maus administradores (que são em grande número), mas desde que comecei a atuar em orgãos públicos ainda como estagiário me pergunto que, se ninguém tivesse estabilidade se melhorariam esse escárnio. Se fosse juridicamente possível tercerizar tais serviços e criarmos uma Agência Reguladora, talvez ficasse "menos pior", mas nada comparado ao fim da estabilidade e a regulamentação -efetiva- do Art.37, §3º, I da CF. O que pensa a respeito?
Parabéns pelo "post" e grande abraço.
Daniel,
Passo por isso sempre também, na Receita, na Justiça, na Sefaz, na Sefin... Não precisei dessa experiência no Serpro para "ver" que a Administração Pública é assim.
Apenas chamou a minha atenção a supina irracionalidade no presente caso, e que partia de alguém que parecia, sinceramente, disposta a ajudar...
Quanto à terceirização, o remédio seria, com certeza, pior que a doença. Trata-se de porta escancarada para fraude (paga-se à empresa de terceirização muito mais do que o custo dos empregados terceirizados, sendo a "diferença" muitas vezes válvula de escape para desvio de verba pública) e para a violação à impessoalidade e para o nepotismo (o administrador "pede" ao dono da empresa de terceirização para "dar uma vaga" para fulano ou beltrano), burlando-se a exigência do concurso público.
Na minha tese de doutorado - Fundamentos do Direito, São Paulo: Atlas, 2010 - trato do assunto, no capítulo final.
Acredito que a melhor solução não é essa, e sim a publicização de tais comportamentos, além da responsabilidade pessoal, nos casos mais graves.
Professor,
Muito feliz a sua alusão kafkaniana. Acho graça quando o servidor fica sem argumentos, ai ele joga a culpa no "sistema".
E contra o sistema, não há argumentos. Ele é irredutível, inacessível, e nos faz conviver com o surrealismo de uma situação na qual um regulamento interno vale mais do que a própria constituição, como se cada cartório, orgão e repartição fosse uma republiqueta autônoma.
abs,
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