terça-feira, 25 de setembro de 2012

Ou regras são ponderáveis, ou não existem princípios...

A distinção entre princípios e regras e a questão da possibilidade de ponderação destas últimas já frequentou este blog diversas vezes. Há mais de quatro anos (como o tempo passa rápido!), alguns posts trataram do tema (confira clicando aqui, aqui e aqui, por exemplo).
Hoje, durante os debates na aula de Teoria Geral do Direito na pós-graduação da Faculdade de Direito da UFC, o tema foi objeto de rica discussão. Alguns, inclusive, ficaram até muito depois da aula, conferindo passagens de Humberto Ávila e Virgílio Afonso da Silva, argumentando, imaginando exemplos, contra-argumentando. Depois da aula, que terminou por volta do meio-dia, passei na coordenação para resolver alguns assuntos, e quando fui embora, depois das 13:00, ainda estavam lá discutindo animadamente.
Independentemente de saber quem está com a razão (se é que ela pode ser assim apropriada por alguém), o simples fato de se estar discutindo um tema jurídico e procurando melhor compreendê-lo é digno de todos os elogios. Afinal, em uma aula, notadamente de pós-graduação, a idéia não é trazer verdades acabadas para ouvintes passivos, mas debater, dividir reflexões, aprender, e despertar o interesse para que possamos todos chegar (sozinhos?) às nossas próprias conclusões.

Bom, mas o que motiva este post é que eu, que já vinha amadurecendo uma reflexão há algum tempo, cheguei, depois das discussões, a uma conclusão que poderia ser assim sintetizada:

Ou as regras são passíveis de ponderação, ou não existem princípios.

Como toda conclusão que se pretende científica, essa é provisória. Poderá (e deverá) ser criticada, pois é naturalmente passível de revisão. Posso mudar de idéia, quem sabe, logo depois do primeiro comentário que alguém fizer a este post. Afinal, isso não é nenhum dogma religioso. Mas, por enquanto, parece-me contraditório negar que regras sejam ponderáveis (acusando quem defende isso de ignorar ou desprezar  a distinção entre norma e texto), e, ao mesmo tempo, afirmar que existem princípios jurídicos "em tese", como espécie normativa, ao lado das regras.

Explico.

É que os autores que defendem a possibilidade de regras serem ponderadas fazem uma distinção entre a regra como produto de uma primeira interpretação do texto, e a norma decorrente da conclusão do processo de interpretação/aplicação, à luz de todas as particularidades de um caso concreto (all things considered). Em um primeiro momento, a leitura de certos textos legais conduziria à conclusão de que ali se veiculam regras, e não princípios. Regras que têm determinada hipótese de incidência, e sofrem determinadas exceções, operadas por outras regras, de igual hierarquia, mais específicas. Regras, enfim, que são aplicáveis às situações "normais" (daí "norma") ou "regulares" ("regra"). Mas, depois de consideradas todas as particularidades do caso ao qual a referida regra seria aplicada, poder-se-ia concluir que ela, conquanto "em tese" aplicável, não deveria sê-lo. Isso porque os princípios que inspiraram sua edição, somados àqueles que impõem o seu respeito (legalidade, separação de poderes etc.), juntos, não seriam capazes de sobrepor a outro princípio que seria amesquinhado pelo respeito incondicional da regra, em função das particularidades do caso, que o fariam diferente daquele "normal" ou "regular", para o qual a regra teria sido feita.

Quem é contrário à possibilidade de ponderação de regras afirma que o argumento, resenhado muito rudimentarmente no parágrafo anterior, confunde texto e norma. A norma seria justamente aquela obtida na conclusão do processo interpretativo, all things considered. Não seria o texto, mas o sentido dele, que só à luz do caso concreto poderia ser determinado. Assim, não é que a regra tenha sido ponderada. O que ocorreria, em casos assim, é que se vislumbrariam, na regra, exceções implícitas, que não constariam explicitamente do texto.

Bom, isso já mostra, por si, que o debate não tem assim tanto relevo prático, pois chega-se ao mesmo lugar, com o uso mais ou menos das mesmas ferramentas, apenas dando nomes diferentes a certas coisas. 

Mas, seja como for, o que parece é que esse argumento, contrário à ponderação de regras, é contraditório com a própria idéia de que existem princípios jurídicos, os quais estariam, "em tese", ao lado das regras como espécie de norma.

Realmente, os princípios não são aplicados diretamente. Eles sempre dependem de regras, explícitas ou implícitas, editadas pelo legislador ou construídas pelo intérprete, para serem aplicados em determinado caso concreto. Nessa condição, all things considered, o que se aplica não é o "princípio da livre iniciativa", mas regras, que até podem ser extraídas implicitamente dele, segundo as quais na situação "X" é devido "Y", ou na situação "Z" é proibido "W"... Assim, all things considered, do mesmo modo que não se ponderam regras, não há princípios... O que se tem, sempre e apenas, são regras prontas para serem inseridas no silogismo:

Premissa maior: regra "r"
Premissa menor: fato "f"
Conclusão: relação jurídica (conduta "c" é devida por "sp" e pode ser reclamada por "sa")


Há vários problemas nessa solução.

Primeiro, o silogismo acima é de aplicação simplória. O controverso, em todas as questões jurídicas, nas disputas acadêmicas e nos questionamentos judiciais, é o estabelecimento das premissas. São elas que o juiz precisa fundamentar. É nelas que está a discussão. Estabelecidas as premissas, o raciocínio silogístico que se segue é tão natural que muitas vezes nem nos damos conta dele. E se a discussão está exatamente na fixação das premissas, a tese que coloca a identificação de regras e princípios depois de concluído todo o trabalho não é de grande ajuda para o intérprete (essa crítica é feita por Humberto Ávila), que precisa de uma teoria que o ajude a trabalhar, e não que apenas explique o que ele já obteve depois de ter feito o trabalho. Ademais, como dito, é contraditória com a classificação das "normas" (e não dos "textos") em "regras" e "princípios", pois depois de concluído o trabalho nem mais existem princípios a serem aplicados.

Segundo, porque não se pode estabelecer uma relação dual, de "tudo ou nada", entre texto e norma, como se entre um e outro houvesse apenas um salto, e não uma gradação. Essa é uma mania que se generalizou depois que as pessoas aprenderam que texto e norma não se confundem, e que a segunda é o sentido do primeiro. Como se não existisse NADA entre um texto sem sentido e uma norma prontinha para ser aplicada a determinado caso concreto. O que se ensina nas aulas do Curso de Direito, então, sobretudo naquelas de direito positivo (constitucional, administrativo, tributário, civil, comercial...)? 
Na verdade, existem níveis ou graus de interpretação.
(1) Para identificar algo como texto, e não como um amontoado de letras, há interpretação. Aliás, para identificar algo como uma letra, e não uma sujeira no papel, há interpretação.
(2) Para identificar o texto como algo escrito em língua portuguesa, e não em alemão ou inglês, há interpretação.
(3) Para identificar o texto como veiculando normas, em tese, há interpretação.
(4) Para identificar essas normas como jurídicas, há interpretação.
(5) Para identificar essas normas jurídicas como vigentes, há interpretação.
(6) Para identificar possíveis modificações em seu significado inicial, em face do disposto em outras normas,  assim como identificar situações em que essas normas seriam aplicáveis, e quais seriam os sentidos possíveis delas nessas situações, há interpretação.
(7) Quando o aplicador da norma, diante de um caso concreto, parte de 1 a 6 e, à luz das circunstâncias do caso, e de todas as outras normas pertinentes, chega em (7), conclui o trabalho iniciado pelo legislador de pensar uma solução para o problema, cria-se a norma para o caso concreto. All things considered.

Quem trata da distinção entre "texto" e "norma" como algo simples e dual, salta de 1 para 7, como se nada houvesse no meio do caminho que pudesse já ser chamado de "norma", de "regra" ou de "princípio".
Entretanto, se isso fosse possível, não existiriam livros sobre normas, sejam elas regras ou princípios. Afinal, só diante de um caso concreto o intérprete/aplicador construiria a norma. Um professor, em uma sala de aula, e um autor, ao escrever um livro, não poderiam fazê-lo. Estariam a trabalhar apenas com textos? Ou, pior, apenas com letras? Não teriam essas letras um significado prévio, capaz de estabelecer um mínimo consenso intersubjetivo, antes e independentemente de sua aplicação final pelo intérprete judicial?

15 comentários:

Edvaldo disse...

Muito bom, professor! De fato, a discussão foi longa.. heheh..
Um ponto interessante que o Sr. apontou e que eu estava tentando organizar ali na hora da discussão é como podemos trabalhar com uma regra antes da conclusão do processo de interpretação, sem confundir texto e norma. Talvez seja o que Ávila chamou de significado preliminar, que seria o extraído para os casos "normais" ou "regulares". O cerne da discussão é saber se existem e o que são tais casos.
Na obra de Ávila, ele remete ao processo final como "reconstrução", que parte de algo "construído" (que é o tal significado preliminar). Para explicar isso, ele colaciona os "jogos de linguagem" de Wittgenstein, o "enquanto hermenêutico" de Heidegger, a "condição a priori intersubjetiva" de Miguel Reale.
Porém, acho que uma boa explicação para esse significado preliminar (defendido como inexistente para a tese do "all or nothing"), seria o que Ducrot entende como significado, que é a primeira fase do processo de interpretação de um enunciado, antes mesmo da contextualização, na tentativa de criar uma "descrição semântica linguística". A sacada aqui é que se trata de uma ficção metodológica. Não existe um significado preliminar, mas podemos trabalhar com ele a partir de "cálculos de efeito de sentido". É como se eu pudesse construir a regra a partir das contextualizações mais comuns, para calcular, por exemplo, em que contexto um enunciado pode gerar um determinado sentido.
Assim, quando o professor em sala de aula vai explicar uma regra, ele pode se reportar a situações criadas apenas para que o aluno possa calcular o efeito de sentido daquela regra a partir dessa abstração. Do contrário, o magistério só poderia ser exercido com explicação de casos reais.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

É mesmo muito boa, Edvaldo, a utilização da diferença entre "significado" e "sentido" para o trato da questão. Os significados estão no dicionário, e são colhidos a partir de usos anteriores da palavra. O sentido em que ela é usada só no caso concreto, em determinado contexto, pode ser determinado.
De fato boa parte das ideias presentes no post podem ser encontradas no pensamento de Humberto Ávila. A questão que pretendi lançar agora, porém, é a de que não se trata apenas de uma questão de premissas (Virgílio e Ávila poderiam estar ambos certos, pois apenas partem de premissas diferentes, ou usam palavras diferentes para designar as mesmas coisas), mas de coerência, pois aplicadas coerentemente as premissas de Luis Virgílio (que, de rigor, são as de Alexy), a própria distinção entre regras e princípios desaparece, pois não são estes, diretamente, que o juiz aplica na solução final de casos reais...

Álisson disse...

Professor, excelente reflexão, especialmente pela didática de costume. Infelizmente, pela falta de leitura, tenho pouco a contribuir, restando somente algumas provocações meio irresponsáveis, que são do meu feitio.

A) Tenho a impressão de que há uma distinção entre as "interpretações" citadas nos números (1) a (5) - aparentemente extrínsecas (com isso quero dizer que elas falam algo a respeito do texto ou do significado, mas não falam do próprio significado ou sentido, independem deles) - e as "interpretações" (6) e (7), aparentemente intrínsecas.

B) Também me parece que, mesmo quando se trabalha textos jurídicos em sala de aula, ou num livro, não se escapa, no processo "interpretativo" de trabalhar um "caso concreto" (salvo engano, cf. GRAU. Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito). Trata-se de um ponto de divergência que tenho com o Eric, que entende ser possível decupar-descodificar-traduzir-interpretar um dispositivo sem adentrar em um "caso concreto". Da forma como concebo, trata-se de um "caso concreto" ficto, normalmente sem a complexidade das circunstâncias de um "caso concreto" do "mundo real", tanto por conta da necessidade de facilitar a compreensão do significado ou sentido padrão para quem ouve ou lê, quanto em virtude do corte, que é algo que é característico do conhecimento científico. No entanto, aparentemente trata-se de modelos de "casos concretos" construídos histórica e intersubjetivamente.

C) Mas então tem-se o problema de saber se de fato ainda existiria ou não um momento lógico no meio do caminho texto-"norma final". O que me leva novamente ao problema da referência aos dispositivos e daquela tormentosa distinção entre "normas" explícitas e implícitas (algo que deliberadamente não quis mencionar em sala de aula). Penso haver uma diferença notável quando o texto (ou, digamos, o ordenamento) conduz a um sentido "normal" - admitindo-se que isso seja possível -, e quando, algo muita vez mencionado pelo Renato no último encontro, no "caso concreto" haveria uma exceção implícita à regra "normal". Talvez seja até possível arriscar (mas não me atrevo ainda) uma tese associando os princípios às implicitudes (sejam excepcionais, sejam complementares).

No mais, embora tivesse um outro ponto para falar mas que nem a discussão nem minhas reflexões estão maduras ainda para publicizá-lo, parabenizo-o mais uma vez pela oportunidade de debate.

Tainah disse...

Muito bom, professor! Suas considerações foram importantes para elucidar algumas dúvidas que surgiram durante as discussões em sala e mesmo aquelas que já me inquietavam.
As diferenças entre regras e princípios tão fortemente defendidas pelos autores estudados realmente não são suficientes para encerrar o debate.
Há diferença significativa entre essas duas espécies de normas? O discurso das exceções implícitas e do "tudo ou nada", cada vez mais, deixam de me convencer.
Penso que as regras podem sim ser ponderadas. E não acredito que a colisão entre duas regras resulte, sempre, na invalidez de uma delas.
Por enquanto, sustento que princípios existem sim, mas confesso que não sei mais se realmente acredito nisso ou se é apenas a relutância em contrariar aquilo que já está tão intrínseco no pensamento jurídico, em contrariar as premissas básicas que aprendi desde o primeiro semestre da faculdade... preciso refletir mais (muito mais!) sobre a temática.
Parabenizo a iniciativa do post e a continuação dos debates!

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Muito oportuna a sua reflexão, Professor! Embora as minhas parcas leituras sobre o assunto não me permitam oferecer maiores contribuições ao debate, algumas inquietações sobre o tema (muito bem sintetizadas, aliás, nas colocações do Álisson) ainda me "atormentam". Não obstante concorde ser indevido tratar a distinção entre "texto" e "norma" de maneira dual, tenho especial dificuldade em visualizar a fronteira entre a interpretação "preliminar" e a interpretação "conclusiva". Não consigo conceber a norma como um ente meramente abstrato e desvinculado de um contexto fático e jurídico (mesmo que este seja hipotético). Ademais, penso que se partirmos da premissa de que as regras resultam, invariavelmente, do sopesamento de princípios (realizado ou pelo legislador ou pelo Judiciário), ainda que aquelas não sejam ponderáveis, estes continuarão a existir. Enfim, acho que essa discussão não será encerrada tão cedo...

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Álisson,
Concordo com a questão do caso concreto imaginário ou ficto, recurso capaz de permitir ao professor - ou a quem quer que examine normas "em tese" - referir-se a textos legais como normas (regras ou princípios).
Mas a questão está justamente aí: esses casos concretos imaginários tão são, em tese, imaginados pelo legislador quando faz o texto. E eles, como tudo o que podemos imaginar, não são capazes de antecipar toda a riqueza que a realidade complexa nos reserva. Por maior que seja a nossa criatividade, como professores ao explicar um texto como norma, ou como legisladores ao fazer um texto que será (re)construído como norma, não poderemos antever toda a riqueza de casos concretos possíveis. Essa riqueza será considerada, apenas, à luz de cada caso concreto, quando o processo de concretização/aplicação for concluído.
E é por isso que podemos falar em princípios, ainda que na conclusão do processo de aplicação se aplique uma regra.
Aliás, é por isso que podemos falar de conflito entre normas, pois, se pensarmos na norma só como o produto da aplicação final, nem de conflitos se poderia cogitar.
E parece ser por isso, também, que podemos falar em ponderação de regras. Aquele texto que normalmente é visto, diante de casos concretos "em tese", como sendo uma "regra" com sentido "X", pode ter, em caso concreto particular, sua aplicabilidade posta de lado (por uma ponderação)...

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Renato,
Concordo que existem princípios, e que as regras resultam do sopesamento deles.
Não quis, no post, defender que não existam princípios.
A questão é: se radicalizarmos a idéia de que a norma é o "sentido final" do texto, em determinado caso concreto, aplicado pelo juiz, então só existem regras, pois os princípios "viram" ou "dão origem" a regras antes de serem aplicados. Se fecharmos os olhos para tudo o que há antes do momento final da aplicação (all things considered), deixaremos de enxergar os princípios. Foi isso o que quis dizer. Assim como deixamos de enxergar regras que, em um primeiro momento, seriam aplicáveis, mas que, all things considered, deixam de sê-lo.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Tainah,
Insisto em que não defendi que não existam princípios. Aliás, um colega seu me advertiu para ter cuidado com isso, pois eu poderia ser "crucificado", como ele foi por fazer o mesmo um tempo atrás.
O que eu disse foi que a negação da ponderabilidade das regras é contraditória com a afirmação de que existem princípios.
Quanto à distinção, atente para o fato de que, mesmo ponderáveis, as regras o são de forma muito diferente dos princípios, como bem explicado por Humberto Ávila. O que nos princípios é regra (rs), nas regras é exceção. O ônus argumentativo é diferente etc.

Álisson disse...

Conversando com o Renato sobre o post, elucidando uns pontos de confusão, chegamos à conclusão de que: i) SE se reconhece a existência lógica de regras a priori (sem referência a um caso "realmente" concreto, ou seja, com referência a um caso "concreto" presumidamente padrão), então há uma concordância com o Humberto Ávila; ii) SE NÃO se reconhece a existência desse tipo de regras, mas somente de regras contextualizadas, aparentemente se defende a versão teórica do Luís V. da Silva. Uma questão que sobra é: estariam ambos falando a mesma coisa - chegando às mesmas conclusões de formas distintas? Acredito que o professor não concorde com o segundo (ii) ponto de vista (ou quiçá uma provável interpretação em cima da versão brasileira da teoria do Alexy). E é provável que não sejam apenas duas formas diferentes e corretas de explicar a mesma coisa, pois se valessemos da Navalha de Ockham, talvez a tese virgiliana prevalecesse (pois teria pelo menos um elemento a menos). É possível que haja um reducionismo ou uma simplificação inválida.

Ademais, é necessário também reconhecer que, a par de existirem as regras a priori, existiriam também dentro do processo interpretativo, no âmbito a posteriori das considerações do caso concreto, regras-candidato (reconhecendo a existência lógica da moldura kelseniana) e a regra-final que encerra a aplicação.

Portanto, do post, conclui-se que o critério do modo de aplicação não é adequado para discernir regras (a priori) e princípios, isso sem reconhecer ainda que se trate apenas de uma questão de grau. Então a distinção ou estaria na estrutura lógica (p. ex., princípios não se referem a condutas) e/ou conteúdo (p. ex., caráter axiológico imediato), ou então volta-se a reconhecer que a distinção seria meramente de grau (p. ex., abstração ou ponderação). Num ou noutro sentido, não vejo (sempre passível de revisita) como reconhecer que as normas imediatamente extraíveis dos dispositivos constitucionais de direitos fundamentais sejam princípios (seriam regras a priori que poderiam naturalmente passar pelos ajustes do caso concreto), negando assim, pelo menos parcialmente, procedência à teoria do Alexy.

Ivan Rodrigues disse...

Caros professor e colegas,

Uma primeira objeção minha ao pensamento do professor (HBMS) é:
Assim como os princípios não são diretamente aplicados aos casos concretos, assim também as regras não o são (refiro-me aqui às regras preliminarmente identificadas como regras, às regras dadas ao aplicador, existentes antes de iniciado o processo de interpretação-aplicação, postas legislativamente).
Se só regras são aplicáveis aos casos concretos (afirmação inerente ao pensamento de HBMS), não apenas os princípios (preliminarmente identificados como princípios) não se aplicam diretamente, mas também as regras não o fazem.
Aquela afirmação assumida por HBMS não me parece aceitável, pois: (1) instaura um hiato entre a norma jurídica abstrata e a norma jurídica concreta, na medida em que a norma jurídica abstrata é sempre inaplicável diretamente; (2) torna a diferença entre princípios e regras supérflua, pois, quaisquer que sejam as normas postas legislativamente, elas só adquirem sentido concreto se são transmudadas em regras concretas.
A diferença entre princípios e regras, contudo, não pode ser ignorada, sobretudo em razão de que (segundo penso) apresentam estruturas lógicas díspares: Enquanto as regras apresentam uma hipótese normativa relativamente definida - enquanto as regras incluem (conforme Karl Engisch) uma conceptualização fática relativamente determinada -, os princípios apresentam uma hipótese normativamente maximamente indefinida (se é que têm alguma hipótese normativa). Quero dizer que os princípios são "fórmulas vazias" do ponto de vista de sua referência fática:
A que fatos, por exemplo, se refere o princípio da igualdade? A todos, no que for possível!
Ainda, a que fatos se refere o princípio iusfundamental da liberdade de expressão? A todos, a todos os casos em que alguém queira expressar-se, na medida do possível!
Quero dizer, portanto, que os princípios são normas faticamente abertas e indeterminadas, enquanto as regras são normas que apresentam uma referência fática relativamente fechada e determinada.

Álisson disse...

Ivan, acredito que sua crítica não seja direcionada à formulação do professor Hugo Segundo. Veja que ele reconhece a sua objeção: defender que regras podem ser ponderadas é uma crítica direta à corrente que sustenta somente haver princípios (que funcionam a priori) e regras (que só funcionariam no caso concreto).

Outro ponto é que ele de forma alguma procura desfazer a distinção entre princípios e regras, ambas consideradas no sentido abstrato. O que se depreende, como eu pensei no compentário anterior, é somente que o modo de aplicação não seria critério adequado para sustentar uma distinção forte.

Sobre a formulação de distinções, é preciso, todavia, ter em mente que noção de princípio (segundo sua natureza ontognoseológica) que está em jogo. Concordo com você que uma distinção forte possa ser esboçada com base ou na sua estrutura lógica ou em sua formulação, mas (ainda) não concordo plenamente com os exemplos apresentados. Para mim, a liberdade de expressão (ainda) se encontra plasmada como norma-regra constitucional que reza "IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;". O que difere, na minha visão apegada à literalidade (para início de debate), do princípio da impessoalidade (art. 37, caput).

Abs.

Ivan Rodrigues disse...

Caros colegas e professor,

(Continuação de meu comentário anterior)

Gostaria, ainda, de levar às últimas consequências minha opinião de que princípios e regras (tal como postos pelo legislador, quer dizer, princípios e regras preliminarmente identificados como tal), indiferentemente, não se aplicam diretamente.
Gostaria de acrescentar que sequer a regra concreta, produzida pelo intérprete-aplicador, não se aplica diretamente.
A regra concreta (que deve reger o caso concreto, "all things considered") só se aplica por intermédio de interferências concretas que conformam a paisagem fática ao estado de coisas pretendido pela regra concreta. Noutras palavras, a regra concreta só se realiza se: (1) a vontade de seu(s) destinatário(s) determina-lhes a conduta de forma tal que a torna idêntica à conduta prescrita pela regra concreta (a vontade é a mediadora da atualização da regra concreta); (2) atos coativos vergam a vontade obstinada do(s) destinatário(s) da regra concreta de forma tal que lhe(s) extraem forçosamente a conduta prescrita pela regra concreta (a coação é a mediadora da atualização da regra concreta).
Há um necessário hiato (ou uma necessária penumbra) entre o dever ser (expresso pela regra concreta) e o ser (expresso pela paisagem fática sobre que a regra concreta pretende atuar). O dever ser não coincide com o ser; o dever ser não se transmuda diretamente em ser; o dever ser só se realiza ontologicamente mediante a vontade que o respeita ou a coação que o faz respeitar.
Mesmo as regras concretas (obtidas ao final do processo de interpretação-aplicação) não se refletem imediatamente no mundo ôntico, carecem de um catalisador, um mediador, um intermediário, que lhes possibilitem a passagem do contrafático mundo jurídico para o mundo fático.

Ivan Rodrigues disse...

Caro Álisson,

A norma contida no art. 5º, IX, CF seria uma regra (segundo minha opinião, que furto, em parte, a Alexy) apenas se esse extrato constitucional fora formulado de acordo com o seguinte esquema estrutural:
"Nas condições fáticas tais e tais, é livre a expressão".
É que as regras se definem por estabelecer ("feststellen") uma hipótese normativa relativamente precisa, isto é, uma conceptualização relativamente determinada das circunstâncias às quais devem ser aplicadas.
Os princípios, no entanto, não estabelecem uma hipótese normativa relativamente clara; é-lhes própria a abertura ôntica, quer dizer, é-lhes próprio o deixar em aberto as condições fáticas em que devem ser aplicados.
Enquanto as regras destinam-se a regular precisos estados de coisas, os princípios destinam-se a regular "quaisquer" (todos os) estados de coisas que a interpretação racionalmente fundamentada possa incluir sob sua (máxima) envergadura normativa.
Por exemplo,
(a) A quais precisos estados de coisas se aplica o princípio da dignidade humana? - A nenhum preciso estado de coisas, mas a todos os estados de coisas (preliminarmente indeterminados)!
(b) A quais precisos estados de coisas se aplica o princípio da segurança jurídica? - A nenhuma conjuntura específica, mas a todas as conjunturas (indeterminadas "in abstracto")!

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro Ivan,
Como o Álisson explicou, eu não nego a distinção entre regras e princípios. Apenas digo que as pessoas que são contrárias à ponderação de regras por entenderem que isso implicaria confundir texto e norma são incoerentes, no fundo, pois essa tese (que não subscrevo) conduziria à conclusão de que não existem princípios.
Quanto a nem mesmo a regra concreta ser aplicada diretamente, acho que você exagera um pouco no raciocínio. Na verdade, é claro que a regra não tem vida própria. Ela depende de algo mais para alterar o mundo dos fatos (vontade do destinatário, ato coativo de uma autoridade etc.). Mas pelo menos o seu sentido, naquele caso, já está delimitado.