As sociedades humanas, separadas no tempo e no espaço, adotam padrões valorativos, morais e jurídicos diferentes. Distinções às vezes não muito relevantes, como pequenas mudanças na forma de cumprimentar ou de expressar gratidão, e outras vezes marcantes, capazes de escandalizar os que com elas se deparam. Em algumas comunidades indígenas, por exemplo, crianças são eventualmente abandonadas na mata para morrer, asfixiadas, envenenadas ou enterradas vivas por serem portadoras de deficiências físicas ou problemas congênitos. Para alguém nascido e criado no âmbito da cultura ocidental, trata-se de comportamento extremamente cruel e repugnante. Não obstante, entre essas sociedades classificadas genericamente como ocidentais, as mesmas que consideram absurdo o sacrifício da criança recém-nascida, há pessoas que jogam comida no lixo, todos os dias, em residências e restaurantes, enquanto bem próximo outras passam fome. Esse fato – que para muitos dos que o praticam é normal – se avaliado por alguém daquela tribo indígena seria considerado um contrassenso difícil de ser entendido e aceito, pior que o sacrifício da criança que, muitas vezes, no juízo da tribo, não seria mesmo apta à sobrevivência.
Tais diferenças culturais tornam explícito um dilema enfrentado pela teoria dos direitos humanos, tido por Boaventura de Sousa Santos como um dos “debates mais acesos” (1) em relação ao tema: o da universalização destes. Com efeito, poder-se-ia indagar: exigir que certos direitos sejam consagrados por todos os povos não consiste, na verdade, em mera imposição de determinado padrão cultural – dito ocidental, de origem europeia – sobre outros, preconceituosamente tidos como inferiores só porque diferentes dele? Por outro lado, pode-se objetar: em nome do respeito à diversidade cultural, deve-se aceitar e justificar toda sorte de condutas verificadas no âmbito de uma sociedade?
A solução às questões anteriores tem sido apontada como consistindo no seguinte reconhecimento: o fato de uma cultura não ser melhor que outra não significa que todas, inclusive a genérica e impropriamente chamada de “ocidental”, sejam perfeitas e dispensem qualquer correção. Isso é verdade, mas apenas transfere ou afasta o problema, sem resolvê-lo: correção a partir de qual critério? Como saber o que está errado em cada cultura, e o que seria o correto? Para julgar ordens jurídicas diversas, de povos de culturas díspares, não seria necessária a existência de um metacritério, tal como um padrão universal de justiça, à luz do qual todos pudessem ser cotejados? Caso afirmativo, quem o determinaria?
Esses questionamentos – de relevância e atualidade indiscutíveis, majoradas na medida em que aumenta a interação entre os povos propiciada pelo incremento no processo de globalização, – parecem remeter à clássica discussão entre partidários do jusnaturalismo e do positivismo jurídico. Apesar disso, nas últimas décadas, não tem sido rara, entre os que escrevem sobre direito constitucional, especialmente sobre direitos fundamentais, a afirmação de que as várias correntes de pensamento jurídico classificadas como subdivisões ora do positivismo jurídico, ora do jusnaturalismo, estariam superadas. Desses dois grupos antitéticos, em que até então se dividiria o pensamento jurídico mundial, teria surgido, numa síntese dialética, o pós-positivismo, termo que não designa com muita clareza do que se está a tratar. Não indica no que consistiria essa nova corrente ou linha de pensamento jusfilosófico, eis que não lhe aponta características. A rigor, explicita apenas, com a preposição “pós”, o cuidar-se de algo surgido depois de um período de predomínio do positivismo. Não diz o que a corrente é, mas apenas o que ela supostamente já não é.
Quanto à razão de ser da superação dialética do jusnaturalismo e do positivismo jurídico, os que cuidam dessa nova forma de pensamento jusfilosófico costumam apontar, para justificá-la, a positivação de determinados princípios e a teorização em torno de sua aplicação, aspectos que teriam tornado desnecessária e ultrapassada a discussão entre os partidários do direito natural e os do positivismo jurídico. Pouco se esclarece, porém, a respeito de como jusnaturalismo e juspositivismo teriam sido superados pela positivação de normas com determinados conteúdo e estrutura. Talvez se ignore que a discussão entre tais correntes não se desenvolvia tomando como parâmetro um determinado ordenamento jurídico, de conteúdo considerado satisfatório; vinha sendo travada precisamente em face de ordenamentos – reais ou imaginários – injustos e iníquos. Afinal, a grande pergunta, central nos debates entre os partidários das várias subdivisões de uma e de outra corrente, era: um conjunto de normas flagrantemente injusto pode ser considerado Direito? Caso afirmativo, como fazer esse julgamento, e quais as suas consequências? Qual o critério de justiça – se é que existe um – a ser adotado?
Tais perguntas não são respondidas pelo fato de, atualmente, existirem ordenamentos considerados justos por quem os examina, nos quais se positivam normas que determinam a promoção e a proteção da dignidade humana (2). Tampouco os estudos ditos pós-positivistas costumam oferecer critérios para o enfrentamento delas. No mais das vezes, cuidam do que pode ser considerado um importante aprimoramento metodológico em torno de como interpretar e aplicar o direito positivo, motivo pelo qual talvez pudessem ser intitulados de neo- e não de pós-positivistas.
Não obstante, as ideias subjacentes ao pós-positivismo têm sido afirmadas e repetidas, com ressonância cada vez maior, sem que se reflita sobre a sua procedência ou sua consistência. E quanto mais são repetidas, menos se submetem à crítica, assumindo a veracidade inerente aos conceitos que se tornam óbvios pela intensa repetição (3). Por essa razão, torna-se necessária uma análise um pouco mais detida em torno dos pressupostos dessa corrente de pensamento jusfilosófico e, especialmente, do que deve caracterizar e fundamentar um ordenamento jurídico.
Neste trabalho, buscam-se responder as perguntas feitas três parágrafos acima, relativas ao fundamento do ordenamento jurídico, de forma a verificar se o pós-positivismo realmente implicou a superação dialética entre jusnaturalistas e juspositivistas. Reformulando-as: se determinado ordenamento consagrar normas injustas, como será seu tratamento por juristas, intérpretes e aplicadores pós-positivistas? Se, em tempo ou lugar diverso do nosso, existir ordenamento flagrantemente injusto, poderá ele, ainda assim, ser chamado de Direito? Qual o critério de justiça para fazer esse julgamento?
Com isso, em torno dessa questão central, ligada ao fundamento do ordenamento jurídico, outra, dela decorrente, será inevitavelmente examinada, a saber, a relacionada ao multiculturalismo e ao possível antagonismo existente entre a preservação de várias e diferentes culturas e a universalização dos direitos humanos.
Para enfrentar tais questões, cuidar-se-á, primeiro, em capítulo destinado à colocação do problema e de suas premissas, do que se entende por fundamento, das relações possíveis entre Direito e Estado, e do papel deste último em relação à identificação e à fundamentação do primeiro. Em seguida, a fim de se verificar a possibilidade de tal síntese dialética entre jusnaturalismo e positivismo, tratar-se-á das ideias centrais que inspiram as formas de pensamento jurídico que buscam fundamento metafísico para o ordenamento jurídico, notadamente as correntes jusnaturalistas. Depois, capítulo subsequente, proceder-se-á ao mesmo exame, em relação às correntes que negam esse fundamento metafísico, ligadas, por isso, ao positivismo jurídico.
No quarto capítulo, tendo já efetuado uma síntese do conceito e do fundamento do direito para as principais correntes metafísicas e antimetafísicas, proceder-se-á a uma análise das características do pós-positivismo, tal como o descrevem alguns de seus representantes. Far-se-á, ainda, uma aferição relativa à possibilidade dessa síntese e às reais limitações do pós-positivismo na atualidade. Dessas divergências, aqui serão examinadas as que dizem respeito aos fundamentos do ordenamento jurídico, oportunidade na qual será possível constatar se realmente houve a apontada superação dialética. Responder-se-ão, neste ponto, as questões ligadas à existência de um fundamento suprapositivo para o ordenamento jurídico, à universalização desse critério e às relações dessa universalização com o respeito às várias manifestações culturais existentes no planeta.
No quinto capítulo, procurar-se-á, partindo de algumas características da criatura humana, de um adequado conceito do que seja metafísica e do conceito contemporâneo de ciência, contribuir para com o pensamento que se diz pós-positivista, para lhe suprir, na medida do possível, algumas deficiências. Pretende-se, nessa parte final, responder às questões propostas inicialmente, notadamente a central: o que caracteriza o Direito enquanto tal? O que permite julgar um conjunto de regras de conduta, diferenciando, por exemplo, o ordenamento jurídico estatal das regras que disciplinam uma organização criminosa? Lembrando que esse critério de julgamento jamais será inteiramente atendido por um ordenamento jurídico positivo, que dele apenas infinitamente se pode aproximar, procurar-se-á, no sexto e último capítulo, apontar soluções concretas para que a ordem jurídica brasileira se torne mais justa, ou mais adequada ou próxima dos fundamentos apontados neste trabalho.
Fez-se esse exame tendo em mente três premissas de ordem metodológica. A primeira foi a de não ter o propósito de fazer crítica agressiva, predestinada a encontrar defeitos, mas tampouco o aplauso irrefletido, comprometido a só destacar virtudes. A ideia é, como preconiza Boaventura de Sousa Santos, “afirmar sem ser cúmplice, criticar sem desertar.” (4)
A segunda foi a despreocupação em identificar ou alinhar as conclusões deste trabalho às ideias que compõem a linha de pensamento deste ou daquele autor. Não se teve, pelo menos conscientemente, o deliberado propósito de adequar ou conformar o que se dizia aos moldes de escola ou corrente filosófica específica, o que, porém, não significa que não se tenha sofrido a influência de algumas delas, ou que essa conformação não tenha ocorrido, nem que não se tenha partido, basicamente, do pensamento de certos autores, cujas ideias foram, aliás, fartamente referidas e endossadas, naquilo em que se mostraram pertinentes e não contraditórias com o que se defende aqui. Afinal, a realidade à qual se reportam – e à qual se reporta esta tese – deve ser a mesma. Por isso, entenda-se: o fato de se fazer alusão ao pensamento de diversos autores relativamente a aspectos da questão aqui versada, aderindo-se a eles nestes aspectos, não significa que se esteja a endossar todas as demais ideias das pessoas citadas, que, às vezes, vistas no seu todo, são até antagônicas. (5)
E, finalmente, a terceira foi a de não apenas descrever a realidade, descrição que é tão necessária quanto insuficiente quando se faz ciência. Em verdade, objetiva-se, a partir de uma descrição da realidade e de julgamentos feitos em face dela, prescrever como ela deve ser, para melhorá-la, seguindo a recomendação de que “nos tempos que correm o importante é não reduzir a realidade apenas ao que existe.” (6) A necessidade de que uma teoria científica não apenas descreva a realidade, mas também sirva ao seu aprimoramento, será demonstrada na parte final deste trabalho.
NOTAS
(1) SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 3-46, p. 13.
(2) A questão está, na verdade, na fundamentação dos direitos humanos, problema que – nas palavras de Luhmann – “é uma herança que a decadência do antigo Direito Natural europeu nos deixou.” (LUHMANN, Niklas. O paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento. Tradução de Paulo Antônio de Menezes Albuquerque e Ricardo Henrique Arruda de Paula. Revista Themis, Fortaleza, v 3, n. 1, p. 153-161, 2000, p. 153). Há quem diga, contudo, que a fundamentação dos direitos humanos reside precisamente no Direito Natural (CHORÃO, Mário Bigotte. Introdução ao direito – o conceito de direito. Coimbra: Almedina, 1994, p. 157), sendo essa controvérsia – em torno de sua fundamentação – uma demonstração eloquente de que o antagonismo entre jusnaturalistas e positivistas não está tão superado quanto se preconiza.
(3) Talvez se lhes aplique a observação de Becker, crítico mordaz das doutrinas calcadas em fundamentos “óbvios” que por isso mesmo deixam de ser questionados. Diz ele: “Certas teorias mostram-se facilmente inteligíveis e simples precisamente porque são edificadas sobre apenas um fragmento das bases integrais; e, quando destruídas pela análise, resta sempre um truncamento de coluna indestrutível (aquele fragmento) a lançar entre as ruínas a sua sombra enigmática de meia-verdade.” BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3.ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 14.
(4) SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1996, p. 105.
(5) Não se está dizendo, cumpre insistir, que as ideias de alguns autores em particular não tenham sido importantes e que não tenham sido adotadas, em linhas gerais, aqui. Seria impossível, para qualquer pessoa, escrever um trabalho sem partir de ideias de outros. Leitura deste texto revelará, claramente, a subscrição, em larga medida, de aspectos do pensamento de Dworkin (relativamente ao Direito Natural e às ideias de liberdade e igualdade), de Habermas (quando à relação entre as esferas pública e privada e ao papel do consenso na legitimação da ordem jurídica), de Amartya Sen e J. Rawls (quanto ao conceito de liberdade e sua relação com a igualdade), e de Ernst Cassirer (quando à natureza humana). O que não se pretendeu foi escolher um desses autores para então seguir quase todas as suas ideias, discutindo-as em vez de discutir a realidade em torno da qual foram construídas, e ao final justificar longamente um ou outro ponto específico nos quais não fossem adotadas.
(6) SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.), op. cit., 2008. p. 3-46, p. 45.
2 comentários:
Hugo, parabéns - e obrigado por ter exposto o texto original, sem tuítes!
Obrigado, Vitor.
É, realmente fica melhor de ler assim, sem tanta economia de caracteres.
Mas lembre-se que os tuítes resumem toda a tese, e o texto que postei é só a introdução...
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