segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Um homem bom


Tem sido explorado, nos últimos tempos, o tema relacionado ao "reexame" de alguns fatos passados, com a preocupação de não os julgar a partir dos valores e da realidade contemporânea. A idéia gadameriana de que vemos tudo a partir de um "horizonte hermenêutico", calcados em nossas "pré-compreensões", revela ser difícil ver os fatos e objetos do passado, com os olhos de hoje, da mesma forma como os seus contemporâneos os viam com os olhos de então.
Isso não implica, evidentemente, justificar tudo o que ocorreu no passado apenas porque os valores e a realidade eram diferentes. Claro que não. Significa apenas não julgar alguém que agiu de determinada forma no passado da mesma forma como se julgaria alguém que fizesse o mesmo hoje.
Exemplificando, Aristóteles defendia (ou aceitava) a escravidão. Isso não é digno de elogio, claro, mas não se pode dizer que seja tão reprovável quanto um filósofo que hoje defendesse a mesma coisa no Brasil.
Talvez se aplique, aqui, a mesma idéia adotada por alguns multiculturalistas menos radicais em relação ao julgamento de uma cultura pela outra. Não que se passe a defender ou aceitar a mutilação feminina, v.g., mas não se pode punir da mesma forma um ocidental psicopata que a pratica por perversidade em uma de suas vítimas, sem qualquer razão cultural, e uma mãe africana que a realiza na própria filha, que ama, por considerar que se trata do "certo" a fazer, em face de sua cultura e de seus valores. Norbert Rouland o explica muito bem, em "Os confins do Direito".
Insisto que não se trata de validar a abominável prática, ou de aceitá-la. De forma alguma. Trata-se apenas de considerar que é diferente adotá-la por imposição de uma cultura, na qual se está inserido desde o nascimento (por se achar que é o certo a fazer), e praticá-la-la por pura crueldade (ou seja, sabendo que é o errado a fazer, mas fazendo exatamente por isso). Nos dois casos a prática é repugnante e deve ser combatida, mas a conduta de quem a adota, no segundo, é digna de maior reprovação.
Dentro dessa ótica, tem-se estudado, hoje em dia, o papel desempenhado por muitas pessoas no âmbito das ditaduras. Horrível e injustificável, por certo, mas isso parece mais claro depois, quando a ditadura passou. Um professor que hoje defenda idéias nazistas estaria a cometer ato tão reprovável quanto o daquele outro professor que defendeu idéias nazistas quando quase todos o faziam, e até como forma de continuar ensinando, melhorar de vida e obter melhores condições para si e para a família? Os dois merecem crítica, por certo, mas seria ela a mesma?
Igual pensamento se aplica a quem se opôs a ela. Falar mal do Führer, ou, para usar exemplos nacionais (e seguramente menos graves), de Vargas ou Médici, hoje, é muito fácil e não faz de ninguém um herói, mas à época...
Bom, seja qual for a opinião que se tenha a respeito desse assunto, acredito que ele é interessante, e merece ser discutido. Tem fascinantes repercussões no âmbito do direito natural (ou dos direitos humanos, como hoje é chamado), da antropologia e da sociologia. Uma boa forma de iniciá-lo, acredito, é assistindo ao filme "Um Homem Bom", de Vicente Amorim, com Viggo Mortensen e Jason Isaacs. O protagonista é professor de literatura, e aos poucos é tomado pelos tentáculos do nacional-socialismo, cujas idéias inicialmente repelia. Pequenas concessões, que isoladas parecem irrelevantes, o levam ao final a um resultado assustador. O filme muitas vezes nos leva a pensar: o que será que, nessa hora, no lugar dele, eu teria feito?
Honestamente, não sei se teria coragem de combater aquele sistema que se expandia e tudo dominava, insurgindo-me frontalmente contra ele e colocando assim em risco inclusive os que estivessem próximos de mim. Teria vontade de combatê-lo, mas talvez não o fizesse. Mas seguramente não aderiria a ele. Preferiria fugir.
Seria fácil falar, hipocritamente, hoje, no conforto de uma democracia, que sim, que combateríamos com coragem e desprendimento o sistema opressor, que recusaríamos promoções importantes e colocaríamos em risco a vida da família e dos amigos em favor de desconhecidos. Mas quem será que o faria mesmo? Eu já disse o que eu acho que faria. Nunca teria certeza senão vivendo uma realidade desse tipo, motivo pelo qual espero ficar sempre com a dúvida. Mas, entre as pessoas que conheço, acho que algumas poucas combateriam, um número bem maior fugiria ou simplesmente se omitiria, mas um número não desprezível aproveitaria na hora as promoções e até entraria na SS, ainda que para isso tivesse de mudar completamente de discurso...
Tudo isso me lembra uma idéia que já comentei rapidamente em post anterior. No combate ao arbítrio é preciso muito cuidado, pois com pequenas concessões irrelevantes se constrói um sistema contra o qual, depois, ninguém mais pode. Robert Alexy, a esse respeito, faz alusão à natureza “gradativa” como um ordenamento se torna arbitrário e injusto, apontando ser nesses momentos que as doutrinas não-positivistas prestam maiores serviços à democracia e aos direitos fundamentais, pois fornecem ao julgador meios de conter o arbítrio quando isso ainda é possível. (ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho y otros ensayos. Tradución de Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa, 1994, p. 55). Essa natureza gradativa pode ser percebida na maior parte das ditaduras, de esquerda ou de direita, tanto faz, na Europa, ou América, ou em qualquer outro lugar. É a ideia subjacente ao belo poema “No caminho com Maiakóvski”, que não é de nenhum Maiakóvski mas sim de Eduardo Alves da Costa: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”

5 comentários:

Antonio Prudente disse...

É verdade Professor! Alguns, como o Sr. disse, podem até profanarem discursos afirmando que fariam isso ou aquilo e determinado momento. Contudo, difícil é nos imaginarmos em uma situação como a que ocorreu no final da década 1930 e início da déc. de 1940, ou em outras épocas nas quais os regimes de exceção predominavam.

Antonio Prudente disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Professor, excelente post, me fez recordar os tempos da ditadura onde meu pai era militar e comunista. Conseguiu, em nome da família, esconder seu lado comunista dos golpistas, mas sempre pregava, com severas advertências de que tal assunto não deveria sair daquela sala, seus ideais aos amigos e familiares. É a dicotomia da necessidade sob o manto da opressão frente ao que se realmente acredita. Como dizia um irmão do saudoso Colégio Cearense: "você só faz justiça quando se coloca no lugar do outro". Parabéns, vou assistir ao filme.

Rosângela Lemos Girão disse...

Prezado Prof. Hugo Segundo,
Julgamos muitas vezes o outro e nos esquecemos de questionar, antes do julgamento, os verdadeiros motivos, as reais circunstâncias que o levaram a tomar essa ou aquela atitude. Não é nada comum, como bem disse o professor, indagarmos: "o que será que , nessa hora, no lugar dele, eu teria feito?". É bem mais fácil recorremos ao nosso conceito ou nosso preconceito...
O filme foi uma ótima indicação, enseja boas discursões!!

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

É verdade, Rosângela. A propósito, muito bom manter contato com você por aqui.
Espero que goste do filme.
um abraço!