Miguel Nicolelis, em O Verdadeiro Criador de Tudo, sustenta a tese segundo a qual o cérebro humano não é apenas receptor passivo de estímulos, mas o verdadeiro criador da realidade como a conhecemos. O mundo da ciência, da arte, das instituições e da cultura não seria reflexo fiel de uma realidade “em si”, mas resultado das mediações e reconstruções que o cérebro opera de modo contínuo.
Essa ideia ecoa Kant, para quem não temos acesso direto ao númeno, mas apenas ao fenômeno filtrado pelas formas da sensibilidade e pelas categorias do entendimento. Nicolelis atualiza o raciocínio: não mais categorias a priori fixas, mas redes neurais moldadas pela evolução e pela plasticidade. O cérebro funciona, em sua visão, de maneira essencialmente analógica, integrando sinais contínuos e múltiplos, em paralelo, de modo diferente da atuação digital e discreta das máquinas de Turing.
É nesse ponto que surge o diálogo com Gödel. Seus teoremas de incompletude mostraram que nenhum sistema formal é capaz de conter todas as verdades aritméticas em seu interior. Nicolelis, em linha parecida com Penrose, sugere que a mente humana, justamente por não se restringir a regras formais, consegue intuir verdades que escapam ao formalismo digital. A intuição matemática, os “saltos criativos”, seriam expressão desse funcionamento analógico.
Aqui se abre a ponte com Popper (que ele não cita, mas cujo pensamento converge bastante com o seu). O filósofo, ao denunciar o problema da indução, afirmou que a ciência não avança por generalizações automáticas, mas por conjecturas criativas e testes rigorosos. O momento da criação de hipóteses não se deduz de regras lógicas: é um ato inventivo. Nicolelis dá a esse diagnóstico popperiano uma base neurobiológica. O cérebro, em sua dinâmica analógica, explica a emergência dessas conjecturas que não se reduzem a algoritmos.
E o que isso tem a ver com a inteligência artificial? Justamente a crítica de que, por mais poderosos que sejam os sistemas de IA, eles permanecem presos à lógica da indução estatística. São capazes de reconhecer padrões em volumes imensos de dados, mas não de inventar, no sentido forte, hipóteses novas. A IA enfrenta o mesmo limite lógico denunciado por Popper e iluminado por Gödel, que Nicolelis agora formula em chave neurocientífica: a criatividade humana não é computável.
Esse conjunto de paralelos — Kant, Popper, Gödel e Nicolelis — ajuda a refletir não apenas sobre ciência e tecnologia, mas também sobre política e direito. Afinal, se a realidade social também é criação do cérebro humano, importa pensar até que ponto delegar decisões à máquina não significaria abrir mão justamente da dimensão que nos faz humanos: a capacidade de imaginar, conjecturar e criar mundos.

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