terça-feira, 12 de abril de 2011

Tributação Indireta: Incoerências e Contradições

Estou com um livro novo no prelo. Será publicado pela Malheiros, nos próximos meses, acredito. O título será o que abre este post.

Eis um pedacinho do que constará da sua introdução:
1.1. Não é de hoje que os tributos conhecidos como indiretos suscitam questões e em torno delas dividem os estudiosos do Direito Tributário, da Economia e da Ciência das Finanças. Apesar disso, pode-se dizer que o tema ainda é carente de atenção, sobretudo no que diz respeito ao tratamento que lhe é dado no Brasil. Na doutrina, quando não é examinado de forma superficial e simplista, é objeto de exame que, conquanto profundo, dá pouca atenção a alguns dispositivos da Constituição e ao que têm decidido os Tribunais . Por sua vez, ao ser disciplinado na legislação e pela jurisprudência, recebe tratamento fragmentado e, o que é pior, desprovido de coerência.
1.2. Há autores que rejeitam a classificação dos tributos entre diretos e indiretos, afirmando-a não-científica, meramente econômica ou simplesmente equivocada, não podendo ser levada em consideração para fins jurídicos em nenhuma hipótese. Nem sempre há suficiente clareza, contudo, quanto ao critério que utilizam para distinguir o que é científico do que não é; ou o que é econômico do que é jurídico.
1.3. De rigor, não se pode dizer que a classificação de tributos em diretos e indiretos seja exclusivamente econômica, pois é justamente no estudo da Economia que se verifica a possibilidade de todos os tributos terem, a depender das circunstâncias, seu ônus transferido a terceiro, o qual não necessariamente está situado à frente na cadeia produtiva. Isso significa dizer que, economicamente, nem sempre o ônus do tributo recai sobre o consumidor; quer dizer ainda que isso não ocorre em relação a um tipo específico de tributo, o que, antes de justificar, desautoriza a pretendida classificação (todos os tributos poderiam ser ou não indiretos, a depender das circunstâncias). Mas pode ser que a classificação, conquanto não seja “econômica”, leve em consideração um efeito econômico da tributação, que poderia ter relevância jurídica quanto a certos tributos, por ser neles mais perceptível. É isso, esse reconhecimento de efeitos jurídicos, que os críticos da classificação repelem.
1.4. Em oposição a estes, que rejeitam a classificação, há os que a descrevem e acolhem com grande simplicidade. Embora cada um à sua maneira, dela cuidam como se fosse muito fácil identificar os tributos que se encaixam na classe dos indiretos, separando-os daqueles tidos (também de modo surpreendentemente pacífico) como diretos, sendo óbvios e perfeitamente justificáveis, por igual, os efeitos jurídicos dessa diferenciação, os quais, porém, nem sempre são tratados com clareza e coerência
1.5. Conquanto não seja tão simples e fácil entendê-la, o certo é que tampouco se pode ignorar a classificação, até porque existem tributos que aparentemente são graduados em função da capacidade contributiva (ou de outra característica) indiretamente manifestada por alguém diverso daquele legalmente definido como sujeito passivo da exação. Poder-se-ia dizer, aliás, que há, no ordenamento jurídico brasileiro, disposições que fazem alusão à circunstância de certos tributos onerarem produtos e serviços, sendo indiretamente suportados por quem os consome. É o caso do art. 150, § 5.º, da CF/88, segundo o qual “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.” A grande questão, nesse contexto, talvez seja não a de saber se a classificação existe e deve ser considerada para fins jurídicos, mas sim quais conseqüências jurídicas podem ser dela validamente extraídas, e quais não podem.
1.6. Aliás, os principais problemas surgidos em torno dos tributos conhecidos como indiretos decorrem precisamente da incoerência com que o legislador, parte da doutrina e a jurisprudência extraem conseqüências jurídicas dessa classificação. É incoerente e contraditória a forma como os mais diversos aspectos da tributação indireta são tratados pela ordem jurídica brasileira.
1.7. Para exemplificar as apontadas contradição e incoerência, basta perceber que, em situações distintas, a ordem jurídica (tal como interpretada pela jurisprudência) considera, em relação aos tributos que usualmente se classificam como indiretos (v.g., o ICMS), que o contribuinte a ser levado em consideração é ora o de direito, ora o de fato. Quando o contribuinte de direito pleiteia a restituição do tributo pago indevidamente, por exemplo, exige-se a prova de que não houve o repasse do ônus representado pelo tributo ao contribuinte de fato (cuja existência, para este efeito, é levada em consideração), sob pena de indeferimento da restituição. Mas, contraditoriamente, quando o contribuinte de direito é vítima da inadimplência do comprador, dito contribuinte de fato, diz-se que esta não lhe exime de pagar o tributo, eis que ele, o vendedor, é o “verdadeiro” contribuinte, não havendo qualquer relação jurídica entre o Estado e o contribuinte de fato (cuja existência, veja-se, é agora tida como juridicamente irrelevante). O mesmo se dá quanto o contribuinte de fato pleiteia a restituição do indébito tributário.
1.8. Mais exemplos não são aqui necessários – serão, ao seu tempo, examinados neste trabalho – para demonstrar que, conforme a circunstância, considera-se ora de suma importância, ora inteiramente irrelevante, para fins jurídicos (vale dizer, para fins de reconhecimento da existência de direitos subjetivos e deveres jurídicos), a existência de um contribuinte de fato, que supostamente arca com o ônus de um tributo legalmente devido por um contribuinte de direito. Nesse contexto, reconheça-se, talvez seja difícil determinar um regime jurídico adequado para o tributo indireto, mas isso não traz dificuldade para se apontarem as tais contradições, nem para que se conclua serem elas inaceitáveis. Independentemente de como se defina o tributo indireto e de como se entenda seu regime jurídico, suas características deverão ser levadas em consideração de forma coerente. E, o mais importante: não se pode, no trato dado à questão, chegar-se a conclusão que crie situação incompatível com o ordenamento jurídico, notadamente com suas normas situadas hierarquicamente acima daquelas que supostamente cuidam dos efeitos jurídicos que decorrem da natureza “indireta” deste ou daquele tributo.
1.9. Nessa ordem de idéias, pretende-se examinar, neste estudo, o que se deve considerar um tributo indireto, e qual seu regime jurídico à luz do ordenamento brasileiro. Mas, especialmente, almeja-se demonstrar as já mencionadas contradição e incoerência com que o legislador e a jurisprudência tratam o tema no Brasil. Se não se lograr, aqui, cumprir o primeiro propósito do trabalho, o esforço ainda assim terá valido a pena se, pelo menos, se conseguirem despertar os estudiosos da tributação no país para o segundo, relativo aos defeitos da forma como o tema vem sendo tratado. Afinal, na ciência, muitas vezes as perguntas que alguém suscita são mais importantes que as respostas que se lhes dão.

Uma das mais gritantes contradições, a propósito, vinha sendo perpetrada pela jurisprudência do STJ, em matéria de repetição do indébito. O tema, aliás, foi mencionado no post anterior, conquanto o objeto central, ali, fosse outro.
Quando o contribuinte dito "de direito" pleiteia a restituição do indébito, em relação, p.ex., ao ICMS, diz-se que ele não tem direito a ela porque quem teria pago o tributo, "na verdade", teria sido o contribuinte de fato, consumidor final. Mas quando esse último, o consumidor final, é quem pleiteia a restituição do indébito, diz-se que "na verdade" quem paga o tributo é o contribuinte de direito, para com isso negar-se também a legitimidade ad causam ao consumidor.
Cria-se, com isso, a figura, na feliz comparação do Prof. Ives Gandra da Silva Martins, de um "contribuinte castrado", que aparece só para atrapalhar a vida do contribuinte de direito, mas que, em nome próprio, nada pode fazer. Fala-se em um "contribuinte de fato" apenas para tirar do contribuinte (dito "de direito") os bônus referentes à condição de sujeito passivo, sem que se lhe retirem, por igual, os ônus. Os direitos inerentes a qualquer devedor, a qualquer sujeito passivo, são transferidos do contribuinte "de direito" para o "de fato", mas evaporam no meio do caminho, e terminam não sendo exercitáveis por nenhum dos dois, em evidente e notória ofensa ao art. 5.º, XXXV, da CF/88.
O entendimento do STJ, que vinha sendo firmado em casos em que consumidores de energia elétrica questionavam o ICMS incidente sobre ela, criou, ainda, uma situação muito problemática: o que fazer com o atrasado?
Sim, muitos juízes, e desembargadores, proferiram liminares, sentenças e acórdãos desobrigando consumidores de energia ao pagamento do ICMS sobre determinadas parcelas (v.g., sobre a "demanda contratada"), e, agora que o STJ deu uma reviravolta em sua jurisprudência firmada (e, de novo, ao tentar consolidá-la na sistemática dos repetitivos), negando legitimidade ativa aos consumidores, o que há de ser feito com o que DEIXOU DE SER PAGO?
Caso o Estado cobre das concessionárias, estas dirão que não são obrigadas a pagar, pois foram proibidas pelo Judiciário de reter as quantias dos consumidores, tal como o contrato de concessão e a própria legislação inerente ao setor elétrico (e aos serviços públicos em geral) o permite. Caso cobre dos consumidores, criar-se-á enorme paradoxo: afinal, não se lhes negou legitimidade ante ao argumento de que não são eles os devedores? Eles não são devedores quando se trata de ter o direito discutir o que lhes é cobrado, mas são para serem forçados a pagar?! Seria o caso de culpar juízes e desembargadores? Mas estes apenas vinham respeitando a jurisprudência!

Bom, foi justamente nesse cenário que o STF proferiu mais um de seus julgamentos "anti-STJ", por enquanto ainda em sede monocrática. Mas, nesse caso, reconheça-se, o STF agiu muito, mas muito bem:

Ministro suspende decisão sobre incidência de ICMS em energia elétrica

O ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar na Ação Cautelar (AC) 2827, para suspender decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou que apenas os contribuintes de direito* têm legitimidade para cobrar judicialmente a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre demanda contratada de energia elétrica. A Federação das Indústrias de Mato Grosso (FIEMT) ajuizou ação, na primeira instância, para ver garantido, às suas associadas, o direito ao pagamento do ICMS proporcionalmente à energia elétrica efetivamente consumida, porém fornecida mediante contrato de reserva de demanda ou potência.

Diante do sucesso da ação, o Estado do Mato Grosso recorreu da decisão ao Superior Tribunal de Justiça, que lhe deu ganho de causa. Para o STJ, nas operações internas com energia elétrica, o contribuinte é quem fornece ou promove sua circulação. “Assim, ainda que se discuta a condição da concessionária, é certo que não é possível enquadrar o consumidor final na descrição legal de contribuinte de direito”, disse o STJ, entendendo que a FIEMT não teria legitimidade para mover a ação.

No STF, o deferimento da medida liminar atribui efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário (RE) 636016, no qual se discute se as empresas adquirentes da energia elétrica podem pleitear a tributação proporcional ou, em sentido diverso, apenas as geradoras, distribuidoras e concessionárias de energia elétrica podem demandar em juízo tal direito.

Ao conceder a liminar para suspender a decisão do STJ, o ministro lembrou que o debate sobre a distinção entre “contribuinte de direito” e “contribuinte de fato” é envolta em intermináveis controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. Além disso, como a decisão favorável à FIEMT vigorou por muito tempo, desde agosto de 2004, o ministro determinou a suspensão da decisão do STJ até o julgamento final da Corte sobre a matéria.

MB/AD

*Contribuinte de direito é a pessoa física ou jurídica que tem relação pessoal e direta com fato gerador do tributo (artigo 121, parágrafo único, I, do Código Tributário Nacional).

Processos relacionados
AC 2827
RE 636016

A questão ainda precisa ser melhor esclarecida, e eu espero que, com meu modestíssimo livro, contribua para isso.

4 comentários:

Álisson disse...

Professor, permita-me estrear os comentários deste post com impressões pessoais de quem pouco leu a respeito desse tema (especialmente para fazer o trabalho submetido ao CONPEDI). Foram-me bastante impactantes as opiniões de Alfredo Augusto Becker, na Teoria Geral, e de Klaus Tipke e Douglas Yamashita, na Justiça Fiscal.

Do que pude apreender, tenho hoje a impressão de que a técnica da tributação dita indireta é uma das (muitas) técnicas promotoras de obscuridade tributária de que se vale o Estado brasileiro. Viola-se a transparência fiscal - e, em última instância, o princípio democrático e a justiça fiscal - e a capacidade contributiva - explicar adequadamente tal violação demandaria mais linhas, mas, em suma, tributa-se algo que não tem capacidade para atingir o que de fato teria - em prol de uma forma mais eficiente de controle e arrecadação pela Administração Fazendária (será que seria só por isso? - creio que este seja o argumento). Para além disso, mascara uma verdadeira tributação sobre o consumo e promove a anestesia fiscal do cidadão que, de fato e de direito, paga o tributo.

Se, mesmo assim, reconhecermos a necessidade de "respeitar" em termos jurídico-formais a tributação indireta, o STJ presta um desserviço à República ao envolver juridicamente o "contribuinte de fato", já que ele não seria "de direito". Nos limites propostos, não caberia outra solução senão reconhecer a legitimidade e o interesse do contribuinte "de direito" de reaver o que ele pagou "de direito", independentemente da repercussão financeira.

Mais especificamente em relação às concessionárias de serviço público, no caso, de energia elétrica, há um fator qualificador da questão. A existência de uma agência reguladora do serviço público acarreta inexoravelmente o controle das despesas que poderiam ser repassadas para o consumidor e, nesse sentido, é um dever da agência, por imperativo de interesse público, impedir que uma tributação indevida seja repassada, reconhecendo aí uma ineficiência da empresa no tocante a seu planejamento tributário.

Bom, são rápidas linhas sobre o tema, para abrir (ou fechar) algum debate. Estou ansioso pela leitura da obra, torcendo pelo seu sucesso.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro Álisson,
É mais ou menos isso o que defendo no texto do livro, que será bem curto e despretensioso. Meu propósito não é aprofundar a temática da tributação indireta em si (que suscita inúmeros questionamentos), mas só o de chamar a atenção para a incoerência com que é tratada no Brasil.
E, ao final do livro, sugiro duas soluções:
1) definir de vez o consumidor como contribuinte, tal como o sale tax americano, tornando explícita e jurídica a repercussão (o que resolveria inclusive o problema do art. 150, § 5.º);
2)considerar que o contribuinte é o vendedor, e extrair todas as consequencias jurídicas daí decorrentes, vale dizer, reconhecer ao vendedor todos os direitos e obrigações relativos a quem é parte da relação jurídica tributária.
A primeira solução dependeria de emenda constitucional.

Carlos Braga disse...

Professor, como de praxe, seu texto foi fantástico. Com certeza serei mais um a adquirir seu livro.
Quando me deparei com a decisão do stj que negou a legitimidade do consumidor de energia elétrica, negando a relevância jurídica do "contribuinte de fato" nesse caso, fiquei indignado e decepcionado com tamanha incoerência da corte da cidadania.
Sem duvida melhor expressão não há para traduzir a questão da restituição dos tributos tidos como indiretos (v.g. ICMS e IPI), senão aquele utilizada pelo Prof. Ives: "Contribuinte Castrado".
Refletindo comigo mesmo, conclui que na prática, se persistir essa incoerência circunstancial (sempre para favorecer o FISCO), no Brasil, inexiste, por ser inviável, a restituição de tributos tidos por indireto, seja porque o contribuinte de direito jamais deixará de repassar o ônus do tributo pensando em questioná-lo posteriormente, seja porque na grande maioria dos casos (pode ter certeza que em 99% dos casos) é inviável receber a autorização da terceiro (contribuinte de fato) o que arcou com o ônus do tributo (art. 166 do CTN).
Enfim, obrigado por sempre nos propiciar textos jurídicos de bastante qualidade.
Saudações de um jovem advogado de Natal-RN. e amante do Direito Tributário.
Att:

Carlos Braga
Ps: escrito do celular

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Obrigado por seu comentário, Carlos.