Recebi há pouco o mais recente livro de Pedro Adamy, "Vontade do Legislador", tema tão referido no "senso comum jurídico" e tão pouco examinado com a profundidade e clareza que merece. Na obra, pelo que pude antecipar do índice e pelo que conheço de seu autor, há importante e séria contribuição na superação desta lacuna.
Impressionou-me, contudo, já no começo da leitura (que inicio hoje), estas duas passagens do prefácio feito pelo Professor Humberto Ávila:
"Vivemos na época da superespecialização: há especialistas em tudo, até em cabeça de alfinete. Não raro, estes não apenas ignoram o que é e para que serve um alfinete, como são incapazes de avaliar o material de que é feito e as origens de seu surgimento. O resultado não poderia ser outro: são especialistas em cabeça de alfinete que não sabem clara e precisamente o que é... uma cabeça de alfinete!"
Tem-se aqui uma remissão ao problema da especialização, que é puramente epistemológico. Precisamos demarcar um objeto, quando vamos estudar qualquer coisa, pois não se pode estudar tudo sobre tudo, dadas as limitações de tempo, energia e cognitivas que nos são próprias. Só uma entidade sobrenatural e omnisciente o seria capaz disso. Mas, ao demarcar, nunca podemos nos esquecer que o objeto estudado faz parte de uma realidade mais ampla, com a qual está indissociavelmente ligado e relacionado, sendo a separação ou a demarcação mais fruto de nossas mentes, para melhor entendê-lo. E, em se tratando de objeto cultural, criado pelo ser humano para cumprir certas finalidades (como uma mesa, uma cadeira, ou uma ordem jurídica), isso com mais razão ainda se coloca.
A outra passagem que me chamou a atenção, por ser igualmente voltada à epistemologia, e à postura do estudioso de qualquer tema, inclusive do Direito, é esta:
"Uma ampla formação humanista mostra-se cada vez mais urgente, ainda mais em tempos de inteligência artificial, em que o conhecimento humano meramente acumulativo será sempre inferior ao artificial e aquilo que é genuinamente humano se revelará cada vez mais essencial."
Se com o surgimento do google o "jurista" que apenas decora artigos de leis e súmulas já teve a sua utilidade posta em xeque, o que dizer de uma era em que temos plataformas de Inteligência Artificial Generativa cada vez mais hábeis a calcular a probabilidade de palavras e gerar textos que parecem - mas só parecem - feitos por um agente consciente que entende o que está falando e do que está falando.
Como tenho dito, se Galileu, Copérnico, Pasteur, Einstein, usassem o Chat-GPT, eles compilariam com qualidade e elegância o conhecimento existente até então, mas seriam inteiramente incapazes de quebrar os paradigmas vigentes, como quebraram. Do mesmo modo, um jurista conseguirá aplicar cada vez a mais casos, e melhor, os precedentes existentes, mas será muito difícil fazer um distinguishing, e impossível um overrulling, apenas para citar dois exemplos.
No fim das contas, talvez seja esse o nosso desafio: manter o pé no rigor analítico e o outro na formação humanista, sob pena de virarmos — todos nós — especialistas em cabeça de alfinete sem sabermos do que é feita ou para que serve, ou, de outro lado, sem nunca termos segurado um alfinete na vida. E se a inteligência artificial vier a nos superar em velocidade e acúmulo, restar-nos-á ainda aquilo que nenhuma máquina pode substituir: a capacidade de rir da própria condição, de desconfiar das "verdades" postas e, sobretudo, de ousar pensar além do estabelecido — ainda que isso nos custe a fama de hereges, como um dia custou a Galileu e tantos outros.
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