Na segunda metade do Século
passado, notadamente entre os anos 70 e 80, havia grande controvérsia em torno
da taxatividade, ou não, da lista de serviços anexa ao Decreto-lei 406/68
(hoje, Lei Complementar 116/2003). Trata-se de uma lista dos serviços passíveis
de tributação pelo imposto, de competência dos Municípios e do Distrito
Federal, incidente sobre serviços de qualquer natureza (ISS).
Esse foi o contexto em que, em um Seminário de Direito
Tributário havido no período, debatiam, em uma mesa voltada ao tema, o
Professor Geraldo Ataliba, e o Professor Hugo de Brito Machado, pai de quem
escreve estas linhas. Eles defendiam posições contrárias, relativamente à
apontada questão jurídica.
Para Ataliba, a lista de serviços seria meramente
exemplificativa, por uma razão clara. Os Municípios são entes federativos, cuja
competência decorre diretamente do texto constitucional. Os tributos que podem,
e que não podem validamente instituir, são aqueles indicados pela Constituição.
Seria absurdo, nessa ordem de ideias, pretender que uma lei editada pela União
(o Decreto-lei 406/68 ou, hoje, a LC 116/2003) pudesse limitar – pela omissão,
ao deixar de arrolar na lista – os serviços passíveis de tributação por outros
entes federativos. E se a lista indicasse apenas um serviço, como o
odontológico, ou o de construção civil, omitindo-se sobre todos os outros?
Estaria inviabilizada a competência dos Municípios?
Hugo Machado pensava diferente. Para ele, conquanto os
Municípios sejam entes federativos autônomos, cuja competência decorre
diretamente do texto constitucional, como corretamente ensinava o Prof.
Ataliba, não se pode esquecer, de outro lado, que a Constituição atribui à Lei
Complementar o papel de dirimir conflitos de competência (atualmente, art. 146,
I, da CF). Ou seja, as competências, que a CF atribui, correm o risco de se
sobrepor, o que é factualmente verificável mas juridicamente inaceitável. Daí a
necessidade de a lei complementar estabelecer critérios que dirimam tais
conflitos. Ao fazê-lo, será inevitável interferir de algum modo no traçado dessas
competências, que do contrário conflitariam, interferência que seria admissível
constitucionalmente desde que o critério não implique favorecimento de um ente
em detrimento de outro, por levar a uma compressão desproporcional de uma das competências
envolvidas no conflito que se quer evitar.
O Supremo Tribunal Federal tem diversos precedentes que
autorizam essa conclusão, quanto ao referido papel da lei complementar, inclusive
posteriores à Constituição de 1988, que reforçou a autonomia de entes
federativos periféricos e expressamente veda a concessão de isenções
heterônomas (art. 151, III). Ao apreciar leis estaduais que instituíram o
Adicional Estadual do Imposto de Renda, por exemplo, o STF entendeu que a falta
da lei complementar para dirimir conflitos de competência inviabilizaria a
própria instituição do imposto, por lei estadual (ADI 627/PA), apesar do que
consta do art. 24, §3.º, da CF/88, segundo o qual “inexistindo lei federal
sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para
atender a suas peculiaridades.” O mesmo decidiu o STF, em matéria de ICMS incidente
sobre transporte aéreo de passageiros (ADI 1.600/DF), embora, misteriosamente,
o critério tenha sido outro em se tratando de transporte terrestre (ADI
2.669/DF).
E o que isso tem a ver com o ISS e a taxatividade da
lista?
É que existe um ponto de muitos conflitos de competência
entre Estados e Municípios, no que tange ao imposto sobre serviços (ISS), e ao
imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços de
transporte interestadual e intermunicipal, e de comunicação (ICMS). São as
operações mistas, assim entendidas aquelas nas quais se presta um serviço com a
utilização de mercadorias fornecidas ao tomador quando da prestação.
Basta
pensar-se no cidadão que leva seu carro à oficina mecânica, para submetê-lo a
um conserto em que se trocam algumas peças. Ou no dentista que, ao realizar um
tratamento ortodôntico, fornece peças do aparelho correspondente ao seu
paciente. Incide ISS, porque se trata de serviço? ICMS porque há fornecimento
de mercadorias? Ambos?
O
critério escolhido pelo legislador complementar foi o de que, se o serviço
estiver descrito na lista anexa à lei complementar de normas gerais sobre ISS,
incidirá apenas o ISS sobre o valor total da operação. Se ele não estiver
descrito, incidirá apenas o ICMS sobre o valor total da operação. E, se ele
estiver previsto, mas a lista expressamente indicar a incidência de ambos, o
ISS será devido sobre a mão de obra, e o ICMS sobre as mercadorias, que deverão
ser apartados para fins de cálculo (LC 116/2003, art. 1.º, § 2.º; LC 87/1996,
art. 2.º, IV e V). É o que se dá, inclusive, no citado exemplo das oficinas
mecânicas (item 14.01 da lista anexa à LC 116/2003): a mão de obra se sujeita
ao ISS, e, as peças substituídas na manutenção, ao ICMS.
Não
é preciso detalhar mais o critério apontado, que dá cumprimento ao que exige o
art. 146, I, da CF/88, para entender que ele só funciona se a lista de serviços
for taxativa. Entendida a lista como exemplificativa, o critério não faz
sentido algum. Esse era o argumento de Hugo de Brito Machado para expor tese
contrária à de seu professor e amigo, Geraldo Ataliba.
Mas
o que isso tem a ver com o título deste artigo?
É
que, ao defender sua posição, o Prof. Ataliba destacou que a defesa de ponto de
vista contrário significaria não saber ler a Constituição, na qual estaria
consagrada a autonomia dos municípios, incompatível com a definição, em lei
federal, do que poderia ser por eles tributado. Quando lhe foi dada a palavra,
em seguida, o Prof. Hugo defendeu os fundamentos de sua posição, acima resumidos.
Sobre isso implicar não saber ler a Constituição, retrucou ao mestre que
realmente poderia ser o seu caso, mas não o de Aliomar Baleeiro, em cujo livro
se poderia ler a defesa da mesma ideia. Baleeiro, como se sabe, foi
Constituinte em 1946, e também Ministro do STF, além de autor de obras de
destaque, respeitado por todos, sobretudo pelo Professor Geraldo Ataliba, que, ao
ouvir essa remissão, não se conteve. Pegou novamente o microfone e atalhou:
-
Hugo, você leu um livro falsificado! Baleeiro nunca escreveu isso!
A
plateia riu, surpresa com o argumento inusitado. E o Prof. Hugo, sem saber o
que dizer, apenas terminou sua palestra, expondo as razões de seu ponto de
vista. Insistiu que se trata de forma para dirimir conflitos de competência
entre ISS e ICMS, dando cumprimento a outra norma, também da Constituição, que
confere esse papel à lei complementar. Se o critério de solução do conflito
escolhido pelo legislador for demasiadamente prejudicial a um ente, em favor de
outro, pode ser questionada a sua validade, mas não seria esse o caso da
taxatividade de uma lista bastante extensa, que procura abarcar praticamente
tudo. Outras palestras se sucederam, sobre temas diversos, os professores em
seguida foram confraternizar em um bom restaurante, e não se tocou mais no
assunto.
Mas,
terminado o evento, já no avião, de volta a Fortaleza, o Prof. Hugo não tirava
aquela frase da cabeça. Livro falsificado? Logo depois, chegando à sua
biblioteca, correu para folhear o exemplar no qual lembrava ter lido sobre a
taxatividade da lista. Estaria enganado? Teria feito confusão quanto ao autor
em que vira a afirmação?
Diante
do mais novo exemplar que possuía do “Direito Tributário”, de Baleeiro, passou
a palma das mãos sobre a capa e a contracapa, abriu e examinou a encadernação,
com alguma incredulidade, como quem confere a autenticidade de bolsas italianas
ou relógios suíços oferecidos por preços estranhamente baixos. Estava lá a
posição de Baleeiro. Mas... seria falsificado o livro? Como assim?
Prosseguindo
no exame do exemplar que tinha em mãos, capa, contracapa, folha de rosto... voilá! A solução para o enigma surgiu-lhe
evidente: Ataliba referia-se ao fato de que o livro de Baleeiro vinha sendo
reeditado com notas de atualização, feitas depois de sua morte. O professor
Flávio Bauer Novelli vinha mantendo o livro de Baleeiro em dia, e também tinha
posição pessoal pela taxatividade da lista. O que Ataliba havia sugerido, muito
provavelmente, era que Novelli havia inserido no livro sua posição pessoal, que
não seria a de Baleeiro. Teria faltado ao Prof. Hugo atenção para diferenciar a
posição do autor e a do atualizador.
Hugo
Machado iniciou então uma pesquisa em edições anteriores do livro, publicadas
quando Baleeiro ainda vivia. E viu que nelas já constava a remissão ao fato de ser
a lista taxativa. Tratava-se, em suma, do pensamento de Baleeiro, não de algo
inserido posteriormente em notas de atualização. Aliás, os atualizadores da
obra de Baleeiro (Novelli, Dejalma de Campos, Misabel Derzi e, por ironia do
destino, mais de três décadas depois desse episódio, também o autor destas
linhas, que põe em dia o Uma Introdução à
Ciência das Finanças) sempre tiveram e seguem tendo o cuidado de separar as
notas de atualização e o pensamento do autor.
Mas nós
adultos somos – felizmente – só crianças grandes. Como escreveu Heráclito, em
passagem que há uns meses transcrevi para uma pessoa muito querida que nela
também se encaixa, o ser humano “só se aproxima do seu eu verdadeiro quando
atinge a seriedade de uma criança que brinca.”. Tudo isso para dizer à
leitora que a história não acabou aí: a partir de então, sempre que
estava em um evento acadêmico, presentes vários autores de livros jurídicos, o
Prof. Hugo procurava observar se o Prof. Ataliba estaria presente, com algum
outro autor a conversar com ele, nos intervalos entre as palestras. Em seguida,
investigava se haveria, à venda nos stands
que os livreiros geralmente montam em eventos assim, obras daquele autor envolvido
na conversa. Confirmada essa situação, mesmo que já possuísse o livro, adquiria
novo exemplar e, pedindo licença por interromper a conversa do autor com
Ataliba, dizia:
- Professor,
desculpe interromper a conversa de vocês. Acabei de comprar seu livro! O Sr.
poderia autenticar para mim, por
favor?
-
Claro, Hugo! Uma dedicatória? Com prazer! Mas... o que você disse? Autenticar?
Como assim?
- É,
autenticar.
-
Autenticar?!
- É...
Para, quando eu citar, ninguém dizer que é falsificado!!!
Apesar de essa última frase ser pronunciada com o tom, o
timbre e o volume próprios do professor Hugo (quem já assistiu suas aulas e
palestras sabe do que se trata), Ataliba fingia não entender o que se passava,
ficando só a alisar as pontas do farto bigode, bem sério, enquanto esperava seu
interlocutor concluir o autógrafo para retomarem o diálogo.
Essa
foi a explicação que recebi quando, ainda na graduação, questionei a presença
de alguns livros repetidos na biblioteca de meu pai, inclusive das mesmas
edições, vários deles autografados, relato que compartilho aqui para realçar o
aspecto pitoresco, pessoal, já histórico, e mesmo lúdico, subjacente a essa
importante questão de Direito Tributário. Recentemente, a propósito, seguindo a
ideia da taxatividade, o legislador editou a LC 157/2016, para que na lista se
passasse a fazer alusão a novas realidades como a elaboração de aplicativos
para smartphones e tablets, a computação em nuvem, a colocação de
piercings e o transporte intramunicipal de passageiros por aplicativos.
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