segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Positivismo, judiciário e democracia

Já faz algum tempo, falar mal do positivismo entrou na moda. Ainda que o crítico não saiba muito bem do que fala; ou apenas ecoa.
Não que ele não tenha defeitos, o que por certo não é o caso. Mas alguns críticos apontam defeitos que ele não tem, a exemplo de "levar a interpretações literalistas". Sabe-se, com um pouquinho só de estudo, que o "discricionarismo do intérprete" é uma das características das várias correntes positivistas. Quem já leu o último capítulo da Teoria Pura do Direito, e viu algo sobre uma tal "moldura", sabe do que se está falando.
Outra crítica é a de que o positivismo seria "conservador", sendo usado pela burguesia para manter o status quo. Ela aparece e reaparece de vez em quando.
Não duvido que isso possa ter acontecido, e ainda acontecer, mas sempre tenho ressalvas com tais afirmações assim tão simplistas. Geralmente - mas nem sempre! - abordagens marxistas, ou com influência marxista (mas não só elas!), têm essa característica. Tudo é muito simples, tendo sido causado pela burguesia e pelo capitalismo, que seria a causa de toda a desgraça existente no mundo, até mesmo daquelas anteriores à própria humanidade... Quanto mais se estuda mais se vê, na verdade, o quanto a realidade é complexa, existindo causas e fatores os mais diversos, muito mais amplos e interconectados do que o modesto aparato neurológico humano é capaz de compreender. No caso específico do suposto conservadorismo do positivismo, no Direito, fosse verdade que um maior "desapego" do juiz ao direito posto permitiria as tão desejadas "mudanças sociais", seria o caso de indagar: não é o Judiciário, em regra, pelo menos nas democracias, uma instituição mais distante do povo, e mais próxima das (ou pelo menos mais acessível às) classes mais favorecidas, se comparado ao parlamento? É preciso cuidado, pois o tal "desapego" do juiz à lei pode, do mesmo modo, conduzir o conservadorismo a reprimir ou conter saudáveis mudanças sociais introduzidas pela via legislativa. Quem conhece a jurisprudência da Suprema Corte Americana do período do New Deal sabe disso.
Em conclusão, não se quer, com este post, defender o positivismo. Tampouco criticar ou defender o ativismo judicial. O propósito é, tão somente, o de clamar à crítica responsável, que tente (porque conseguir é impossível) levar em conta todas as variáveis possíveis no enfrentamento de qualquer problema.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Dia do blog

Dia 31/8 foi o "dia do blog", e eu nem fiz uma postagem específica. Mas ainda há tempo de fazê-lo.

Esse veículo parece ter sofrido um pouco com o advento do facebook, onde as pessoas postam com mais facilidade certos assuntos ou arquivos e compartilham com quem lhes interessa. Mas ainda há espaço para as duas formas de expressão na internet, que têm usos que não se sobrepõem. As postagens no blog são mais perenes e de mais fácil localização e acesso por meio de mecanismos de busca, estando, de resto, disponíveis mesmo para quem não faz parte do círculo de "amizades" de quem as faz, em qualquer parte do mundo.

Em relação a indicação de blogs, algo costumeiro no "dia do blog", já indico, no gadget ao lado, alguns  de minha preferência. Aproveito o ensejo para indicar outros, não jurídicos, mas relacionados a assuntos igualmente interessantes:


 


Em relação ao primeiro, recomendo, especificamente, a série "inkcyclopedia", que tem análises muito interessantes sobre as mais variadas tintas. Sim, é possível avaliá-las por critérios tão complexos (e pertinentes!) quanto os que se usam para julgar vinhos, por exemplo. No caso das tintas: a cor, a rapidez com que secam, a aptidão que têm para não atravessar o papel, ou para não se espalhar para além de onde passou a caneta, apenas para citar alguns exemplos. Há tintas fantásticas nesses quesitos (v.g., J. Herbin Rouge Hematite, Lindauer Blau), e outras nem tanto (v.g., Noodler´s Mandalay Maroon).

E, a propósito do dia do blog, recebi, em virtude dele, gentil presente da Faber-Castell. Um pacote com duas canetas esferográficas suaves e com boa escrita, três pincéis para quadro branco (azul, preto e vermelho) que usarei em minhas aulas na Faculdade de Direito da UFC, uma lapiseira, e duas canetas marca-texto de gel (não são hidrográficas, assemelhando-se a um lápis de cera de cor vibrante e meio transparente. Muito bom para evitar manchas e borrões em livros a terem trechos marcados). Juntei-os à minha coleção de itens de escrita, na qual já há boas tintas da marca para canetas tinteiro. Mesmo em tempos de iPad, Kindle e eBooks, ler e escrever em papel ainda tem o seu valor, assim como tomar notas, grifar e rabiscar livros, monografias, teses e dissertações. Sou à Faber-Castell muito grato pela lembrança.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

As origens da moral

Dizem que os europeus, em razão da fauna natural de sua região, durante muito tempo não tiveram contato com primatas superiores, a exemplo de chimpanzés, bonobos ou gorilas. Isso talvez tenha acentuado a visão, que é quase um lugar comum tanto na filosofia como nas religiões ocidentais, de que a criatura humana seria radicalmente diferente, qualitativamente falando, dos outros animais. Em face dessa visão, até a palavra "outros", nesse contexto, incomodaria. Existiriam homens (e mulheres, por certo - refiro-me ao ser humano, mas vou evitar o termo, que é machista), de um lado, e animais, de outro. Essa seria a explicação para a perplexidade da Rainha Vitoria quando pela primeira vez viu um primata, levado a um Zoológico em Londres em 1835, achando-o "desagradavelmente humano".

Em razão disso, assentou-se a compreensão, no âmbito da Filosofia e do Direito, de que a moral e o senso de justiça, a depender da postura adotada, seriam ou fruto da religião, ou pura "criação" da razão humana.

O estudo da biologia, porém, aponta, com cada vez maior profundidade, a inexistência de fronteiras assim tão claras entre a criatura humana e os outros animais. Não que não haja diferenças, por óbvio, mas que elas são muito menores do que inicialmente se pensava (é que com o pouco a mais que temos fazemos muito!), sendo mais quantitativas do que qualitativas, havendo uma zona cinzenta imensa entre nós e eles. Não apenas se descobrem cada vez mais aspectos "humanos" nos animais, como, também de forma crescente, aspectos "animais" no homem, que não é tão (ou nem sempre tanto) racional quanto se pensava. Freud já o havia intuído, mas, confirmando previsão que ele mesmo fizera, a biologia tem tornado, nas últimas décadas, isso muito mais acentuado.

Merecem leitura, nesse contexto, os livros de Francis de Waal. Eles me foram sugeridos por uma gentil Procuradora da Fazenda Nacional, cujo nome infelizmente não guardei, em face de referências que fiz a esse respeito em evento em Gramado/RS, no qual falei sobre ética nas relações tributárias. Indico, em especial, Good Natured, que nos faz ver o quão ingênuas são as ideias de contrato social, de aspectos "essenciais" à criatura humana que os demais animais não teriam etc. Chimpanzés têm hierarquia, regras "morais", e até rudimentos de "jurisdição", sendo um dos fatores para que o grupo reconheça a autoridade do "macho alfa" a sua habilidade em resolver conflitos de forma equânime e imparcial. E tais fatores foram simplesmente moldados pelo processo de seleção natural, por favorecerem, enormemente, a coesão do grupo, que, por sua vez, facilita consideravelmente a sobrevivência dos que dele fazem parte. Além disso, muitos animais, mas os primatas em particular, alimentam e externam sentimentos de solidariedade e altruísmo, havendo exemplos de amizade, de ajuda aos mais velhos ou aos deficientes, amparo aos doentes etc. Tem-se, aí, excelente terreno para (mais um!) renascimento das ideias do Direito Natural.

As ideias são tão ricas, e fascinantes, que não têm como ser resenhadas aqui. Algo delas já poderia ser encontrado em livros de cientistas como Dawkins, Matt Ridley e Axelrod, ao tratarem da cooperação no âmbito da teoria dos jogos e de sua seleção pelo processo evolutivo, mas nada que se compare à riqueza, ao detalhamento e os dados empíricos que constam dos livros de Waal. Talvez em outro post, ou, melhor, quem sabe eu escreva, em breve, artigo associando-as a aspectos de filosofia moral e política, de forma academicamente mais profunda. Deixo, por enquanto, a sugestão do livro, e a imagem abaixo, que mostra parte da capa do livro, de uma  foto que o ilustra, e um trecho indicativo do que se está dizendo neste post:

A propósito, o seu mais recente livro, "The bonobo and the atheist", que tem excelente versão disponível para Kindle, revisita essas questões e é resumidamente explicado em interessante episódio do programa "Milênio" que entrevista o autor (clique aqui).

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O novo e o velho

Outro dia, vi no facebook o comentário bem-humorado do Prof. Raul Nepomuceno a respeito de um fone para ser conectado em celulares, com design "vintage", lembrando uns telefones que quando eu era criança já eram antigos.

O dispositivo é este que aparece na foto:


E o telefone, que usei muito (e era horrível quando tínhamos pressa em ligar para números com muitos 9), era esse:


O comentário dele era mais ou menos assim: "- Os pesquisadores das fábricas de celular estudam por anos e quebram a cabeça por muito tempo para construir um telefone mais fino, mais leve, com tela sensível ao toque, e então um dos acessórios mais vendidos para ele o transforma em um telefone disponível há 30 anos. É mesmo complexa a criatura humana..."

Ele tem razão. E é curioso mesmo como alguns itens vintage continuam na moda, e às vezes até ressurgem com mais energia do que a que tinham há algumas décadas. Claro que esse ressurgimento às vezes é de forma repaginada, como se dá no design de alguns carros, mas às vezes não. É o caso do vinil, das canetas tinteiro, de alguns cadernos, cada vez mais comuns, e de diversos brinquedos.

Não é que as pessoas que apreciam esses itens antigos sejam avessas à tecnologia. Ao contrário. O sujeito pode ser um entusiasta da tecnologia e, não obstante, gostar, também, de ouvir um vinil, ou de escrever com uma caneta pena. Talvez seja o meu caso. Comecei a usar computadores em 1986. Tinha um TK90X. Depois passei, em 1988, para um MSX Expert. Ainda lembro de procurar álcool isopropílico para limpar o cabeçote do toca-fitas com um cotonete, e assim evitar os "erros de leitura" quando ia carregar programas gravados em fita K7. Os disquetes foram uma novidade que apareceu só algum tempo depois. Comecei a usar a internet em 1994, tendo, antes, montado uma "BBS" (alguém sabe, ou ainda lembra, o que é isso?). Digo isso só para deixar claro que a questão não é de apego ao velho e nem de qualquer espécie de "neofobia". Talvez seja o desejo de lembrar do lado bom de um tempo que já passou. Talvez seja o reconhecimento de que as coisas antigas não são necessariamente ruins só por serem antigas. Não é preciso deixar de ouvir músicas antigas para conseguir ouvir músicas novas, sendo possível apreciar a qualidade delas em todas as épocas. Talvez o mesmo valha para o uso de certo acessórios.

É claro que não vou responder a um orientando, com pressa pelas revisões em sua dissertação de mestrado, com uma carta escrita à mão, com uma caneta de vidro, a ser fechada com selo de cera quente e enviada pelo correio. O email é muito mais prático. Mas para acompanhar um presente a um amigo, por exemplo, a primeira opção pode ser mais indicada, e prazerosa de ser executada.

E como a internet realmente tem de tudo, nela encontrei pessoas com as mesmas manias. Há até quem faça um "ranking" de tintas (que, depois percebi, faz todo o sentido), vendo nelas qualidades que olhos ignorantes jamais perceberiam. É, realmente, a simplicidade está apenas na superfície, em qualquer assunto: do mesmo modo como, para quem não conhece, todos os vinhos são iguais, todas as bolsas de mulher são iguais, todos o carros são iguais, todos os charutos são iguais, e para quem conhece há um universo de variações a serem exploradas, o mesmo pode ser dito de tintas, canetas e papéis. O vídeo abaixo, que faz uma "resenha" de uma belíssima tinta da noodler´s, é uma boa indicação disso:
 
 
 
Mas este post, que começou "nada a ver" e terminou ainda mais, já está ficando demasiadamente longo. Em outros, talvez, volte ao assunto, cuidando com mais vagar de tintas, moleskines e canetas.

domingo, 1 de setembro de 2013

O que é real?

Raquel Machado mostrou-me hoje pela manhã esse poema, que é a pura epistemologia:

Ser Real quer Dizer não Estar Dentro de MimSeja o que for que esteja no centro do Mundo, 
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade, 
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento, 
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior, 
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim. 

Ser real quer dizer não estar dentro de mim. 
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. 
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. 
Estou mais certo da existência da minha casa branca 
Do que da existência interior do dono da casa branca. 
Creio mais no meu corpo do que na minha alma, 
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade. 
Podendo ser visto por outros, 
Podendo tocar em outros, 
Podendo sentar-se e estar de pé, 
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora. 
Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente 
                               existe — 

Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo 

Se a alma é mais real 
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes, 
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade" 

Se é mais certo eu sentir 
Do que existir a cousa que sinto — 
Para que sinto 
E para que surge essa cousa independentemente de mim 
Sem precisar de mim para existir, 
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível? 
Para que me movo com os outros 
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos 
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo? 
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente. 
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas. 
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo. 

Mas por que me interrogo, senão porque estou doente? 
Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida, 
Nos meus dias de perfeita lucidez natural, 
Sinto sem sentir que sinto, 
Vejo sem saber que vejo, 
E nunca o Universo é tão real como então, 
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim. 
Mas) tão sublimemente não-meu. 

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"? 
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"? 
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia? 
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos, 
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto. 

Sim, antes de sermos interior somos exterior. 
Por isso somos exterior essencialmente. 

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo. 
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia, 
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha, 
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu? 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa (veja outros em www.citador.pt
)