domingo, 28 de setembro de 2025

I.A. bloqueia a palavra cruzada com a neurociência?

A realidade é uma só. As divisões que se fazem nela são criações da nossa mente para melhor entendê-la. Mostra disso é que uma teoria sobre a realidade, quando correta, invariavelmente converge, ou se encaixa, em outras, ou com outras, que se ocupam dos mesmos fenômenos, ou de aspectos correlatos. Tal como quando se preenche um jogo de palavras cruzadas, e as entradas corretas de algumas palavras vão fornecendo as letras necessárias ao preenchimento das demais que com ela se cruzam.

Vejamos, aqui, um ponto que talvez seja exemplo disso.

A mente humana é estudada por diversas ciências. Neurologia. Psiquiatria. Psicologia. E por ramos do conhecimento que não são propriamente científicos, mas filosóficos (não vamos entrar na questão da diferença entre ciência e filosofia aqui): epistemologia, hermenêutica.

Da reunião delas, que permite que umas supram as omissões das outras - como cada uma olha para as mesmas coisas por ângulos diferentes... - são obtidos avanços surpreendentes. Costumou-se chamar essa reunião de "neurociências", assim no plural. Ou de "ciências cognitivas".

Reconhecendo a relatividade das classificações (algo que também decorre de a realidade ser una),  pode-se falar também em "ciências cognitivas", também no plural, para designar igual reunião de saberes, inclusive com larga zona de sobreposição com as "neurociências". Mas, aqui, a tônica é a parte do que a mente faz (o conhecimento), e não tanto a mente enquanto estrutura física. E se acresce a ciência da computação, no que toca à chamada "inteligência artificial". Para estudar a IA, é preciso saber, antes, o que é inteligência (sendo aí a maior dificuldade, não tanto no "artificial").

Pois bem. Os achados de umas podem explicar os achados de outras. Ou refutar. Se refutam, no jogo das palavras cruzadas, tem alguma que está dando respostas erradas. Resta saber qual é.

Miguel Nicolelis, um médico que estuda a mente (com foco no cérebro enquanto estrutura físico-corporal) tem sustentado que a inteligência artificial, pelo menos se continuar pretendendo replicar a mente humana com computadores puramente digitais (que usam linguagem que, ao fim e ao cabo, se traduz em sequências de zeros e uns), nunca o conseguirá. Isso porque o cérebro humano não é digital. É analógico. Usa a linguagem, que pode ser traduzida em zeros e uns, mas usa também outras formas de fazer e recuperar registros informacionais. 


 

Parece complicado? Pense na sensação do adulto quando sente, na atualidade, o cheiro da loção pós-barba que décadas antes era usada pelo seu avó, quando iam juntos passear no centro da cidade. Ou nas sensações a que lhe remete a lembrança de alguém querido (ou odiado). Ou o que se sente quando se ouve música usualmente reproduzida em algum momento marcante, bom ou ruim, do passado. A linguagem não chega. E, precisamente por isso, a IA não reproduz.

Nicolelis explica que, matematicamente, para um computador replicar esse caráter complexo e analógico do cérebro humano, de forma digital, seria necessária uma quantidade infinitiva de energia, e um tempo infinito de processamento. Inviável.

Não que não se possa criar um computador inteligente. Até pode ser possível. Mas não meramente acrescentando mais dados e mais potência aos que existem hoje, se continuarem realizando inferências da mesma maneira.

Isso é o que diz um médico, a partir do conhecimento que tem das estruturas do cérebro.

Vamos então à palavra cruzada.

No terreno da Epistemologia, Karl Popper escreveu, há muitos anos, que a indução, como inferência lógica, é falha e conduz a falácias. Tem problemas lógicos e epistemológicos. Há um texto seu, célebre, "o problema da indução", em que isso é aprofundado. A ideia, a rigor, foi originalmente defendida por Hume, e aprofundada por Kant. Popper a expandiu para a Filosofia da Ciência e para servir de base ao seu "falibilismo".

 

E as máquinas, hoje, fazem indução. Quando mais dados tiverem como material de treinamento, ou como matéria prima, para fazerem a indução, melhores serão os resultados. Mas eles sempre poderão incorrer em erros graves, principalmente quando o futuro não for igual ao passado, quando o contexto atual discrepar daquele de onde foram extraídos os dados do treinamento. Ou, dito de forma mais simples: diante de situações IMPREVISTAS, em que seja necessário o IMPROVISO.

Essa entrada da palavra cruzada converge e confirma a de Nicolelis. E torna errada a resposta dos teóricos de IA que dizem ser uma questão de tempo para, com algum aprimoramento quantitativo (e não qualitativo), termos uma Inteligência Artificial Geral (artificial general intelligence - AGI), igual ou, depois, superior à humana.

Com amparo nela, há autores explicando por que, por usar inferência indutiva, a IA nunca conseguirá igualar a mente humana. Pode superá-la em algumas funções específicas (fazer contas, jogar xadrez...) mas nunca de forma "geral". É o caso de "O Mito da Inteligência Artificial", de Erik J Larson.


Outra "horizontal" da palavra cruzada que desmente a "vertical" segundo a qual bastará esperar mais algumas versões do GPT para termos uma AGI


E no terreno da psicologia (sobretudo da psicologia comportamental), há autores que sustentam que o
conhecimento humano é "corpóreo". É embodied. As imagens se formam na mente, e dão origem a ideias, pensamentos, conceitos, a partir de analogias com sensações corporais. Daí decorrem duas limitações para a AGI: computadores não têm corpo e, mais emblemático, o conhecimento humano, analógico porque gravado no corpo, responde por mais de 90% do conhecimento humano. O conhecimento consciente, ou racional, é um percentual muito pequeno do nosso conhecimento. Nesse sentido, livros de divulgação científica como o "subliminar" ilustram bem a ideia.    

Outra horizontal a infirmar a vertical da possibilidade de uma AGI digital, armazenada em uma nuvem.


 

Eu meio que já apontava para essa dificuldade em meu livro, que inclusive se ampara em alguns desses autores. É o caso deste trecho:


O pensamento, aliás, talvez seja formado a partir de sensações, as quais de algum modo dão matéria prima a que se façam analogias para a construção de ideias abstratas. Dizer que um sistema normativo está cheio de contradições pressupõe que ele possui um espaço a ser fisicamente preenchido, tal como um estômago. O mesmo ocorre quando se afirma que os propósitos de determinada lei foram esvaziados, ou que a inflação corroeu um crédito ao longo dos anos. Os exemplos são incontáveis: a ideia brilhante, o raciocínio claro, a cegueira ideológica etc. Tudo isso deve ser lembrado quando se trata de programar máquinas (desprovidas de corpos) a fazer o mesmo.

 

 Será assim mesmo? Ou será que somos ludistas presos no paradigma neuro-biológico? Deposite aqui nos comentário o que pensa sobre o tema! 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Político é tudo igual

    Entro no taxi. Spin branco, cheiro de borracha cansada e suor antigo grudado no estofado. Calor insuportável.

    - Bom dia. O Sr. poderia ligar o ar-condicionado, por favor?

 

     

O taxista atende o pedido, fecha os vidros e se justifica:

    - A coisa tá difícil. A gente tem que economizar onde dá. Ar condicionado gasta uma gasolina danada, o Sr. sabia? E agora ainda tem esse pessoal que faz corrida por aplicativo... uma multidão, trabalhando por quase nada.

    Fico na minha, para ver se ele se cala; mas parece que estava decidido a puxar assunto:

    - Esfriou? Quer que aumente a potência?

    - Não, está bem assim, obrigado. Vamos ao aeroporto, por favor
.

    Senti um certo remorso, talvez estivesse sendo antipático, e emendei:

     - Que jogo aquele do Ceará, hein?

    Agora foi ele quem se calou. Não sei se é torcedor do Fortaleza, que anda mal na tabela, ou se nem gosta de futebol. Seguem-se alguns minutos de silêncio, até que passamos ao lado de um carro com a foto e o nome de um vereador adesivados na porta. “Elder Sobreira – o Vereador de Verdade”, era o que estava escrito em letras azuis, embaixo da foto de um senhor de olhos claros e barba grisalha.

    - Esse daí é um safado! – Bradou o taxista – Político é tudo igual! Esse me apunhalou pelas costas! Voto nele mais é nunca.

    - O que houve? – Perguntei, agora com autêntica curiosidade.

    - Fez uma corrida uma vez comigo. Disse que pretendia candidatar-se a vereador. Fazer diferente. Moralizar essa roubalheira. Trabalhar pelo povo, em vez de se arrumar na política, como tantos.

    - É o que praticamente todos dizem, não?

    - Sim, mas ele parecia mesmo honesto. Gente simples. Lá do nosso bairro. Professor de uma escola da prefeitura.

    - E aí?

    - E aí que eu acreditei no pilantra, e comecei a pedir voto para ele. Peguei logo vários santinhos no comitê que ele abriu lá no meu bairro, e distribuía com meus passageiros. E olhe que ando com muita gente! Ainda convenci meus colegas do ponto de táxi a fazerem o mesmo.

    - Você então conseguiu muitos votos?

    - Não queira saber quantos! Até minha sogra convenci a votar nele. Cada passageiro que eu pegava, puxava conversa, perguntava se já tinha candidato. Também não queria ser chato nem inconveniente. Se a pessoa dissesse não ter ainda em quem votar – e para vereador quase todo mundo dizia isso – eu dava logo um santinho.

    - Com um cabo eleitoral assim, ele deve ter ganhado fácil!

    - Nem tanto. Ganhou, mas foi por pouco. Também, ele dizia que não queria comprar votos, que era sério...

     - E a punhalada?

    - Só de lembrar tenho raiva! Um safado! Como eu digo, político é tudo igual!

    - Mas o que ele fez?

    Eu, que nem queria conversar, estava cada vez mais curioso. Veio então a explicação:

    - Sabe, eu tenho um sobrinho que nunca quis saber de estudo. Largou o colégio na oitava série. Na verdade, ele não quer saber de nada. Já conseguimos vários empregos para ele, e nada. Ele não dá certo. Até na lanchonete da minha esposa tentamos, mas era um encostado, não servia para nada. Tivemos que demitir. Minha irmã, mãe dele, ficou meio chateada comigo.

    - Sei como é. Várias famílias têm alguém assim.

    - Então. Quando esse safado que eu ajudei a se eleger tomou posse, fui até a Câmara falar com ele. Fui bem recebido, tomei cafezinho com biscoitos, conheci a Câmara. Tudo firula. Contei para ele do meu sobrinho, que não dava certo para nada, e pedi que pelo menos conseguisse para ele um empreguinho na prefeitura. Ou na Câmara. Qualquer função com um salário de cinco, seis mil reais, estaria de bom tamanho...

    - E ele?

    - Até agora nada! Ele me disse que “ia ver”, e nunca me retornou! Um safado! Senti uma punhalada nas costas!

    Fiquei na dúvida entre falar o que me ocorria, ou ter paz no restante do caminho até o aeroporto. Resolvi não polemizar:

      - É, político é mesmo tudo igual. O Sr. sabe quanto tempo ainda falta para o aeroporto?

 


 

sábado, 13 de setembro de 2025

O cérebro, a indução e os limites da inteligência artificial

 


Miguel Nicolelis, em O Verdadeiro Criador de Tudo, sustenta a tese segundo a qual o cérebro humano não é apenas receptor passivo de estímulos, mas o verdadeiro criador da realidade como a conhecemos. O mundo da ciência, da arte, das instituições e da cultura não seria reflexo fiel de uma realidade “em si”, mas resultado das mediações e reconstruções que o cérebro opera de modo contínuo.

Essa ideia ecoa Kant, para quem não temos acesso direto ao númeno, mas apenas ao fenômeno filtrado pelas formas da sensibilidade e pelas categorias do entendimento. Nicolelis atualiza o raciocínio: não mais categorias a priori fixas, mas redes neurais moldadas pela evolução e pela plasticidade. O cérebro funciona, em sua visão, de maneira essencialmente analógica, integrando sinais contínuos e múltiplos, em paralelo, de modo diferente da atuação digital e discreta das máquinas de Turing.

É nesse ponto que surge o diálogo com Gödel. Seus teoremas de incompletude mostraram que nenhum sistema formal é capaz de conter todas as verdades aritméticas em seu interior. Nicolelis, em linha parecida com Penrose, sugere que a mente humana, justamente por não se restringir a regras formais, consegue intuir verdades que escapam ao formalismo digital. A intuição matemática, os “saltos criativos”, seriam expressão desse funcionamento analógico.

Aqui se abre a ponte com Popper (que ele não cita, mas cujo pensamento converge bastante com o seu). O filósofo, ao denunciar o problema da indução, afirmou que a ciência não avança por generalizações automáticas, mas por conjecturas criativas e testes rigorosos. O momento da criação de hipóteses não se deduz de regras lógicas: é um ato inventivo. Nicolelis dá a esse diagnóstico popperiano uma base neurobiológica. O cérebro, em sua dinâmica analógica, explica a emergência dessas conjecturas que não se reduzem a algoritmos.

E o que isso tem a ver com a inteligência artificial? Justamente a crítica de que, por mais poderosos que sejam os sistemas de IA, eles permanecem presos à lógica da indução estatística. São capazes de reconhecer padrões em volumes imensos de dados, mas não de inventar, no sentido forte, hipóteses novas. A IA enfrenta o mesmo limite lógico denunciado por Popper e iluminado por Gödel, que Nicolelis agora formula em chave neurocientífica: a criatividade humana não é computável.

Esse conjunto de paralelos — Kant, Popper, Gödel e Nicolelis — ajuda a refletir não apenas sobre ciência e tecnologia, mas também sobre política e direito. Afinal, se a realidade social também é criação do cérebro humano, importa pensar até que ponto delegar decisões à máquina não significaria abrir mão justamente da dimensão que nos faz humanos: a capacidade de imaginar, conjecturar e criar mundos.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Por que dogmática e Textura Aberta

 Refletindo esses dias, percebi que dois livros meus, separados por quase vinte anos, têm bastante relação um com o outro. Pode-se mesmo dizer que o mais recente é o refinamento de ideias que já se encontravam, embrionárias, no mais antigo.


Por que Dogmática Jurídica? foi escrito em 2007. Nele, a ideia central é: as normas se expressam por intermédio de textos, compostos por expressões e palavras, os quais só adquirem sentido no contexto em que aplicadas. Mesmo que a cognição plena e absoluta dos textos fosse possível (de nenhum objeto o é), ela não o seria em relação aos elementos contextuais. Daí por que o ramo do conhecimento que se propõe a estudar normas, se se pretende científico, não se pode designar "dogmática". É um oxímoro falar-se em "ciência dogmática". Algo como calor gelado ou secura úmida.

 


No mais recente, fruto de minha tese de livre docência na USP, aprofunda-se essa ideia, apontando-se a inferência abdutiva, o método falibilista popperiano, e o modelo Toulmin de argumentação, como hábeis a, juntos (são como que desdobramentos de uma mesma ideia explicada de formas diferentes), permitir a indicação do sentido que os textos normativos têm no caso em que aplicados, de modo intersubjetivamente controlável e, nessa condição, passível de crítica.   

A textura aberta da linguagem permite ou suscita questionamentos bastante relevantes a respeito da determinação do sentido das palavras (à luz dos fatos relevantes ao caso), o que começo a explorar neste livro. Sem dúvida, há muito ainda a ser tratado. Em especial a impossibilidade de, com mais palavras, se afastar a vagueza ou a ambiguidade de palavras: incorre-se em regresso ao infinito. Para deixar claro o sentido de uma palavra, usam-se pelos menos outras quatro ou cinco, as quais, cada uma delas pode ter seu sentido problematizado. Exemplo: renda é acréscimo de patrimônio em período determinado de tempo. O que é acréscimo? O que é patrimônio? Devoluções são acréscimos? E se forem ligeiramente maiores que a quantia retirada? Quanto maior, para que passem de devolução a acréscimo? E se se tratar de acréscimo ao patrimônio material para reparar decréscimo moral?

Não que tais questões não tenham solução. Tem. Mas não se pode ingenuamente achar que só acrescentando mais e mais palavras ao debate se vai, abstrata e aprioristicamente, resolvê-lo. Remeto, a esse respeito, à polêmica "Soler x Carrió", mas esta fica já para outro post.