Senadores e seus assessores, atentos, procuravam entender o motivo da controvérsia entre alguns expositores, em torno de temas sensíveis do projeto, de modo a obterem subsídio para tomarem suas decisões, políticas, sobre se e como emendar o projeto, antes de aprová-lo. Aliás, o Senado tirou o projeto do regime de urgência, deixando claro que pretende examinar o assunto e contribuir para a elaboração da lei, não se limitando, como ocorre em tantos parlamentos, a apenas chancelá-lo.
Quando critico órgãos legislativos que se limitam a carimbar projetos que lhes chegam prontos do Poder Executivo, especialmente em matéria tributária, não se trata de um ataque ao parlamento. Pelo contrário, trata-se de uma defesa dele, que deve reconhecer a própria importância e cumprir seu papel, em vez de apenas se curvar às vontades do Executivo, minimizando ou amesquinhando a própria noção subjacente ao princípio da legalidade.
Foi uma excelente oportunidade para tentar alertar os Senadores para o fato de que, tal como ocorreu com a EC 132/2023, só que em muito maior intensidade, o que se diz em discursos, e em slides, na defesa da reforma tributária, nem sempre corresponde ao que está escrito nos textos normativos. Defendem-se ideias belíssimas, com as quais todos concordam, e se pede que então aprove-se sem alteração um projeto que supostamente as implementa. O problema é que, lendo o projeto, vê-se QUE ELAS NÃO ESTÃO ALI da forma como anunciado nos discursos e nos slides.
Foi o que percebi no debate de ontem. Pessoas que defendem o PLP 68/2023, e que pediram aos senadores na ocasião para aprová-lo SEM ALTERAÇÕES "por favor", defenderam que nele se adota a não cumulatividade de modo amplo, que a única restrição constante da lei é para bens de uso e consumo pessoal, que mesmo os bens que em princípio se consideram de uso e consumo pessoal, se se demonstrar que são usados na atividade, podem gerar crédito, e que o direito de crédito não depende do pagamento em etapas anteriores, salvo nos casos de split payment e de pagamento pelo adquirente.
Cheguei a abrir meu notebook para conferir o PLP 68/2024, pois eles pareciam estar falando de um texto diferente daquele que eu tinha lido. E olhe que li bastante o PLP nos últimos meses. E então vi: de fato, o PLP não tem o conteúdo que alegam.
Quanto aos bens destinados ao uso e consumo, por exemplo, do PLP consta:
Art. 30. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição dos seguintes bens e serviços, que serão considerados de uso e consumo pessoal, exceto quando forem necessários à realização de operações pelo contribuinte:
I - joias, pedras e metais preciosos;
II - obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico;
III - bebidas alcoólicas;
IV - derivados do tabaco;
V - armas e munições; e
VI - bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.
Parágrafo único. Considera-se necessário para a realização de operações pelo contribuinte, para fins do disposto no caput:
I - para os bens previstos nos incisos I a VI do caput, quando forem comercializados ou utilizados para a fabricação de bens comercializados;
II - para os bens previstos no inciso V, também, quando forem utilizados por empresas de segurança; e
III - para os bens previstos no inciso VI do caput, também, quando forem adquiridos para utilização exclusiva pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico.
Está claro: tais bens serão sempre considerados como sendo destinados a uso ou consumo pessoal, mesmo quando não o forem. O caput parece indicar que quando forem usados na atividade, geram crédito, mas depois o parágrafo único "corta o barato" dessa interpretação que poderia salvar sua constitucionalidade, indicando quando se considera - e a lei é cheia dessas expressões: "considera-se", "considera-se", com as quais acha que pode transformar água em vinho, chumbo em ouro - necessário à atividade só o que se indica nos três incisos, que praticamente restabelecem a sistemática do crédito físico em relação aos bens que indicam. Se o parágrafo único fosse expressamente exemplificativo, não haveria problema. Mas ele não é. Fica a dúvida: um hotel, que compre quadros ou tapetes para colocar nos quartos, ou um museu, que compre obras para expor e cobrar ingressos por isso (tributados pelo IBS e pela CBS) pode tomar créditos? Equipamentos esportivos, recreativos ou estéticos, que se destinem não para utilização dos adquirentes dos serviços em seu estabelecimento, mas se destinem à locação, geram crédito? A realidade, sempre mais rica que nossa criatividade para antevê-la, pode mostrar ainda mais exemplos: clube de tiro que compra arma para alugar, mas não para revender ou para prestar serviço de segurança poderia ser outro exemplo. Gera crédito? O artigo parece dizer que não, mesmo que não haja "uso pessoal", em nenhum desses casos.
E tem muitos outros, artigos espalhados ao longo do PLP, em outras sessões, que sem mais vedam o crédito:
Art. 189. (...)
§ 4º Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS na aquisição dos serviços financeiros de que tratam os incisos I a V do caput do art. 177 que não estiverem permitidos expressamente no caput deste artigo.
Art. 220. Fica vedado o crédito de IBS e CBS na aquisição de serviços de previdência complementar.
Art. 224. Fica vedado o crédito de IBS e CBS na aquisição de serviços de ativos virtuais.
Art. 231. Fica vedado o crédito de IBS e CBS para os adquirentes de planos de assistência à saúde.
Art. 239. Fica vedado o crédito de IBS e CBS para os apostadores dos concursos de prognósticos.
Art. 274. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS pelos adquirentes de alimentação e bebidas fornecidas pelos bares e restaurantes, inclusive lanchonetes.
Art. 281. Fica vedada a apropriação de créditos de IBS e CBS pelo adquirente dos serviços de hotelaria, parques de diversão e parques temáticos.
Art. 291. (...)
§ 6º Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS para os adquirentes de bens e serviços da SAF, com exceção da aquisição de direitos desportivos de atletas, pela mesma alíquota devida sobre essas operações, observado, no que couber, o disposto nos arts. 28 a 38.
Quanto às despesas com serviços de hotelaria, apenas para citar mais um exemplo... Para uma Companhia Aérea, não é necessário hospedar pilotos, comissários e comissárias que trabalham na prestação de serviço de transporte?
A mesma coisa - slide dizer uma coisa, artigo do PLP, outra - ocorre com a regra de que o crédito só pode ser aproveitado se houver pagamento na etapa anterior. A CF diz que assim só será se houver split payment ou pagamento pelo adquirente. E isso parece, parece, estar no art. 29 do PLP:
Art. 29. Os créditos de que trata o art. 28 poderão ser apropriados mediante o destaque dos valores dos débitos do IBS e da CBS no documento fiscal de aquisição dos respectivos bens e serviços, dispensando-se a exigência de pagamento desses débitos, exclusivamente, na hipótese de não ter sido implementada nenhuma das seguintes modalidades de pagamento dos débitos:
I - recolhimento na liquidação financeira da operação (split payment), nos termos dos arts. 51 e 52; ou
II - recolhimento pelo adquirente, nos termos do art. 56.
O problema é que vários outros artigos "desmentem" esse. E aí, estando todos na mesma hierarquia, qual prevalece? Vejam-se:
Art. 28. O contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS poderá apropriar créditos desses tributos quando ocorrer o pagamento dos valores do IBS e da CBS incidentes sobre as operações nas quais seja adquirente de bem ou de serviço, excetuadas exclusivamente as operações consideradas de uso ou consumo pessoal e as demais hipóteses previstas nesta Lei Complementar.
E há vários outros, espalhados pelo PLP:
Art. 188. (...)
§ 4º Os créditos de que trata este artigo ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações prestadas pelas entidades sujeitas ao regime específico desta Seção.
Art. 189. (...)
§ 1º A apropriação dos créditos de que trata o caput fica sujeita ao reconhecimento dos créditos pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações fornecidas pelas entidades sujeitas ao regime específico desta Seção.
Art. 194. (...)
§ 1º Os créditos de que tratam o caput ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações prestadas pelas entidades que realizam as operações de arrendamento mercantil.
Art. 198. (...)
§ 1º Os créditos de que tratam o caput ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações prestadas pelas administradoras de consórcio.
Art. 212. Os créditos do IBS e da CBS de que tratam o art. 210 e o § 4º do art. 211 ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações prestadas pelos participantes de arranjos de pagamento, e ficam sujeitos ao disposto nos arts. 28 a 38.
Art. 216. (...)
§ 2º Os créditos do IBS e da CBS de que trata o § 1º ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações prestadas pelas sociedades seguradoras e pelos resseguradores, e ficam sujeitos ao disposto nos arts. 28 a 38.
Art. 218. (...)
§ 6º Os créditos do IBS e da CBS de que trata o § 5º ficam condicionados ao reconhecimento do pagamento do IBS e da CBS na operação pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB, com base nas informações prestadas pelas entidades de capitalização, e ficam sujeitos ao disposto nos arts. 28 a 38.
Como é possível, diante de tais artigos, dizer-se que são só os bens e serviços efetivamente destinados a uso e consumo pessoal que tem o crédito vedado no PLP? Que é só no caso de pagamento por split payment que o crédito dependerá de o Fisco reconhecer que houver pagamento do valor devido nas etapas passadas? Sem entrar no mérito da discussão em si, não se pode defender o PL dizendo que ele tem um conteúdo, quando ele não tem esse conteúdo!
Em suma, há, com isso, de saída, clara ofensa aos princípios da transparência e da cooperação, para além da quebra ao princípio da não-cumualtividade. Manda-se um projeto defendido por apresentações de powerpoint que dizem uma coisa, mas no texto - que é o que vai entrar em vigor - há várias surpresinhas que - sobretudo quando vier a regulamentação! - não poderão ser confrontadas com o slide ou com o discurso. Não vai dar para o contribuinte, depois, inconformado com tais surpresinhas, impetrar MS invocando slide usado na defesa do PLP. É preciso que todos examinem o projeto, e escrevam aos parlamentares com os quais têm contato sugerindo a correção de tais problemas, enquanto é tempo.
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