Quando eu era criança, não gostava das aulas de português. Legal era ciências. Português era chato.
Nesses dias, contudo (aliás, nessas noites), estive a colocar minha filha para dormir lendo para ela "A gramática da Emília", de Monteiro Lobato. Ou, mais precisamente, "Emília no País da Gramática", e tive reforçada uma idéia a respeito da qual já vinha pensando, de forma algo intuitiva, faz um bom tempo: a gramática pode ser muito interessante. Depende só da abordagem. É um sistema de regras de conduta, tal como o Direito. A maior diferença está nas sanções, e na abrangência das condutas regradas. E se pode estudar esse sistema decorando-o, ou entendendo sua razão de ser.
Essa introdução, contudo, é feita apenas para justificar o post que se segue, que pode parecer estranho, num blog sobre direito. Mas o leitor que não tenha sido atirado aqui pelo google agora, e que já viu postagens passadas, sabe que é mesmo essa misturada: direito tributário, ensino jurídico, filosofia, filosofia do direito, aeromodelismo, informática... E, agora, português. Ou, pelo menos, comportamento em relação a ele.
***
Tenho observado certa difusão, especialmente entre pessoas com alguma escolaridade, do uso do verbo "chamar" de forma inteiramente diferente.
Como se sabe, tal verbo pode ser usado para designar o pedido de atenção, ou a convocação, que uma pessoa faz a outra: - Maria chamou João para conversar.
Pode, também, de outra forma, ser usado para designar o nome que se atribui a uma pessoa ou coisa: - O Juiz se chama Nicolau. O garçom se chama Juvenal. A aeromoça se chama Ellen. A atriz se chama Julia Paes.
Mas se está popularizando, como disse, o uso da palavra nesse segundo sentido, só que sem o "se". Assim:
- O filme "chama" Matrix.
- O marido dela "chama" Bernardo.
- O livro "chama" Curso de Direitos Fundamentais.
- Chicão ganhou uma cachorrinha que "chama" Dulce.
Acho - é só um palpite - que esse hábito já tem difusão, há algum tempo, na região sudeste. Não sei se só em Minas Gerais e em São Paulo, ou no Rio também. Ouvindo o "pânico", ontem, quando ia buscar meus filhos no colégio, percebi diversos "chama". O marido dela "chama" fulano. A mãe dela "chama" fulana. Ela trabalhou numa novela que "chamava" não sei o quê.
E o que tem acontecido, nas pessoas com alguma instrução às quais me reportei, todas aqui de Fortaleza, é que, vendo isso (aliás, ouvindo isso), começam a achar que, porque em São Paulo se fala assim, essa é a maneira certa de se falar.
Sei que a língua evolui, e que isso se dá pela ação dos fatos, pela evolução da maneira como as pessoas de fato se comunicam, e não pelo trabalho dos gramáticos. Do contrário, ainda falaríamos latim. Mas não é por isso, convenhamos, que se deve avacalhar, chutar o balde e disparar:
- Vou procurar um livro que "chama" o vencedor está só "para mim" ler...
O "se", no caso, é necessário, e não se trata de preciosismo. Dizer que "O marido dela 'chama' João" parece significar que o marido dela - que tem outro nome - está gritando: João! João!
Finalmente, só uma retificação. O título do post diz que as coisas não chamam. Realmente, elas não chamam, em regra. Elas "se chamam" livro, cadeira, monitor, teclado, avião... Mas, reconheça-se, algumas delas chamam sim. Um caranguejo na praia chama uma cerveja; uma noite na serra chama um bom vinho; um cafezinho depois do almoço, para os fumantes, chama um cigarro; uma boa ressaca chama um tylenol...
Um comentário:
É como naquela anedota, o amigo pergunta ao outro:
- Como é que vocês chamam mosca lá na sua terra cumpadi?
- Ué. Mosca.
- Vixi. Lá na minha terra num é assim naum. Num precisa nem chamá que elas vem sozinha.
Postar um comentário