domingo, 1 de setembro de 2013

O que é real?

Raquel Machado mostrou-me hoje pela manhã esse poema, que é a pura epistemologia:

Ser Real quer Dizer não Estar Dentro de MimSeja o que for que esteja no centro do Mundo, 
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade, 
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento, 
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior, 
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim. 

Ser real quer dizer não estar dentro de mim. 
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. 
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. 
Estou mais certo da existência da minha casa branca 
Do que da existência interior do dono da casa branca. 
Creio mais no meu corpo do que na minha alma, 
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade. 
Podendo ser visto por outros, 
Podendo tocar em outros, 
Podendo sentar-se e estar de pé, 
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora. 
Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente 
                               existe — 

Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo 

Se a alma é mais real 
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes, 
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade" 

Se é mais certo eu sentir 
Do que existir a cousa que sinto — 
Para que sinto 
E para que surge essa cousa independentemente de mim 
Sem precisar de mim para existir, 
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível? 
Para que me movo com os outros 
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos 
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo? 
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente. 
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas. 
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo. 

Mas por que me interrogo, senão porque estou doente? 
Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida, 
Nos meus dias de perfeita lucidez natural, 
Sinto sem sentir que sinto, 
Vejo sem saber que vejo, 
E nunca o Universo é tão real como então, 
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim. 
Mas) tão sublimemente não-meu. 

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"? 
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"? 
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia? 
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos, 
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto. 

Sim, antes de sermos interior somos exterior. 
Por isso somos exterior essencialmente. 

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo. 
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia, 
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha, 
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu? 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa (veja outros em www.citador.pt
)

3 comentários:

Danilo Cruz. disse...

Como diria um amigo meu, isso é pura Fenomenologia!

Abraço,

Danilo.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Pois é, Danilo. Fenomenologia ou não, o fato é que transmite muitas ideias de epistemologia em poucas e belas palavras.

Danilo Cruz. disse...

Hugo,

Olha que interessante, o verso que diz:

"Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente. "

Isso é a essência do pensamento existencialista sartreano, porém Sartre é de 1905-1980 e Fernando Pessoa é de 1888-1935.

Acho que Sartre andou lendo Fernando Pessoa... Aproveito o espaço até para expor algo que há muito venho ruminando... É impressionante como a Literatura antecipa muito do que a ciência
"descobre". Além do exemplo acima, de Sartre x Pessoa, é possível contrapor com larga margem de tempo Dostoievski x Freud.

Em meus estudos de direito e literatura tenho me debatido muito com isso, a relação Dostoievski e Machado de Assis é algo impressionante. As postagens do meu blog ultimamente, tem refletido mais
esse viés literário mas sempre tendo o direito como pano de fundo.

Abraço meu amigo,

Danilo.