É algo tão óbvio que nem me parecia merecedor de comentário aqui. Mas o julgamento que vi, segunda-feira da semana passada, me fez mudar de idéia. Não quanto à obviedade, mas quanto à necessidade de comentário.
Um contribuinte do ICMS foi autuado pela Secretaria da Fazenda, que lavrou contra seu estabelecimento dois autos de infração. Defendeu-se. No julgamento do recurso voluntário, o Conselho de Recursos Tributários da SEFAZ/CE acolheu o pedido de realização de perícia contábil. Considerou-se que a perícia poderia esclarecer dado relevante para o deslinde da controvérsia.
"Quanto à prova pericial, é importante ter em mente que o perito há de manifestar-se apenas sobre questões de fato que demandem o seu conhecimento específico. Seja ao conferir a escrituração contábil a fim de verificar a ocorrência de algumas despesas, seja ao avaliar os percentuais de perdas de matéria-prima em uma atividade industrial, seja ao examinar a existência de uma doença grave, o perito estará sempre aferindo a ocorrência de fatos, os quais – por exigirem conhecimento específico – não poderiam ser percebidos diretamente pelo julgador.[1] A perícia não versa, nem pode versar, sobre o significado jurídico de tais fatos. É a lição de Moacyr Amaral Santos:
'A perícia versa sobre fatos. Trate-se de examinar uma pessoa, animal ou coisa, de vistoriar um imóvel, de arbitrar quanto ao tempo ou à quantia a despender-se com um dado serviço, ou de avaliar coisas, direitos ou obrigações; peça-se ao perito a verificação da existência ou inexistência de um fato ou de elementos que o constituem, ou peça-se seu parecer por forma a que se possa interpretar um fato ou seus elementos; ou, ainda, solicite-se do perito instrução quanto às causas ou conseqüências de um fato; a perícia, qualquer que seja, versará sobre fatos.'[2]Não cabe ao perito, portanto, afirmar existência, inexistência, validade, invalidade, eficácia ou ineficácia de relação jurídica. Ou seja, não cabe ao perito interpretar normas jurídicas, nem tampouco afirmar se os fatos em questão a elas se subsumem. Cabe apenas afirmar a existência e as características de fatos, sendo as conseqüências jurídicas desses fatos objeto da atividade do julgador.
É o que doutrina Hugo de Brito Machado:
“Em outras palavras, o objeto da prova pericial é o fato natural. São as relações de causalidade. Não o fato jurídico, nem as relações de imputação normativa. Embora o conhecimento do fato jurídico dependa de conhecimento especial científico, o especialista nesta área é o Juiz. Não o perito. As questões a esse respeito são questões jurídicas, sobre as quais o Juiz deve ter domínio completo, não lhe sendo necessária a manifestação do perito. Pode até a parte, tentando influenciar no julgamento, formular quesitos cuja resposta seja um verdadeiro parecer jurídico, mas o Juiz há de considerar tal resposta em termos. Ela não consubstancia prova. O conhecimento que veicula é jurídico, tal como acontece com um parecer de autoridade de jurista, que a parte pode oferecer. Se o Juiz não o acolhe, nem por isto estará julgando contra a prova existente nos autos.'[3]Vicente Greco Filho, no mesmo sentido, leciona:
“O perito pode e deve concluir, quando for o caso, de fato constatado para fato que as leis técnicas afirmam decorrer do primeiro, mas não pode ele extrair as conseqüências jurídicas dos fatos, missão que compete exclusivamente ao juiz. Não pode, portanto, por exemplo, o perito concluir que, à vista dos fatos, A agiu com culpa. Culpa é qualificação jurídica dos fatos que ao juiz compete formular. Ao perito compete descrever que os fatos ocorreram, desta ou daquela maneira. Perguntas que levem a conclusões jurídicas devem ser indeferidas pelo juiz e, se por acaso deferidas, não devem ser respondidas pelo perito. Se respondidas, não devem ser consideradas pelo magistrado.'[4]Tais lições podem parecer óbvias e elementares. Realmente o são, mas reiterá-las é sempre importante, pois não são pouco freqüentes as hipóteses nas quais as partes formulam quesitos indagando ao perito contábil a respeito da validade de uma lei, ou da legalidade de um determinado ato, indagações que o perito não deve responder, limitando-se a afirmar sua impertinência ali. Também não são raras as ocasiões nas quais tais quesitos são respondidos através da emissão de verdadeiro 'parecer', no qual o perito bisonhamente disserta a respeito da constitucionalidade da lei ou da legalidade dos atos questionados no processo. Mas isso tudo não teria maior relevo se não acontecesse, como lastimavelmente acontece, de tais conclusões serem acolhidas de modo irrefletido por magistrados, que consideram estar assim simplesmente respeitando as conclusões do expert a respeito de assunto que não dominam."
[2] Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, v. 2, p. 479.
[3] Hugo de Brito Machado, “O objeto da prova pericial”, em RT 690/276.
[4] Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 219.
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