domingo, 6 de outubro de 2013

Tudo é linguagem?

Há respeitável corrente, no domínio da Filosofia, que se estendeu, no caso do Direito, notadamente para o Tributário, por influência de respeitabilíssimos autores, como Paulo de Barros Carvalho, segundo a qual tudo é linguagem. A premissa, em rápidas palavras, é simples: o mundo 1 (Popper), de fatos brutos (Searle), não nos é acessível diretamente. Não vemos a realidade "como ela é". Isso Kant já havia evidenciado: vemos a realidade como os nossos sentidos, que são imperfeitos, nos mostram. Mas, com a virada linguística, foi-se além: vemos a realidade transformada em linguagem, vale dizer, interpretada. Além da interferência gerada pela imperfeição dos sentidos, há aquela gerada pela intermediação da linguagem. Até aí, tudo bem. O problema é que, daí, parte-se para uma noção de que tudo é linguagem, uma linguagem auto-referencial, sendo irrelevante - porque inacessível - qualquer dado empírico extralinguístico. Não importa o mundo dos fatos, mas só o que dele tiver sido "convertido em linguagem". A verdade deixa de ser aquela propriedade do enunciado que corresponde à realidade para se tornar apenas o "relato vencedor".

Existem limitações óbvias na tentativa de resumir algo tão complexo em poucas palavras, mas acredito que, para os propósitos deste texto, a resenha está satisfatória.

Sabe-se que, mais recentemente, a neurociência tem feito avanços interessantes nessa área. Materializa-se a previsão de Freud, de que a biologia confirmaria muito de suas ideias em relação à mente humana, mas que revelaria que outras eram equivocadas, ingênuas até. Talvez eles, esses avanços, mudem consideravelmente a forma como se compreende a linguagem e a cognição humanas. Mas, sem entrar, ainda, em tais avanços da neurociência, que ficarão para outro post, é o caso de examinar algumas questões interessantes que decorrem das ideias lançadas no primeiro parágrafo deste texto, mesmo se se admitirem as premissas filosóficas traçadas nele.

Quanto à questão de saber se tudo é linguagem, parece claro que não. E quanto mais os críticos avançam ao apontar os defeitos dessa visão, mais seus defensores recuam, primeiro a reconhecer que a linguagem não é só a textual, mas também outras, como a corporal, chegando-se a admitir como signo qualquer coisa a que se possa atribuir sentido, sendo linguagem o próprio pensamento. Daí dizer-se que, se não é pensado, não existe (para o pensante, pelo menos, temos que admitir). Steven Pinker refere-se a um "mentalês", para designar a linguagem da mente existente antes mesmo do aprendizado da linguagem falada ou escrita, e que subsiste "por trás" da linguagem verbalizada ou simbólica, o que autoriza praticamente a se equiparar linguagem a pensamento racional. Mas, caso se admita isso, não se poderá dizer, por exemplo, que algo não existe se não tiver sido transformado em linguagem competente.

Mas, se associamos linguagem a pensamento, ou pelo menos àquele que pode se exprimir por linguagem (opa! então ela não é "o" pensamento que por meio dela se exprime), esbarramos no primeiro problema: há sentimentos, ou sensações, que NEM SEMPRE se podem exprimir em linguagem, mas não obstante existem e sabemos disso. Essa idéia, que está na base da estética, foi traduzida de forma sublime por Cervantes, na seguinte fala de Sancho:

„ – Sabereis, amigo, que nós outros, os escudeiros dos cavaleiros andantes, andamos expostos a muitas fomes, além de outras desgraças e coisas que melhor se sentem do que se explicam.“


Vejam. Cervantes não transformou em linguagem, no caso, as realidades inexprimíveis em linguagem. Ele apenas chamou a atenção para a existência delas. Mas não sabemos quais são pela linguagem, que não as explicaria. Precisamos senti-las. Se linguagem é sinônimo de pensamento racional, subsistem, à toda evidência, sentimentos, sensações e uma série de outras realidades "inexprimíveis", cuja existência testemunhamos de alguma outra forma. Italo Calvino, por exemplo, refere-se ao inconsciente como "o oceano do indizível".




Mesmo que se amplie o conceito de linguagem ainda mais, para incluir inclusive o que é sensível mas é inexprimível, há outro exemplo de limitação da visão de que "tudo é linguagem": o desconhecido.

Se tudo é linguagem, porque só existe para a criatura humana o que é transformado em linguagem, o que não foi transformado em linguagem simplesmente não existe. Logo, toda a realidade é conhecida, o que significa dizer que não existe o desconhecido, nem, com ele, a ignorância humana. É preciso, evidentemente, admitir a existência de algo "extralinguístico ainda não transformado em linguagem" para admitir a ignorância e a necessidade de se tentar diminui-la. Do contrário, se o que não foi convertido em linguagem não existe, procuraremos continuar pesquisando para descobrir coisas novas com base em quê? 

O desconhecido existe. Paradoxalmente, não o conhecemos, mas sabemos que ele existe. É o que Rescher chama de "paradoxo do prefácio". Nos prefácios, os autores de livros geralmente pedem desculpas pelos erros, que sabem presentes em seus livros. Seria o caso, porém, de indagar: se conhecem os erros, e sabem que são erros, por que não os corrigem?! Simplesmente porque sabem que existem os erros, mas não sabem, ainda, onde estão. Assim caminha o conhecimento: a humanidade sabe que existe o desconhecido, pois é ele que torna o conhecimento atual provisório e falível, mas, enquanto esse desconhecido assim permanece, não se altera o que até agora se sabe, que representa o máximo do que se conseguiu alcançar. Essa é a base do falibilismo de Karl Popper, um meio termo equilibrado diante das dificuldades de conhecer o real apontadas no início deste texto, e que tem como extremos (que quase se tocam) o ceticismo (se o conhecimento é falho, tudo é certamente falso, desde vacinas, tratamentos para o câncer etc.) e o anarquismo epistemológico (se o conhecimento é falho, tudo pode ser verdadeiro, sendo a astrologia e o vodu tão válidos quanto os antibióticos e a necessidade de assepsia nos Hospitais).

Ainda no caso especificamente do Direito, pode-se acrescentar, como faz Goyard-Fabre: de onde, da linguagem, tira-se a obrigatoriedade do Direito? É porque certas frases são, linguisticamente, imperativas? Mas onde na linguagem se acha a necessidade de serem obedecidas? É preciso recorrer a algo diverso da linguagem para respondê-lo.


Como diz Taruffo, a visão de que tudo é linguagem, uma linguagem "auto-referencial" que despreza qualquer referencial empírico extralinguístico, não passa de uma visão atualizada do idealismo. Se a verdade dos fatos é estranha aos defensores de tal teoria, que a consideram "irrelevante" (verdade é apenas um relato vencedor), tem-se, diz Taruffo, uma prova da notória deficiência dessa teoria, e não da inexistência do problema da verdade.

Daí decorrem, ainda, outros problemas. Se se admite que a verdade é apenas um relato vencedor, pois tudo é linguagem, torna-se problemática a definição de ciência como algo descritivo (ainda que não "meramente") de uma realidade, pois perde-se o referencial a partir do qual seria possível cogitar de alguma objetividade, ou mesmo intersubjetividade, o que foi apontado por Humberto Avila, em texto que até mereceu uma resposta de Paulo de Barros Carvalho. Por coincidência, crítica semelhante me dirigiu Diego Bonfim, em relação ao meu "Por que dogmática jurídica?", pois entendia ele que não se partindo do texto como um dado inalterável não seria possível o próprio discurso científico, crítica que, acredito, respondi em post específico, mas que, paradoxalmente, agora se volta contra o marco teórico que ele adotava à época, sob a forma de uma contradição interna. Mas isso, junto com os elementos de neurociência antes mencionados, é assunto para outro post. Ou, talvez, para artigo mais longo, pela necessidade de referências e extensão incompatíveis com os propósitos informais e lúdicos deste espaço, que usei apenas para pensar alto e desde logo partilhar - sobretudo para ouvir ou ler quem quiser criticar - tais ideias.

Quanto à crítica, aliás, se não descambar para a falácia, notadamente a ad hominem (que, paradoxalmente, enfraquece a si e ao seu autor, e não a quem se pretende criticar), ela deve ser vista com positividade. É a crítica que enseja o progresso do pensamento humano, devendo-se submeter as ideias ao mesmo processo de seleção natural que, em um ambiente hostil, seleciona os organismos mais aptos. Como mostra a epistemologia evolutiva popperiana (e, aliás, bem antes dele, ainda em 1937, a de Pontes de Miranda), foi assim que os animais "aprenderam" a ver, ouvir, correr, digerir, enfim, sobreviver, e é assim que a humanidade segue aprendendo, só que, com a ciência, sem a necessidade de sacrificar os indivíduos que acolhem ideias equivocadas: morrem as ideias, mas não se matam seus autores.

8 comentários:

Marcílio Dantas disse...

Muito interessante. A conexão que você faz entre as diversas áreas do conhecimento é sempre algo muito interessante e estimula a reflexão sobre os temas abordados. Pensarei sobre o assunto.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Que bom, Marcílio. Obrigado pela participação. Não hesite em comentar aqui o resultado de suas reflexões sobre o assunto, se quiser.

gregory disse...

A preocupação em criticar a tese que hoje é capitaneada pelo Prof. Paulo de Barros, a meu ver, sempre peca pelo preconceito. O que parece não ser tolerado por alguns é esse sarcófago dos conceitos jurídicos. A teoria da incidência do Pontes de Miranda, por exemplo, tem uma visualização muito boa nas obras do prof. Paulo e de maneira alguma é descartada como "errada". Só se abre para ver se é mesmo a melhor proposta e se ela sobrevive na nova filosofia da linguagem. A questão da incidência, e.g., ganha adeptos por ser boa, não por uma ditadura dos "doutores". E é um aspecto que o Adriano Soares critica infantilmente no livro dele. Incrivelmente, achei o Prof. Humberto Ávila pior do que o Adriano Soares nesta questão de conhecer antes de "panfletar". A despeito das citações isoladas (portanto, perigosas), Ávila fala no artigo dele em objeção epistemológica do "giro-linguístico" (p. 197), que penso eu ser na verdade ontológica.
Remeto sempre não só ao "fundamentos jurídicos da incidência", mas também "linguagem e método" e "curso" do Prof. Paulo. Livros que dão uma noção mais abrangente de tudo que o prof. Paulo fala. Enfim, a discussão é muito boa e merecia uma oxigenada. No mais, parabéns pelo artigo e Blog em geral.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro Gregory,
Você tem razão quando afirma que muito criticam baseados no preconceito. Acontece muito com os críticos de Kelsen, por exemplo, que falam dele coisas que ele jamais disse, e que uma rápida leitura da TPD revela serem equivocadas.
Não estou, contudo, dizendo que esse é o caso do Ávila, ou de todos que criticam o prof. Paulo. Na verdade, a demasiada ênfase que se tem dado à linguagem, no plano da filosofia, tem provocado críticas dentro da própria filosofia, em contexto muito mais amplo que o do Direito Tributário. Não se pode dizer, portanto, que toda a crítica a essa ideia seja calcada no preconceito. Do contrário, teríamos de admitir que a teoria é infalível, e que quem não se deixa levar pelo preconceito é incapaz de criticá-la.
Obrigado por sua colagoração. E, por favor, não chame essas linhas rapidamente organizadas no blog de "artigo". Está longe de ser um. São apenas reflexões que registrei aqui, com o propósito muito mais de estimular do debate do que de propriamente participar dele.
Att.

gregory disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
gregory disse...

Claro,

tenho feito um esforço de estudar a filosofia sozinha, e a questão da linguagem está longe de ser uma unanimidade. Aliás, se formos julgar por números de adeptos deve até estar perdendo. Agora, se quisermos refletir filosoficamente, não é simplesmente dizer que a árvore que esta vendo pela janela é a "prova" de que nem tudo é linguagem (já vi esse argumento, por incrível que pareça). Tem que ir fundo no negócio, até para dizer com o que não concorda.

O mérito do giro-linguístico, e esse a meu ver ninguém pode tirar, é a reabertura do debate já fechados, professor. Fechados, mas ainda problemáticos para os operadores. A incidência é um desses debates. A metafísica da verdade material é outro. Tudo isso reaberto e pronto para redefinição geral. Eu cito muito o prof. Paulo de Barros sempre, pois me identifico muito com suas obras, mas tem outros também e com novas ideias. O importante é isso: compreender, sugerir, repensar, adaptar, sem parar...

Acredito que o senhor, que vai já fez estudos fora do Brasil, sabe como o discurso é avançado e consistente para lá. Eles abordam (ou já abordaram até cansar) todas as variáveis conhecidas e sugeridas sobre qualquer assunto.

Não sei o motivo de tanta aversão ao novo (mesmo que ele seja imperfeito). A sua crítica aos críticos do TPD é perfeita e é o retrato do que se estou dizendo. Tudo virou uma espécie de ladainha não refletida (e isso não pode ser perdoado). Eu acrescento as novas "correntes" que tem crescido no Brasil a lado desta que o senhor citou: a dos críticos dos doutrinadores que "só" filosofam e dos que usam nota de rodapé em língua estrangeira. Em outras palavras, qualquer um que escreve ou reproduz o que o STF diz e fecha a conta, ou é melhor nem escrever para não perder o tempo do leitor. E aprender uma língua para trazer uma saudável discussão para o Brasil também não pode. Poxa! De onde surgiu isso? Cada coisa...

Enfim, não conhecia o seu blog, professor. Se eu continuar sendo bem vindo, continuarei a visitar e a contribuir nos comentários. Parabéns outra vez pelo texto(agora sim).

Um grande abraço.

Álisson Melo disse...

Professor Hugo, o exercício de "verter em linguagem competente" esses pensamentos altos é essencial para a consolidação de reflexões mais profundas que um artigo pode carecer. Resolvi me aventurar um pouco a respeito dessa temática, mas ainda com muitas reflexões particulares e pouca leitura específica. Nesse sentido, vou trazer algumas compreensões a partir do que tenho ouvido diretamente do prof. Manfredo Oliveira (sem o menor intuito de trazer um argumento de autoridade, mas sim de identificar alguém que creio estudar o tema com maior detença). Uma das coisas que chama a atenção no discurso dele a respeito da "virada" é que ela não pode significar, para a Filosofia, um objeto de estudo - ou seja, a redução da Filosofia à Filosofia da Linguagem -, mas, na verdade, que a virada deve ser metodológica para a Filosofia - quer dizer, que o propósito e os temas da Filosofia devem ser revisitados a partir dessa nova compreensão de como conhecemos o mundo. Isso é importante para que não se transforme "tudo em linguagem" e que as análises sejam sempre de caráter linguístico.

Sobre o desconhecido, trazendo aqui a crítica do pensamento complexo, não existe simplesmente uma linha divisória entre uma coisa e outra. Uma etapa característica da cognição humana pela linguagem é justamente um uso corriqueiro de metáforas e metonímias para, num primeiro contato com o desconhecido (coisa in cognoscendo que se desvela para o sujeito cognoscente, identificar o desconhecido dentro das categorias daquilo que já se conhece. E, além disso, os próprios conhecimentos que acreditamos serem realmente conhecidos são, por sua vez, falíveis.

Outra coisa que tem me chamado a atenção é com as tais contradições performativas. Na linha discursiva do prof. Manfredo Oliveira, a virada linguística sofre uma segunda inflexão através do aspecto pragmático da linguagem (Wittgenstein com "Investigações Filosóficas", John Austin com "How to do things with words") e, com base em Apel, mostra que o método para identificar um argumento válido é através das contradições performativas (a ação discursiva não pode se contradizer com o seu conteúdo). O exemplo que ele traz é o do cético, em relação ao qual diria Apel para que ele sequer abrisse a boca para falar. Sobre isso, tenho me perguntado até que ponto um argumento ad hominem pode passar a ser considerado válido.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro Alisson,
Obrigado por sua valiosa participação.
Realmente, o argumento cético contradiz-se performaticamente, pois o ceticismo, tomado de forma coerente, torna impossível até mesmo o diálogo. Somos falibilistas em nossa relação com o mundo: se fôssemos céticos não sairíamos do lugar. Se alguém, diante de uma formiga, diz que não sabe se vê uma formiga, pode estar sendo cético sobre o que vê, mas admite que existe um ser chamado formiga, com tais e tais características. Se não admitir, não poderia sequer falar de uma...
Importante, também, sua observação sobre a linha divisória. Realmente não há. Tanto conhecemos o desconhecido gradualmente, a partir do conhecido, como o próprio conhecido não o é inteiramente, e está a todo instante sendo retificado.
Quanto ao que você disse do Prof. Manfredo, trata-se de registro importante: o problema não está no giro linguístico propriamente, mas em estudar as coisas a partir dele em vez de apenas estudá-lo em detrimento do estudo das coisas.