quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Existe incoerência?

Tenho refletido nos últimos dias sobre alguns assuntos.
De logo, devo esclarecer que meu perfil ideológico não é de "direita". Aliás, não acho que me possa enquadrar de forma definida em nenhum "lado", tendo essa dicotomia, de resto, ficado meio ultrapassada depois da queda do muro de Berlim. Em alguns assuntos eu poderia ser classificado como "de esquerda", e, em outros, "de direita". As pessoas não são "unas" e nem apresentam pensamento monolítico em todos os aspectos. Merecem ser lidos, a esse respeito, Amartya Sen (Identidade e violência) e Dworkin (A democracia é possível aqui?).
Bom, feita essa ressalva, divido com os leitores duas dúvidas que me assaltam nos últimos dias.
São dúvidas mesmo. Sinceramente, não sei ao certo o que pensar sobre elas. A única certeza que tenho é a de que estão sendo, esses assuntos, tratados de forma que me parece demasiadamente simplista.
A primeira: Zelaya.
Dizem que houve um golpe em Honduras, porque o Congresso e a Suprema Corte colocaram para fora um Presidente eleito pelo povo.
Acontece que o Presidente, segundo o Congresso, e a Suprema Corte, violou diversos artigos da Constituição hondurenha, que proíbe, de forma expressa, qualquer tentativa de continuidade no poder. Afirma, taxativamente, ser vedada a reeleição, sendo motivo para a perda dos direitos políticos a tentativa de alterar esse artigo. Foi o que Zelaya fez, provocando a manifestação do Congresso pelo seu afastamento, com a posterior ratificação do Judiciário.
Pode ser discutido, no plano filosófico, o mérito dos tais artigos da Constituição em vigor, mas não se pode, só porque o Presidente foi eleito, dizer que a violação dos artigos é "irrelevante". Afinal, Collor foi eleito, não foi? Por que a sua retirada do poder, pelo Congresso e pelo STF, não foi considerada golpe também? Certamente existem diferenças entre as situações, mas acredito que elas deveriam estar sendo mais claramente exploradas. Afirmar que o simples fato de o Presidente ter sido eleito impede os demais poderes (legislativo e judiciário) de aplicarem a ele a sanção da perda do mandato torna letra morta diversos artigos da Constituição (inclusive da nossa) e põe em risco a própria sistemática de freios e contrapesos.
A segunda: anistia.
Tem sido muito discutida, hoje, a aplicação da lei de anistia aos torturadores. Aqueles que prendiam e torturavam cidadãos "suspeitos" de participarem de movimentos revolucionários de esquerda não poderiam ser abrangidos pela anistia, pois teriam praticado crimes contra a humanidade etc.
Concordo inteiramente com o caráter repugnante da tortura, sou radicalmente contra as ditaduras e acho legítima a pretensão de rediscutir a abrangência da lei de anistia. Mas fico com a dúvida: por qual motivo os delitos praticados pelos militantes dos movimentos de esquerda que pretendiam tomar o poder são "políticos" (porque tendentes a derrubar um regime), mas os praticados pelas autoridades que ocupavam os cargos não são também "políticos"?? Afinal, não estavam esses últimos também sendo praticados com o exclusivo propósito de preservar um regime político? A distinção, no caso, está no tipo de delito (tortura), que afastaria o caráter "político" ou o tornaria irrelevante, em face da maior gravidade do ilícito? Haveria "desproporcionalidade" do meio, no caso da tortura, que seria inválido mesmo visando a um fim político? Inclino-me a essa segunda forma de pensar, sendo essa a única explicação para anistiar uns, e não outros. Mas é preciso que a questão seja debatida com maior clareza, para que se evitem incoerências.
A ideologia às vezes cega as pessoas. Fechar televisões em Honduras é medida ditatorial, mas na Venezuela não é... Eu sei que ideologia é como sotaque, só quem tem são os outros, mas, apesar disso, é preciso ser coerente nos julgamentos, independentemente do sentido destes, até para que estes sejam aceitos racionalmente por quem tem ideologia diversa. Ou não?

11 comentários:

Alexandre Costeira Frazão disse...

Sobre Zelaya professor, eu concordo com vc na questão da violação da constituição, que "legitimaria" a cassação do mandato do presidente. Mas não seria o caso de a Suprema Corte, através de ação própria e garantindo o direito à ampla defesa e o contraditório dar a oportunidade de Zelaya se defender,ao invés de simplesmente determinar a perda do mandato e uma quartelada expulsar o presidente do país?Collor foi deposto dentro dos estritos termos Constitucionais, a rigor ele sequer foi deposto.

Raul Nepomuceno [www.ojardim.net] disse...

Não vejo nenhuma incoerência, Hugo. Ao contrário, vejo rara, raríssima sensatez.

Um abraço,

Raul.

Anônimo disse...

Reformar a Constituição hondurenha para se reeleger foi, na verdade, o pretexto utilizado por aqueles que tomaram poder em Honduras.

Na verdade, o que Zelaya pretendia fazer era uma consulta popular a fim de saber a disposição do povo hondurenho para formação de uma nova assembleia constituinte. Esse fato, segundo seus opositores, seria parte de um plano cujo fim era sua reeleição, dado que a Constituição hondurenha a veda explicitamente.

Curioso é pensar, nesse contexto, no porquê dos opositores terem recusado a proposta de conciliação do presidente da Costa Rica, que previa a volta de Zelaya ao poder com a garantia de que ele não se reelegeria. Se foi esse o motivo do golpe, por que não aceitar sair do poder? Isso oferece pistas para que se saiba se o golpe foi realmente um meio ou na verdade um fim.

Segundo, é estranho promover um golpe sob pretexto de defender uma Constituição quando ao mesmo tempo se poda tantas liberdades democráticas tal como o governo de fato de Honduras fez. Se é a República que se quer salvar, é no mínimo um contrassenso adotar medidas que firam as liberdades democráticas indispensáveis à sua manutenção.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Alexandre,
Pelo que sei, a Suprema Corte julgou a validade do ato praticado pelo Congresso, respeitando o devido processo legal. A quartelada teria tirado Zelaya porque ele se recusava a sair, vale dizer, houve apenas o "cumprimento forçado" da ordem judicial. Algo semelhante ao que teria ocorrido no Brasil se o Pres. Collor, por exemplo, se recusasse a sair do Planalto depois do impeachment.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Anton,
Concordo inteiramente com você no que diz respeito ao que o tal "governo" fez depois da saída de Zelaya. Realmente, nada justifica a restrição às liberdades civis.
Mas, se Zelaya queria convocar uma NOVA CONSTITUINTE, o que os militares fizeram não teria sido, em verdade, um "contra-golpe"?
Não acho que se justifique, em hipótese alguma, e se a idéia é mudar a ordem constitucional, que isso seja feito democraticamente. Mas, veja, não estou aqui a defender os militares hondurenhos. Apenas acho que deveria haver maior clareza na discussão, e todos os aspectos dela deveriam ser abordados, de forma não simplista.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caríssimo Raul,
Por qual motivo você considera não ser incoerente defender a anistia para os "crimes políticos" da esquerda mas não para os da direita? Seria pelo motivo que apontei, ou por outro? Ou a coerência residiria em outra coisa?
um grande abraço!

Fabrício Andrade disse...

Professor, suas ponderações são muito interessantes. Quanto a Honduras, parece ter muito sentido o que disse. Se a Constituição não admite reeleição, o comportamento de Zelaya a violou e parece que a sua saída se deu conforme dispõe a Constituição, não obstante seja sempre possível discutir a legitimidade de qualquer texto normativo. No que se refere ao outro tema, seu raciocício é bem razoável. Ambos, militantes e governistas, defendiam posições políticas. Não entendi esse ponto: 'Haveria "desproporcionalidade" do meio, no caso da tortura, que seria inválido mesmo visando a um fim político? Inclino-me a essa segunda forma de pensar, sendo essa a única explicação para anistiar uns, e não outros. Mas é preciso que a questão seja debatida com maior clareza, para que se evitem incoerências.'
O meio tortura seria inválido (desproporcional) mesmo que se pretendesse atingir o fim político? Você perguntou isso, né? Não defendeu que o fim político se deu nos dois casos?
E aí disse que se inclina a entender que isso é que parece justificar dar a anistia a uns e não a outros. Não entendi esse finalzinho. Um abraço.

Raul Nepomuceno [www.ojardim.net] disse...

Hugo,

Assim que enviei meu comentário logo suspeitei que tinha sido lacônico demais, a ponto de não ser compreendido.

Quis dizer que as SUAS conclusões não são incoerentes, mas de rara sensatez. Eu que me expressei mal.

Anônimo disse...

Professor, estamos passando por mais um período de greve dos bancários, como sou advogado da CAIXA, fiquei à meditar esta semana, sobre a atitude do sindicato em relação aos direitos constitucionais que eles violam em detrimento do livre convencimento quando impedem a força, o direito de não fazer greve de uma minoria.
Como dito no “post” quanto à questão da tortura, eram os militares, em passado recente, que usavam de tal instrumento contra os sindicalistas e estudantes que protestavam contra a ditadura em um Estado de exceção. Hoje são os sindicatos que usam a força contra aqueles que querem simplesmente usar o seu direito de ir e vir e de não fazer greve.
Não basta muito para se comprovar tal expediente por parte do sindicato, observe que em frente às agências, o que menos tem são bancários e/ou economiários, na verdade as pessoas que ali se encontram são seguranças contratados pelo sindicato para impedir pela intimidação a entrada dos que não querem fazer greve, dos terceirizados, menores aprendizes e estagiários, como se tais pessoas fossem minimizar os estragos causados pelo movimento paredista.
Entenda que não sou contra o direito de greve nem tampouco das justas reivindicações de cunho salarial, sou contra os métodos utilizados pelo sindicato para impedir pela força os que não querem ou os que nada têm a ver com a greve.
Como bem disse no post, até hoje os sindicatos acham que os delitos que cometem são de cunho estritamente políticos, enquanto que, se algum funcionário e/ou terceirizado recorrer ao judiciário para ver garantido seu direito de ir e vir (interdito proibitório), será taxado de direitista, extremista, truculento, ignorante e outros adjetivos mais, quando na verdade está a garantir seus direitos em um Estado que se diz democrático. Até quando.(Luiz Arthur)

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Luiz Arthur,
Como você demonstra, há mesmo incoerência, independentemente de qualquer juízo quanto à reinvindicação grevista em si.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

A problemática versada no post foi tratada também no migalhas:


Quando eclodiu o "golpe" em Honduras, Migalhas fez como ensinam os advogados experientes : foi olhar no "livrinho" para ver o que ele dizia. Eis que encontramos algumas coisas na Constituição hondurenha que de alguma forma justificavam a deposição do presidente. Com efeito, ao tentar alterar a Constituição para conseguir outro mandato, Zelaya infringiu regra constitucional cuja punição - aplicada pela Suprema Corte - seria a perda imediata do mandato. Foi o que se deu. Quanto ao desterramento, esse, de fato, não encontra preceito na Carta hondurenha. Mas, de resto, não se foge do que a Constituição local diz. Ademais, é preciso não analisar a lei hondurenha como se brasileira fosse. Os costumes, como é bem de ver, são outros. Mas o fato é que a matéria migalheira deu sua polêmica, e fomos taxados por alguns de exegetas de meia tigela. Fazer o quê, chorar não podemos (Migalhas 2.196 - 3/8/09 - clique aqui). A coisa andou, e outros - estes sim doutos - foram estudar o assunto. Foi assim que no último dia 3, na Folha de S.Paulo, o eminente constitucionalista Dalmo de Abreu Dallari explicou que a Constituição hondurenha justificava a deposição de Zelaya. Com efeito, Dallari ensinou que "é juridicamente errado qualificar o governo do presidente em exercício Roberto Micheletti como 'governo de facto', pois ele assumiu o cargo com rigorosa obediência aos preceitos constitucionais". Normalmente em trincheira oposta, Ives Gandra da Silva Martins hoje na Folha, por carta, elogia o posicionamento do mestre Dallari. O tributarista ainda cita ensinamento de Francesco Ferrara, para quem "o pior intérprete é aquele que coloca na lei o que nela não está, por preferência ideológica, ou dela retira o que lá está, por conveniência hermenêutica".