Como o Felipe Braga sugeriu, em comentário ao post anterior, que eu examinasse a Súmula n.º 239/STF, resolvi postar aqui algumas notas sobre ela. Não são longas, até porque a proposta do livro é ser um tanto sintético, mas acho que permitem ter idéia da controvérsia em torno dela estabelecida:
Súmula n.º 239/STF - “Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores.”
- Aprovada na sessão plenária de 13/12/1963
COMENTÁRIOS ———————————————————————————
A presente súmula parece sugerir, em sua literalidade, que em matéria tributária uma decisão judicial que transite em julgado não impede a rediscussão da mesma questão, desde que relativamente a exercícios financeiros seguintes. Nesse inusitado e apenas aparente sentido, se uma instituição religiosa obtivesse sentença declarando seu direito à imunidade tributária relativamente a imóvel usado como estacionamento de uma igreja, essa decisão, mesmo após seu trânsito em julgado, não impediria o Município de insistir na cobrança anualmente. Seria necessária a propositura de uma ação judicial todos os anos.
Não é esse, evidentemente, o sentido da súmula. E nem poderia sê-lo, sob pena de em matéria tributária, quando proferida em face da Fazenda Pública, a sentença passada em julgado ter, injustificadamente, efeitos diversos (e demasiadamente mais restritos) daqueles que lhe são próprios em qualquer outra situação, perante quaisquer outras partes.
Torna-se indispensável, no caso, interpretá-la à luz dos precedentes que lhe deram origem. Esses precedentes foram proferidos em situações nas quais se discutiam os efeitos de sentenças proferidas em sede de embargos à execução fiscal, relativamente ao IPTU, que haviam decretado tão somente a invalidade daquela cobrança específica do imposto.
Na verdade, a decisão que declara a invalidade da cobrança de um imposto num exercício realmente não faz coisa julgada em relação aos posteriores, caso:
a) tenha se fundamentado em violação ao princípio da anterioridade, pois nessa situação o tributo realmente poderá ser exigido – validamente – a partir do exercício seguinte, de acordo com a própria sentença; ou
b) tenha a decisão afirmado a invalidade de uma exigência específica, em virtude de vício presente em sua constituição (v.g. um auto de infração considerado inválido porque amparado em meras presunções), pois nesse caso realmente não produzirá efeitos sobre fatos futuros.
Fora desses dois casos, nos quais a súmula tem pertinência, sua invocação é equivocada, e implicaria amesquinhar a eficácia das sentenças com conteúdo declaratório, tanto das proferidas em ação declaratória, como das prolatadas no âmbito de mandado de segurança preventivo, sobretudo no âmbito das chamadas “relações jurídicas continuativas”. O próprio STF reconheceu isso, por diversas vezes (v.g., ERE 83.225, RTJ 92/707), sendo esse o entendimento também do STJ:
“(...) A Súmula 239/STF, segundo a qual 'decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício, não faz coisa julgada em relação aos posteriores', aplica-se tão-somente no plano do direito tributário formal porque são independentes os lançamentos em cada exercício financeiro. Não se aplica, entretanto, se a decisão tratou da relação de direito material, declarando a inexistência de relação jurídico-tributária. (…) A coisa julgada afastando a cobrança do tributo produz efeitos até que sobrevenha legislação a estabelecer nova relação jurídico-tributária.” (STJ, 2.ª T, REsp 731.250/PE, Rel. Min. Eliana Calmon, j. em 17.4.2007, DJ de 30.04.2007, p. 301.)
Exemplificando, imagine-se que um contribuinte sofre lançamento de IRPF no qual o agente fiscal afirma que determinadas despesas não foram comprovadas. O contribuinte é executado, embarga, e demonstra a improcedência do lançamento (v.g., comprovando a ocorrência das tais despesas). A decisão acolhe seus pedidos, e transita em julgado. O que a Súmula 239/STF significa, nesse contexto, é que essa decisão, que afirmou indevido esse lançamento específico de IRPF, não se aplica a outras cobranças do mesmo imposto, havidas em outros momentos. Entretanto - e é isso que diz a decisão - se o contribuinte ajuíza ação pedindo a declaração de seu direito de não pagar determinado tributo em absoluto (v.g., por ser imune, isento, ou por ser inconstitucional a lei que criou o tributo), a aplicação da súmula não é pertinente, e se a decisão julgar procedentes os pedidos, e transitar em julgado, aplicar-se-á sim para os exercícios futuros.
3 comentários:
Hugo, perfeito o comentário. Há sempre um risco em sintetizar a jurisprudência num enunciado, porque são tantas as nunances de cada caso que é sempre preciso fazer isso que você fez agora. Nem tudo é simplista como, em princípio, sugere uma súmula, extraída da jurisprudência surgida a partir de vários casos concretos com suas inúmeras particularidades.
Prezado Hugo, muito obrigado pela atenção dispensada. Quanto ao livro anteriormente sugerido, conheço-o e indico-o para todos aqueles que demonstram interesse nesse assunto. Um forte abraço.
Gostei do comentário, Hugo. É a síntese da coisa julgada formal. Abraços.
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