domingo, 19 de outubro de 2025

Não compreendo que pelo fato de ser amado, deva o amado amar quem o ama

     Ao longo da vida,  é inevitável que se passe, em algum momento, pela decepção de não ser querido, ou não ser correspondido. Um relacionamento que termina, ou nem começa, pela decisão unilateral daquele com quem se gostaria de estar.

    Não é raro, em tais ocasiões, que terceiros, ficando a par do que se passa, geralmente pela ótica do sujeito não querido, tenham-no como vítima da maldade de quem não o quis. Pobre Fulano, teve o coração partido pela Cicrana. Coitadinha da Beltrana, ficou arrasada por causa do Cicrano...

    Quando a parte deixada ultrapassa certos limites e faz uso da violência, às vezes essa opinião pública se altera, geralmente quando a que tomou a iniciativa de por fim à relação foi uma mulher, que de algoz passa (corretamente, diga-se) a ser tida como vítima de alguém possessivo, que não respeita sua vontade etc. Talvez não seja preciso tanto, e não dependa do gênero dos envolvidos, para se chegar a essa acertada conclusão, mas nestes casos ela fica mais óbvia para quem, enviesado, não consegue ver.

    Curioso que o assunto não é novo. Talvez seja tão antigo quanto a humanidade, ou mesmo mais velho. E uma das mais belas passagens escritas a seu respeito saiu da pena de Miguel de Cervantes, em Dom Quixote.

    Na narração, em certo episódio, estavam todos a falar de uma certa "Pastora Marcela", moça que destroçara o coração de um pobre rapaz. Não quis ficar com ele, que, desolado, terminou por cometer suicídio. Tendo ouvido a história, Dom Quixote e Sancho Pança encontraram Marcela e a recriminaram pela "crueldade" de não ter ficado com o pobre Grisóstomo, o tal rapaz que morreu de coração partido.

    Marcela, então, responde a Quixote, proferindo um belo e avançadíssimo discurso em favor da liberdade humana e, no caso em particular, ainda mais avançado por reportar-se à liberdade feminina (e isso há mais de quinhentos anos).

 


        Em suas palavras (Livro I, Cap. XIV):

Hízome el cielo, según vosotros decís, hermosa, y de tal manera, que, sin ser poderosos a otra cosa, a que me améis os mueve mi hermosura51, y por el amor que me mostráis decís y aun queréis que esté yo obligada a amaros. Yo conozco, con el natural entendimiento que Dios me ha dado, que todo lo hermoso es amable52; mas no alcanzo que, por razón de ser amado, esté obligado lo que es amado por hermoso a amar a quien le ama53. Y más, que podría acontecer que el amador de lo hermoso fuese feo, y siendo lo feo digno de ser aborrecido, cae muy mal el decir «Quiérote por hermosa: hasme de amar aunque sea feo». Pero, puesto caso que corran igualmente las hermosuras54, no por eso han de correr iguales los deseos, que no todas hermosurasLVIII enamoran: que algunas alegran la vista y no rinden la voluntad; que si todas las bellezas enamorasen y rindiesen, sería un andar las voluntades confusas y descaminadas, sin saber en cuál habían de parar, porque, siendo infinitos los sujetos hermosos, infinitos habían de ser los deseos. Y, según yo he oído decir, el verdadero amor no se divide, y ha de ser voluntario, y no forzoso55. Siendo esto así, como yo creo que lo es, ¿por qué queréis que rinda mi voluntad por fuerza, obligada no más de que decís que me queréis bien? Si no, decidme: si como el cielo me hizo hermosa me hiciera fea, ¿fuera justo que me quejara de vosotros porque no me amábades? Cuanto más, que habéis de considerar que yo no escogí la hermosura que tengo, que tal cual es el cielo me la dio de gracia, sin yo pedilla ni escogella. 

 

  A passagem citada, em português:

O céu me fez, segundo vós dizeis, formosa — e de tal modo que, sem que pudésseis fazer outra coisa, a minha beleza vos move a amar-me. E, por esse amor que me mostrais, dizeis — e até quereis — que eu esteja obrigada a amar-vos.
Reconheço, com o entendimento natural que Deus me concedeu, que tudo o que é belo é amável; mas não compreendo que, pelo fato de ser amado, deva o amado, por ser belo, amar quem o ama.
Além disso, pode acontecer que o amante do belo seja feio, e sendo o feio digno de ser aborrecido, muito mal cai o dizer: “Amo-te porque és formosa; deves amar-me, ainda que eu seja feio.”

Mas, ainda que as belezas se equivalham, nem por isso hão de correr parelhos os desejos — pois nem toda beleza apaixona: algumas apenas alegram a vista, sem cativar a vontade. Se todas as belezas fizessem apaixonar e render os corações, andariam as vontades confusas e sem rumo, sem saber em qual repousar, porque, sendo infinitos os belos, infinitos seriam os desejos.

E, pelo que ouvi dizer, o verdadeiro amor não se divide, e há de ser voluntário, não forçado.
Sendo assim — como creio que é —, por que quereis que eu renda minha vontade pela força, só porque dizeis que me quereis bem?

Dizei-me: se, do mesmo modo que o céu me fez formosa, me houvesse feito feia, seria justo que eu me queixasse de vós por não me amardes? Tanto mais que deveis considerar que não escolhi a beleza que possuo; tal como é, o céu ma deu de graça, sem que eu a pedisse nem a escolhesse.

     Ou seja: porque uma pessoa gosta de outra, esta outra não é obrigada a render-se contra a sua vontade, só por isso. "Não compreendo que pelo fato de ser amado, deva o amado, por ser belo, amar quem o ama."

     Além de uma bela passagem da literatura universal, de um vanguardista discurso em prol da liberdade feminina (trata-se da liberdade humana, na verdade, mas a feminina era a especificamente violada no caso, e, estatisticamente, o é na maioria das vezes), e de um primor de lógica e filosofia, um recado:

    Deixemos de lado a fofoca e o julgamento da vida alheia (da qual nem sabemos todos os fatos relevantes para o julgamento, ainda que este nos coubesse), e voltemos nossa atenção à literatura, que é muito melhor. 

 

domingo, 12 de outubro de 2025

A metamorfose

Cerca de vinte e dois anos depois da primeira leitura, reli "A Metamorfose", de Kafka.

Fui invadido pelas mesmas ideias que tive quando li a primeira vez, mas, desta feita, mais nítidas, ou talvez passíveis de mais clara e precisa elaboração.

Naturalmente que várias interpretações para a obra são possíveis, e pode mesmo ser que o próprio autor desejasse exprimir outra. Mas a minha foi esta.

O livro trata do que nos faz humanos, e de se perdemos essa humanidade se, por uma razão qualquer (doença, acidente etc.), perdemos a capacidade de desempenhar o PAPEL que nos é dado em sociedade, ou que é esperado de nós pelos que nos cercam (e de quem esperamos o reconhecimento de nossa humanidade), seja o de provedor de um lar, seja o de funcionário exemplar (que nunca ficou doente em tantos anos).



Eu, como leitor, ficava angustiado com o comportamento dos familiares de Samsa, em alguns momentos, como a pensar: embora com forma de barata, ainda é o filho, o irmão, de vocês, que está aí, dentro dessa mente! E, em certas ocasiões, cada vez mais raras conforme avança a narrativa, os familiares até lembravam disso, mas só às vezes.

Pode-se pensar, ainda, na dor de alguém que se torna invisível para os que ama, apesar de continuar sendo a mesma pessoa por dentro. Talvez a transformação de Gregor Samsa em inseto simbolize o modo como a sociedade, e a própria família, deixam de reconhecer a humanidade de quem sofre, adoece ou se torna um "incômodo". Mas o livro cuida por igual da beleza que é a empatia, a capacidade de continuar vendo o humano mesmo quando ele está desfigurado, física ou simbolicamente. Talvez tenhamos no livro uma lembrança importante de que devemos enxergar uns aos outros com compaixão, mesmo quando o outro já parece “irreconhecível”.

sábado, 11 de outubro de 2025

Consequencias do uso da IA Generativa


 

Começamos a usar máquinas calculadoras e... perdemos a habilidade de fazer contas de cabeça.

Usamos o recurso de salvar contatos na memória do celular e... não lembramos mais o telefone de ninguém de cabeça.

Essas experiências, ao lado de tantas outras semelhantes que poderiam ser acrescidas ao rol de exemplos, deveriam servir de alerta quanto aos usos que fazemos de sistemas de inteligência artificial, notadamente de I.A. generativa.

Ao usar LLMs como o Claude o e o Chat-GPT para escrever tudo o que estamos com preguiça de escrever, corremos o risco de entrar em um ciclo vicioso, em que nossa mente terá cada vez mais preguiça, e usaremos cada vez mais os LLMs. O resultado não pode ser bom.

Uma coisa é usar para fazer algo que faríamos melhor, mas levaríamos muito tempo, tempo que não temos. E não teríamos prazer no processo. Mas se temos o tempo, ou se temos prazer no processo, por que terceirizar?

Já coisas que não conseguiríamos fazer sem a IA, pode ser o caso de serem feitas com o uso dela, mas com a cautela de que não sirva de encosto para que percamos a capacidade de fazer coisas novas, que antes não conseguíamos. Como o corredor que, por que não consegue correr 10km, mas só 8km, e ganha uma mobilete, começa a andar com ela e não só não conseguirá nunca chegar a correr 32km, mas os próprios 8km que já corre deixará de conseguir... 

Debater um texto lido previamente é uma coisa. Pedir o resumo de um que nunca foi lido, outra.

Discutir interpretações de um filme assistido é uma coisa, indagar sobre a síntese de um que nunca será visto, outra.

É preciso cuidado para não terceirizar a própria experiência cognitiva como um todo, pois, com isso, é a vida mesmo que se terceiriza. 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

"Só falta" o contencioso judicial

 
Em um hotel em Brasília, preparando-me para despachar com membro de uma Corte Superior sobre um processo no qual emiti um parecer, percebo diante de mim estes dois quadros.

  

Eles não têm nenhuma relação com o tema do despacho, ligado ao cabimento de um Recurso e à validade de uma taxa. Mas, organizando as ideias do que deveria falar ao Ministro, começo a perceber os quadros...

O hotel em que estou não é luxuoso, embora seja confortável. Deve ter centenas de quartos. Em todos eles é provável que quadros semelhantes ornem suas paredes.

São obras de arte?

Podem não ser obras primas dignas de espaços destacados nos melhores museus, mas são, sem dúvidas, obras humanas. E expressam arte. Não são textos técnicos nem imagens informativas sobre como usar o elevador ou a escada de incêndio.

 De acordo com os dicionários, obra de arte é aquela criada "ou avaliada por sua função artística ao invés de prática. Por função artística, se entende a representação de um símbolo, do belo. Apesar de não ter isso como principal objetivo, uma obra de arte pode ter utilidade prática."

São obras de arte, portanto.

À luz da LC 214/2025, contudo, quando vigentes IBS e CBS, hotéis que comprem objetos deste tipo para adornar os quartos, algo inteiramente ínsito à atividade que gera receitas tributáveis pelos tais tributos, não terão direito a crédito (art. 57, I, "b"). Pelo menos esse direito não será assegurado por Receita Federal e Comitê Gestor. Será preciso ir ao Judiciário para fazer valer o que consta do texto constitucional (e dos incontáveis slides usados para vender a reforma tributária com a promessa de "crédito amplo").

A reflexão me levou a outra. Estou hospedado no referido hotel, mas a despesa, seja ela suportada pelo meu escritório, ou pelo Consulente que me pediu o parecer e o despacho, não gerará, por igual, crédito de IBS e CBS, à luz da LC 214/2025 (art. 283). De novo, descumprimento da promessa de crédito amplo, embora tanto a receita do hotel, como a receita do meu escritório, e a do meu consulente, sejam tributáveis pelo IBS e pela CBS, quando entrarem em vigor.

Haverá débitos, e não serão baixos, mas não se gerarão créditos.

A solução será ir ao Judiciário.

Para o contribuinte, porque o Fisco, este terá o split payment, e não precisará sequer executar os contribuintes, em regra.

Para fechar o ciclo, algumas horas depois, minutos antes do despacho, vejo, sobre a mesa da sala de espera do gabinete do Ministro, uma revista em que se estampa, como matéria de capa, a declaração de um Ministro segundo a qual a população confia muito no Judiciário: prova disto é a quantidade imensa de processos.

É curioso como um dado objetivo, mesmo de veracidade incontroversa, pode suscitar interpretações tão contrárias.

De fato, muita gente ir ao Judiciário pode sinalizar excesso de confiança no trabalho deste.

Mas pode ser o contrário. Descumpridores da lei confiam que os lesados, quando procurarem o Judiciário, terão um resultado demorado e ineficiente. Daí descumprem a lei impunemente, e forçam milhares de pessoas a procurar o Judiciário.

Será o caso da Fazenda? Prova disto são os argumentos usados em favor do split: a execução é cara, demorada, ineficiente... assim é o processo judicial, do qual ela tirará proveito como devedora, não como credora. Aliás, como devedora, nem se sabe ainda quem poderá ser demandado, nem em qual Justiça, nem em qual Estado. A pressa foi para aprovar o direito material (EC 132/2023 e LC 214/2025). O direito processual, que socorrerá aqueles que quiserem fazer valer a promessa de "crédito amplo", e tantas outras, nem se sabe como, nem quando, virá...

domingo, 5 de outubro de 2025

A verdade é filha do tempo, não da autoridade

      Aristarco de Samos, que viveu entre 310 a.C. e 230 a.C., já àquela época defendia que a terra gira em torno do sol, e em torno de si mesma. Defendia também que as estrelas são sóis como o nosso, mas que estão muito muito distantes.

 


 

     Suas ideias, contudo, discrepavam do entendimento dominante, notadamente do posicionamento de autoridades como Aristóteles e Ptolomeu, e por isso não prevaleceram.

      Ponto contra a teoria da "verdade como consenso". Mais sobre isso depois.

     Mas a lição é: nem sempre uma ideia que discrepa do entendimento dominante, das grandes autoridades de uma época, é errada.

     Não que por isso se deva acreditar em qualquer coisa.

     Não que por isso o pensamento de quem pesquisou um tema por toda uma vida, e fez incontáveis experiências, tenha o mesmo valor do achismo (ou do chute) de quem entra em contato com esse mesmo tema pela primeira vez e já se sente habilitado a deitar opiniões.

    Mas, por isso, se deve sempre considerar como "certa até prova em contrário" até a mais sólida teoria.

    A prova em contrário há de ser séria e robusta, mas ela é sempre possível.

    Ao fim e ao cabo, submetida por esse processo de depuração de erros, a construção do conhecimento humano materializa a ideia de que a verdade é filha do tempo, não da autoridade. 

 

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Qual formação deve ter o jurista?


Recebi há pouco o mais recente livro de Pedro Adamy, "Vontade do Legislador", tema tão referido no "senso comum jurídico" e tão pouco examinado com a profundidade e clareza que merece. Na obra, pelo que pude antecipar do índice e pelo que conheço de seu autor, há importante e séria contribuição na superação desta lacuna.

Impressionou-me, contudo, já no começo da leitura (que inicio hoje), estas duas passagens do prefácio feito pelo Professor Humberto Ávila:

"Vivemos na época da superespecialização: há especialistas em tudo, até em cabeça de alfinete. Não raro, estes não apenas ignoram o que é e para que serve um alfinete, como são incapazes de avaliar o material de que é feito e as origens de seu surgimento. O resultado não poderia ser outro: são especialistas em cabeça de alfinete que não sabem clara e precisamente o que é... uma cabeça de alfinete!"

Tem-se aqui uma remissão ao problema da especialização, que é puramente epistemológico. Precisamos demarcar um objeto, quando vamos estudar qualquer coisa, pois não se pode estudar tudo sobre tudo, dadas as limitações de tempo, energia e cognitivas que nos são próprias. Só uma entidade sobrenatural e omnisciente seria capaz disso. Mas, ao demarcar, nunca podemos nos esquecer que o objeto estudado faz parte de uma realidade mais ampla, com a qual está indissociavelmente ligado e relacionado, sendo a separação ou a demarcação mais fruto de nossas mentes, para melhor entendê-lo. E, em se tratando de objeto cultural, criado pelo ser humano para cumprir certas finalidades (como uma mesa, uma cadeira, ou uma ordem jurídica), isso com mais razão ainda se coloca.

A outra passagem que me chamou a atenção, por ser igualmente voltada à epistemologia, e à postura do estudioso de qualquer tema, inclusive do Direito, é esta:

"Uma ampla formação humanista mostra-se cada vez mais urgente, ainda mais em tempos de inteligência artificial, em que o conhecimento humano meramente acumulativo será sempre inferior ao artificial e aquilo que é genuinamente humano se revelará cada vez mais essencial."

Se com o surgimento do google o "jurista" que apenas decora artigos de leis e súmulas já teve a sua utilidade posta em xeque, o que dizer de uma era em que temos plataformas de Inteligência Artificial Generativa cada vez mais hábeis a calcular a probabilidade de palavras e gerar textos que parecem - mas só parecem - feitos por um agente consciente que entende o que está falando e do que está falando.

Como tenho dito, se Galileu, Copérnico, Pasteur, Einstein, usassem o Chat-GPT, eles compilariam com qualidade e elegância o conhecimento existente até então, mas seriam inteiramente incapazes de quebrar os paradigmas vigentes, como quebraram. Do mesmo modo, usando as ferramentas de IA atuais, um jurista conseguirá aplicar cada vez a mais casos, e melhor, os precedentes existentes, mas será muito difícil fazer um distinguishing, e impossível um overrulling, apenas para citar dois exemplos.

No fim das contas, talvez seja esse o nosso desafio: manter o pé no rigor analítico e o outro na formação humanista, sob pena de virarmos — todos nós — especialistas em cabeça de alfinete sem sabermos do que é feita ou para que serve, ou, de outro lado, sem nunca termos segurado um alfinete na vida. E se a inteligência artificial vier a nos superar em velocidade e acúmulo, restar-nos-á ainda aquilo que nenhuma máquina pode substituir: a capacidade de rir da própria condição, de desconfiar das "verdades" postas e, sobretudo, de ousar pensar além do estabelecido — ainda que isso nos custe a fama de hereges, como um dia custou a Galileu e tantos outros.