quinta-feira, 25 de abril de 2024

O que são bens de uso e consumo pessoal?

 Quebrando a promessa de instituir um IVA de "base ampla", que por coerência deve permitir também uma ampla base de creditamentos, a EC 132/2023 excepcionou do direito de créditos as operações com bens destinados a "uso e consumo pessoal".

A ressalva é infeliz, e foi criticada mesmo antes de a PEC 45/2019 ser aprovada. A Constituição poderia não ter ressalva alguma, e se dispor, didaticamente, em lei, que não geram créditos as operações que não digam respeito à atividade tributada. Caberia ao intérprete, em cada caso, definir se a entrada se relaciona, ou não, à atividade. Mas, da forma como colocada na Constituição, a ressalva abre espaço para o legislador "manobrar" o conceito de bem de uso e consumo e assim ampliar a restrição ao creditamento.

E é justamente isso o que está ocorrendo, no projeto de lei complementar encaminhado ontem ao Congresso, que dispõe, no que interessa a esse assunto:

Art. 29. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição dos seguintes
bens e serviços, que serão considerados de uso e consumo pessoal, exceto quando forem
necessários à realização de operações pelo contribuinte:
I - joias, pedras e metais preciosos;
II - obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico;
III - bebidas alcoólicas;
IV - derivados do tabaco;
V - armas e munições; e
VI - bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.
Parágrafo único. Considera-se necessário para a realização de operações pelo contribuinte, para
fins do disposto no caput:
I - para os bens previstos nos incisos I a VI do caput, quando forem comercializados ou utilizados
para a fabricação de bens comercializados;
II - para os bens previstos no inciso V, também, quando forem utilizados por empresas de
segurança; e
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III - para os bens previstos no inciso VI do caput, também, quando forem utilizados,
preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico.


A disposição é inconstitucional, pois ela transforma em "bem de uso e consumo" algo que em determinada situação pode não o ser, apenas por se tratar de uma obra de arte, ou arqueológica, ou uma antiguidade, ou por se tratar de bebida ou derivado do tabaco. Em relação a esses itens, ressuscita-se a sistemática do crédito físico.

Mas, e se se tratar de um museu, ou de um hotel, ou de uma escola, que compra obras de arte ou antiguidades com fins educacionais ou estéticos? Um hotel cinco estrelas pode dizer que as obras de arte que ornam suas suítes ou salões são "de uso pessoal"? De quem?!

Um museu - que pagará IVA-Dual por base ampla - não se poderá creditar do IVA-Dual incidente sobre as obras de arte que comprar, porque são de "uso pessoal"?

Mas o pior consta de outro artigo:

Art. 38. A incidência do IBS e da CBS sobre o fornecimento não oneroso ou a valor  inferior ao de mercado de bens e serviços para uso e consumo pessoal de pessoas físicas, de que trata o inciso I do caput e o § 1º, ambos do art. 5º, se dará na forma do disposto nesta Seção.
§ 1º Os bens e serviços para uso e consumo pessoal de que trata o caput incluem, a título exemplificativo:
I - a disponibilização de bem imóvel para habitação, bem como despesas relativas a sua manutenção;
II - a disponibilização de veículo, bem como despesas relativas a sua manutenção, seguro e
abastecimento;
III - a disponibilização de equipamento de comunicação;
IV - serviço de comunicação;
V - plano de assistência à saúde;
VI - educação;
VII - alimentação e bebidas; e
VIII - seguro.

Alimentação fornecida pela empresa aos seus funcionários, durante o expediente, não é bem de uso ou consumo pessoal. 

Disponibilização de aparelhos de comunicação para empregados usarem em serviço, principalmente em tempos pós-pandêmicos, em pleno Século XXI, em que tanto se fala em "home office", não são bens ou serviços de uso ou consumo pessoal.

Plano de assistência de saúde não são bens de uso e consumo pessoal.

Seguros não são de uso ou consumo pessoal! Um empregado que desenvolve atividade de risco pode ser beneficiado por um seguro contratado pela empresa, em função da atividade, e isso não é "pessoal", estando diretamente ligado à atividade do estabelecimento.

Educação! Educação não é uso ou consumo "pessoal". Funcionários são treinados, fazem cursos, especializações, atualizações e reciclagens, o que pode ter direta relação com a atividade da empresa! Uma empresa de ônibus não pode custear curso de direção defensiva ou de primeiros socorros aos seus motoristas? Um hotel não pode custear curso de inglês aos seus funcionários?! Consumo PESSOAL? Absurdo!

Enfim, tudo isso, que é só uma fração diminuta do projeto, me lembra artigo que escrevi, há cinco anos, no Conjur (clique aqui). Foram justo os pontos que eu levantei ali que o projeto tratou de modo péssimo e inconstitucional.

Me lembra, também, de desenho animado que eu gostava de assistir na infância:



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