Outro dia estava caminhando no calçadão da beira-mar de manhã cedo, com meu pai, quando quase fomos atropelados por um ciclista, que se esgueirava com toda velocidade por entre as pessoas, naquele trecho inicial (e bem mais estreito) do calçadão. Olhei para ele, apontei para as várias placas que sinalizam ser proibido andar de bicicleta no calçadão, e reclamei.
A reação do sujeito foi muito curiosa. Ele ficou indignado. Disse que eu "ficasse na minha", e se estivesse achando ruim, saísse do calçadão e fosse andar no meio da rua. Então estufou o peito e arrematou: "Está pensando o quê? Eu também sou cidadão!"
Desde esse dia, eu e o meu pai criamos esse "código" para designar situações assim, cada vez mais comuns, nas quais um sujeito, mesmo errado, pretende ter razão por só conseguir enxergar o que entende serem os seus "direitos", e não ter a mais mínima preocupação com os seus deveres.
Se alguém para em local proibido, avança o sinal vermelho, liga um paredão de som no volume máximo no meio da noite ao lado de várias residências, estaciona em cima da calçada, anda na contramão etc. dizemos ironizando: é, ele tem direito, afinal, "também é cidadão"... Chegamos a presenciar, rindo por dentro, a indignação de um amigo que, em sua própria versão, estava dirigindo distraído, olhando para umas vitrines bonitas, e por isso bateu seu carro na traseira de outro que parara à sua frente. Quando perguntamos “e aí?”, ele concluiu, revoltado: - Ora, tinha que ser uma mulher! Veja só, ela ia na minha frente e parou sem necessidade, quando não vinha ninguém, só porque tinha escrito "pare" no chão!
O mais engraçado é que esse colega definitivamente não estava brincando, e mesmo sua justificativa é completamente contraditória. Afinal, se ele estava distraído, olhando para as vitrines ao lado, tanto que não viu a "mulher" parar, como poderia saber que ela parou “sem necessidade” e que não vinha ninguém na rua transversal? Por outro lado, é cômico achar errada a pessoa que para “só porque tem escrito pare no chão”...
Essa parece ser a tônica da contemporaneidade, principalmente aqui no ocidente. As pessoas só pensam no que consideram ser os seus direitos, e esquecem seus deveres. Casalta Nabais, a propósito, ressalta isso no seu "Dever Fundamental de Pagar Impostos".
Em uma coincidência digna do "andar do bêbado", recentemente descobri que todas essas "experiências" são explicadas por Michael Foley, em interessante livro que encontrei por acaso em pequena livraria da estação de TGV Saint Pancras, indo de Londres a Paris: "The Age of Absurdity: Why Modern Life Makes it Hard to be Happy".
O livro é muito bom. Embora exagerado em alguns pontos (de forma, acredito, proposital, com a intenção de ser caricaturesco), o texto revela, com simplicidade desconcertante, muitos paradoxos da vida moderna. Amparado em filósofos os mais variados, e também no budismo, o autor mostra o quanto vivemos uma era em que as pessoas acreditam fazer jus às coisas por merecimento, talento inato ou dom, nunca por esforço. Como conseqüência, não se esforçam (tanto quanto poderiam) e, quando não conseguem o que acham que merecem, ficam frustradas.
Isso se reflete nesse mencionado hábito de só pensar nos direitos (o que a pessoa “merece” receber) e não nos deveres (os esforços e sacrifícios que, por igual, tem de fazer), e, ainda, em muitas outras situações. A seguinte passagem do livro é bem ilustrativa disso: "It is shocking and profoundly regrettable, but, apparently, sales of oranges are falling steadily because people can no longer be bothered to peel them. As soon as I read this I began buying oranges more frequently and eating them with greater pleasure. Now I peel an orange very slowly, deliberately, voluptuously, above all defiantly, as a riposte to an age that demands war without casualties, public services without taxes, rights without obligations, celebrity without achievement, sex without relationship, running shoes without running, coursework without work and sweet grapes without seeds."
Todo o restante do capítulo trata dos efeitos dessa visão (the rejection of difficulty and understanding) sobre a vida moderna, especialmente no âmbito educacional e acadêmico. As críticas que em seguida faz ao relativismo epistêmico são muito interessantes, e estou até pensando em selecionar um dos capítulos desse livro para indicar aos meus alunos da pos-graduação este semestre, na disciplina de Epistemologia Jurídica. Voltarei a esses pontos depois. Por enquanto, o que motivou mesmo este post foi a tirinha abaixo, de Andre Dahmer (http://www.malvados.com.br/), que vi ontem no facebook e reflete exatamente essas idéias. Lembrei logo do assaltante que processou a vítima porque esta, ao reagir, machucou o seu braço. Fantástica, dispensando qualquer observação adicional:
6 comentários:
Hugo,
Aqui no RJ a galera estaciona carro no meio da calçada e ainda chama de intolerante quem reclama dessa bagunça.
Há um agravante nisso tudo,muitos pedestres estão arranhando veículos.Dia desses quase rolou um tiroteio,isso mesmo,tiros em pleno Centro da cidade em decorrência dessa falta de civilidade.
H. Segundo,
Excelente e importantíssima tua reflexão. Nestes dias tinha pensando em escrever algo para os jornais locais, principalmente o exercícios dos tais "direitos" que presenciamos na Beira-Mar. Sinto-me até mais seguro no asfalto com os carros e ônibus. Às veses, entro até numa crise de identidade se sou um veículo ou gente, diante dos perigos em caminha no calçadão da Beira-Mar. Agora, a moda é patinar, patinar, mesmo que contra a vida de uma criança que venha em seu carrinho empurrado pela mãe ou dos idosos que por ali passeiam. Isso sem contar, os "bicicleteiros" que jogam o pedestre para o "lugar dele (pedestre)", "que é a rua"(?!), e ainda presenciar patinadores realizando firulas em cima dos bancos da praça (degradando o patrimônio público), bem diante do olhar inerte dos fiscais da Prefeitura. Como cidadão, já tomei providências de um lado e do outro: dos "degradarores", a resposta do sorriso irônico e a continuidade da degradação; dos fiscais (o Estado), o simples: "não é de nossa competência". Bem, fica a sugestão diante de situações de inércias daqueles que poderiam fazer e não fazem: estenda seu "código" para - "isso não é da competência dele".
Amigo, H. Segundo, publique tua crônica-crítica nos Jornal locais. Abs de sempre. (Rogério Lima)
Leonardo, é isso mesmo, tais problemas terminam degradando as relações em sociedade, pois como todos só vêem os direitos, e não cumprem os deveres, é natural que todos fiquem insatisfeitos e frustrados uns com os outros, seja porque não se faz o que é devido, seja porque se exige ou espera do outro mais do que o realmente merecido.
Nesse exemplo que você cita, o pedestre, ainda que inicialmente com razão, a perde ao riscar o carro, igualando-se, em falta de civilidade, ao que estaciona a calçada. Pode até dar vontade de fazê-lo, mas é preciso lembrar que, se revidamos uma falta de educação com outra, que moral temos depois para reclamar, não é mesmo? Trata-se da mesma lógica subjacente à proibição do uso de provas ilícitas: o estado não pode se igualar ao bandido, ainda que para persegui-lo, sob pena de tudo perder o sentido...
Obrigado pelo comentário, e pela participação!
Amigo Rogério,
Obrigado por seu comentário.
Esse problema da competência é mesmo sério. O Estado se torna ainda mais ineficiente quando tem vários servidores para várias tarefas, pois sempre o que está no local de uma infração é o que não tem competência para puni-la. Vejo, sempre que vou caminhar, policiais do "Ronda" observando inertes a carros parados em local proibido, guardas da AMC sem ação diante de pequenos furtos, fiscais da prefeitura de braços cruzados para os que cometem qualquer infração que não a venda de bugingandas em barraquinhas de comércio irregular (e por "irregular", leia-se: aquele que não paga a taxa exigida pelo Município...).
Acho que vou mesmo transformar o post em um pequeno texto para o Jornal, quem sabe para competir com o ECA... Pode alcançar leitores diferentes, que não frequentam o blog e precisam refletir sobre o problema.
um abraço,
Muito interessante o texto. Além do viés cômico, a reflexão sobre os 'deveres' é algo muito importante.
Por tempos, as pessoas deixam de lado a ideia que também possuem deveres e que a ideia de direito só pode ser compreendida como um todo se houver a consciência de que para cada direito importa na existência de um dever. Se você tem um direito, então, deve, necessariamente respeitar um dever de respeito para com o direito de outrem, para que este também tenha assegurado o direito dela. Uma relação de reciprocidade, ou talvez até dependência, que não é levada muito a sério.
Em um livro, em homenagem ao professor Canotilho, que inclusive contém um artigo do senhor, há um artigo do professor Francisco Gérson Marques Lima que aborda um pouco dessa questão.
Ao lado da cadeira Direitos Fundamentais, deveria ser feita uma: "Deveres Fundamentais".
Sempre quis escrever alguma coisa sobre isso...caso o senhor tenha em mente algum material sobre a relação que há entre direitos e deveres, as indicações seriam de grande valia!
Uma amiga de longa data sempre questionou atitudes que adoto, por achar ser o correto, como parar na faixa de pedestre, não fechar o cruzamento, não jogar lixo nas calçadas (mesmo pequeninos objetos), não parar em fila dupla e reclamar das barbeiragens de outros motoristas, principalmente quando observo que ignoram a utilidade da seta à esquerda e direita. Certa vez, em resposta as suas rotineiras indagações, disse-lhe que estava apenas fazendo o que entendia como correto, que as minhas atitudes aconteciam naturalmente, independentemente de determinação legal. Quando páro na faixa de pedestre, procuro me colocar na situação do cidadão que deseja atravessar a rua, mas os motoristas, em sus grande maioria, os ignoram completamente. Ato contínuo, disse-me ela que sozinho eu não iria modificar o mundo. Retruquei: estou fazendo a minha parte.
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